A Venezuela pode ser o rastilho de
uma nova Guerra Fria na América Latina: percebendo que perdem para China a
influência na região, EUA não aceitarão abrir mão de seu "quintal",
avalia colunista Alexander Busch.
Quando o assunto é Venezuela, as
ex-superpotências Estados Unidos e Rússia vasculham fundo no baú de cacarecos
verbais da Guerra Fria. Ao anunciar recentemente que todo o faturamento em
dólares com importações de petróleo venezuelano ficaria congelado numa
conta especial, o assessor de Segurança americano, John Bolton, acrescentou,
ameaçador: "A opção militar continua sobre a mesa."
O ministro russo do Exterior,
Sergey Lavrov, advertiu contra uma intromissão militar americana: "Parece
que os EUA não hesitariam em derrubar governos malquistos na América
Latina." Ainda em dezembro, o presidente Vladimir Putin enviara ao Caribe
dois bombardeiros supersônicos TU-160, com capacidade para portar armas
nucleares. Uma provocação, já que Caracas está a apenas três horas de voo de
Miami.
Comparado com os fanfarrões da
Rússia e dos EUA, a terceira potência na Venezuela se manifesta de forma quase
moderada. Hua Chunjing, porta-voz do Ministério do Exterior da China, urgiu
todas as partes envolvidas a manterem a calma e negociarem uma solução política
conjunta.
Isso soa tão débil e inócuo
quanto uma resolução das Nações Unidas. No entanto, por trás está o pragmatismo
chinês e uma porção de understatement, pois a China é a potência mundial
que, há uma década, apoiou, com mais de 60 bilhões de dólares, primeiro o
autocrata Hugo Chávez e agora seu sucessor, Nicolás Maduro. Sem Pequim, há
muito os caudilhos de esquerda já estariam fora do jogo.
Nenhum outro país recebeu tanto
crédito chinês quanto o grande produtor de petróleo no Caribe – um fato que os
dirigentes em Pequim agora lamentam profundamente. "Com o desastre
econômico, social e político, todo o interesse da China na
Venezuela dissipou-se de uma vez só", confirma Matt Ferchen,
especialista do Carnegie-Tsinghua Center for Global Politics. "A China
quer, acima de tudo, estabilidade."
Para Pequim, o foco mundial sobre
a Venezuela é um fator perturbador para a longamente planejada conquista
estratégica da América Latina. Ele chama a atenção dos EUA e, em última
análise, da comunidade internacional para o fato que, nos últimos 15 anos,
Pequim expandiu meteoricamente sua influência econômica, mas sobretudo também
política, na região.
E isso "no quintal dos
Estados Unidos", que é como há quase 200 anos Washington vê os 23 Estados
e 650 milhões de habitantes ao sul do Texas, até a Patagônia. Tudo começou
em 1823, com a doutrina Monroe, quando o então presidente americano, James
Monroe, declarou o Hemisfério Ocidental zona de influência exclusiva dos
Estados Unidos. Desde então, os governos americanos consideram em primeira
linha os próprios interesses estratégicos.
Agora a doutrina volta a ser
colocada à prova, devido à entrada em cena da China – como 50 anos atrás,
quando a União Soviética tentou inutilmente ampliar sua influência na região, a
partir de Cuba. O novo jogo de poder tem consequências imprevisíveis.
"Washington não estará
disposto a aceitar a China como mais importante protagonista econômico e
político na América Latina", afirma Oliver Stünkel, professor de relações
internacionais da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. No
entanto, os EUA provavelmente não terão alternativa, pois num breve prazo os
chineses ampliaram sua rede econômica e política na região, e a ela os
americanos nada têm para opor.
A direção e velocidade da
ofensiva chinesa na América Latina ultrapassa longe a inicial garantia de
matérias-primas e energia, a qual acabou por tornar toda a região dependente
das exportações para a China de minério de ferro, soja, cobre e petróleo.
Até o momento, o país já investiu
lá 150 bilhões de dólares, muito mais do que na África, algo apenas
superado por seu engajamento na Ásia. Conglomerados chineses compram usinas,
redes de eletricidade, aeroportos e portos marítimos, constroem ferrovias, estabelecem
zonas de livre-comércio e agora investem em fábricas de automóveis e
plataformas digitais.
Originalmente, a assim chamada
Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative, ou BRI) não era destinada à
América Latina, mas em 2018 o presidente Xi Jingping constatou, em uma de suas
numerosas viagens, que a região "é a expansão natural da Rota da Seda
marítima no século 21".
Desde então, 14 nações
latino-americanas se candidataram para investimentos chineses no contexto da
BRI. Chile, Peru e Colômbia, voltados para o Oceano Pacífico, competem
agressivamente a fim de se transformarem em cabeças de ponte para os produtos
chineses na América Latina, e para tal estão também dispostos a fazer
concessões políticas ao Extremo Oriente.
Em 2018, a República
Dominicana, El Salvador e Panamá cortaram relações diplomáticas com o Taiwan e
as estabeleceram com Pequim, que os recompensou generosamente. Assim, agora o
Panamá fechou mais de 20 grandes projetos com a China, e com seu canal o país é
um eixo e polo decisivo para a dominância estratégica dos EUA no Hemisfério
Ocidental.
Sob o esquerdista Andrés Manuel
López Obrador, também o México, colaborador estreito dos EUA, mostra-se aberto
para investimentos chineses. Em conjunto com Pequim, o novo presidente pretende
iniciar um Plano Marshall para a América Central, no montante de
30 bilhões de dólares, a fim de criar empregos e infraestrutura na região
e, no médio prazo, limitar o fluxo de refugiados em direção ao Norte.
Contra isso, nem mesmo Donald
Trump tem como impor seu veto. "A China está procedendo na América Latina
com muito mais criatividade do que os EUA", observa Stünkel. Então não é
de espantar que, após as hostilidades por parte do presidente americano, o
México prefira apostar paralelamente na cooperação com a China.
"Para os governos da América
Latina, o engajamento de longo prazo na China é mais atraente do que o
tratamento inseguro, volátil, pelos Estados Unidos", comenta Cui Shoujun,
diretor do Center for Latin America Studies da Universidade Renmin, na China.
Há muito os EUA mal prestam
atenção à América Latina: além de "Chávez, Castro e Coca", o
"quintal" não lhes interessa. Mas agora o país alerta de forma ácida
contra a sedução chinesa. David Malpass, secretário de Estado para assuntos estrangeiros
no Departamento de Finanças americano, menciona problemas de segurança, caso as
comunicações da região fiquem centradas em redes chinesas.
O secretário do Exterior Mike
Pompeo critica que a China não se preocupe com o bem-estar dos cidadãos
latino-americanos, em vez disso cuidando, acima de tudo, do interesse de seu
próprio governo: "Esses acordos são bons demais para ser verdade."
Alexander Busch* (av), colonista
| Deutsche Welle
*Há mais de 25 anos, o jornalista
Alexander Busch é correspondente de América do Sul do grupo editorial
Handelsblatt (que publica o semanário Wirtschaftswoche e o
diário Handelsblatt) e do jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em
1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch
vive e trabalha em São Paulo
e Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil. Clique aqui para
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