É importante, para memória futura
e inevitável exigência de responsabilidades políticas e humanitárias, anotar os
governos que, na Venezuela, virão a ser responsáveis por uma chacina de vidas
humanas.
José Goulão* | AbrilAbril | opinião
Uma semana de atraso é caricata
para funcionar como disfarce para uma subserviência rasteira anunciada. A União
Europeia, com o governo português bem na linha da frente, segue a estratégia
intervencionista e potencialmente fascista de Donald Trump na Venezuela. É
importante, para memória futura e inevitável exigência de responsabilidades
políticas e humanitárias, começar a anotar, um por um, os governos que virão a
ser responsáveis por uma chacina de vidas humanas que poderá ser o resultado de
uma de duas vias: a guerra civil, na esteira da Síria; ou uma ditadura
fascista, a exemplo de Pinochet e alguns outros.
No seguidismo em relação à
estratégia de Trump, a União Europeia assume a sua conivência com o golpe na
Venezuela de uma maneira que contraria
a maioria dos Estados membros da Organização dos Estados Americanos, apesar
de esta entidade ser habitualmente considerada uma simples correia de
transmissão dos desejos e interesses de Washington.
Do alto dos seus púlpitos ou na
telegrafia dos seus twitters, os dirigentes da União Europeia dirão que
não, nada têm com a decisão de Trump, porque o presidente norte-americano
reconheceu Juan Guaidó ao mesmo tempo que este se autoproclamou, enquanto eles
têm a boa vontade de dar uma semana a Nicolás Maduro para convocar eleições
presidenciais. Caso contrário… reconhecerão Guaidó. Uma posição muito
diferente, como se percebe; sabendo desde logo que Maduro não aceitará um
ultimato para abdicar de um mandato constitucionalmente legítimo, assente em eleições democráticas, livres, não contestadas
institucionalmente e realizadas apenas há oito meses. Poderiam até ter
sido mais recentes, mas foram antecipadas para Maio de 2018 por exigência da oposição.
É interessante ouvir o titular
das Necessidades exigir eleições democráticas e livres a Maduro. Sobretudo por
ser o mesmo ministro a quem não consegue ouvir-se qualquer reparo ao actual
governo fascista da Ucrânia, nascido de eleições com abstenção idêntica às
presidenciais da Venezuela. Não por ter havido um qualquer «boicote» de
qualquer oposição; tão só porque a Ucrânia estava – como está – em situação de
guerra e cerca de meio país vive acossado pelo poder de forças armadas e milícias fascistas,
razão de peso para os cidadãos não irem às urnas.
Se o senhor ministro dos Negócios
Estrangeiros de Portugal e alguns dos seus parceiros, entre eles alguns com as
mãos sujas de sangue na Síria, entendem que a liberdade e a democracia da
Ucrânia são exemplares e a solução é repetir em Caracas o famoso golpe de Maidan, em Kiev1,
não precisam de fingir que entre eles e Trump ainda vai uma semana de
diferença.
Nada de novo a rolar
A linguagem própria da
comunicação mainstream recusa-se a usar a expressão «golpe de Estado»
para identificar o que está a passar-se em Caracas como resultado das tramas
urdidas em
Washington. Trata-se apenas, como dizem Trump, Bolton e
Pompeo, enormes vultos das liberdades e dos valores democráticos, de «restaurar
a democracia» na Venezuela. Um passo absolutamente necessário porque o
presidente democraticamente eleito é «um usurpador», enquanto um autoproclamado
«presidente interino», invocando a Constituição do país para a violar, é um
«legítimo» chefe de Estado – mesmo que nunca se tenha candidatado a presidente
e use o cargo de presidente do Parlamento, em que também se autodesignou, para
se apropriar de atribuições de outros órgãos institucionais. Uma verdadeira
lição de separação de poderes.
Nada é novo neste mecanismo tão
democrático. Passando, deste feita, ao lado da Ucrânia e fixando-nos apenas no «quintal das traseiras» dos Estados Unidos –
a doutrina Monroe está de boa saúde e recomenda-se – «restaurações
democráticas» assim sucedem-se há mais de dez anos na região.
Honduras
Muitos ainda terão na memória o
caso das Honduras, em 2009, onde o presidente democraticamente eleito foi
deportado para a Costa Rica, deposto pelo presidente do Parlamento com
assessoria de outro grande democrata, John Negroponte – uma vida ao serviço do
intervencionismo de sucessivos presidentes norte-americanos. Alguém que, também
nas Honduras, mas noutra fase da democracia recomendada pelo Departamento de
Estado, tinha aconselhado a criação de esquadrões da morte, mostrando assim uma
vasta amplitude de meios ao dispor para atingir os fins pretendidos.
A partir de então, as Honduras
vivem uma história de eleições falsificadas, mas todas elas aceites em
Washington, Bruxelas, Paris, Berlim ou Lisboa como perfeitamente válidas,
segundo os cânones da democracia. Viveu-se recentemente mais um episódio da
saga, em que a manipulação foi tão grosseira que Washington
e a Organização dos Estados Americanos demoraram um mês a validar os
resultados. Mas validaram-nos – e nisso não verá o ministro Santos Silva
qualquer ofensa à democracia, a legítima, a que proporciona os resultados que
os democratas sem mácula consideram apropriados ao país.
Paraguai
Depois, em 2011, chegou a vez do
Paraguai, onde um ex-bispo católico, à frente de uma vasta coligação
progressista, teve a inusitada coragem de enfrentar séculos de poder dos terratenientes,
os latifundiários.
O que foi ele fazer!?... Sob a
batuta da embaixadora norte-americana, logo no Parlamento houve quem
encontrasse maneira de transformar maiorias em minorias, legitimidade em impeachment presidencial;
o ex-bispo retirou-se, substituído pelo seu vice-presidente, e o fascismo
banqueiro e latifundiário reinstalou-se, um pouco mais benévolo que o do
carniceiro Stroessner, mas fascismo social, militar, sob capa política
«democrática». Nada que ofenda as sensibilidades do homem das Necessidades e
dos seus parceiros de Lisboa a Budapeste, de Bruxelas a Varsóvia.
Equador, Brasil
A embaixadora norte-americana
transitou de Assunción para Brasília e em terras brasileiras o Congresso,
sintonizado com uma justiça muito justiceira, declarou o impeachment da
presidenta e o vice-presidente subiu de posto.
Os acontecimentos daí
resultantes, iniciados em fins de 2015, ainda estão em curso com novas e
profícuas benfeitorias para a democracia, moldada esta em forma de Bolsonaro
com o mesmo barro de que foi feito Trump. E para isso foi mesmo preciso prender
Lula da Silva para não ganhar as eleições, uma vez que não tinha rival por
próximo.
Em paralelo, o presidente
progressista do Equador foi posto de lado e a contas com a justiça enquanto o
seu vice-presidente assumia funções e foi agora um dos primeiros a dar a mão a
Guaidó contra Maduro, o «usurpador».
Verdadeiramente independentes e
soberanos, sobraram, na América Latina, a Bolívia – sempre sob várias ameaças –
Nicarágua, Cuba e a Venezuela. A «troika da tirania», como tão apropriadamente
a baptizou, recentemente, o conselheiro para a Segurança Nacional da
administração de Donald Trump, John Bolton.
É contra esses países, e também
contra o México, que agora se desviou perigosamente do guião, que está em curso
a operação «restaurar a democracia». E o Brasil, o Paraguai, as Honduras e o
Equador são bons exemplos de «democracias restauradas».
Petróleo e democracia
É um dogma: petróleo e democracia
andam sempre de mãos dadas. E a relação é directamente proporcional, portanto
quanto mais petróleo, mais democracia.
Sabemos bem que assim é. Na
Arábia Saudita, por exemplo, onde existem as segundas maiores reservas
petrolíferas; e no Koweit e Emirados Árabes Unidos, sétimo e oitavo no ranking
dos mais dotados, como pode apurar-se na página 12 da publicação BP
Statistical.
Conhecemos igualmente os casos de
países onde não havia democracia e agora ela jorra abundantemente, para não
haver infracções ao dogma que rege as coisas do mundo. Por exemplo, no Iraque e
na Líbia, quintas e nonas maiores reservas mundiais, onde apropriadas guerras
«restauraram a democracia» para franquear o acesso livre às riquezas do
subsolo.
Mas houve e há casos onde abunda
o petróleo e faltava, ou ainda falta, a inerente democracia que determina a sua
partilha segundo o modelo transnacional.
Era assim no Brasil e no Equador,
mas o problema está em vias de resolução. Sobretudo no Brasil, onde nos tempos
de Lula da Silva foram detectadas reservas de petróleo que catapultaram o país
para um surpreendente e apetitoso terceiro lugar do ranking – 200 mil milhões
de barris, menos 66 mil milhões que a Arábia Saudita. Uma riqueza fabulosa que
corria o risco de ficar ao serviço dos interesses egoístas do povo do Brasil, e
não da grande irmandade mundial.
Como todos acabamos de perceber,
agora que a Petrobrás vai a caminho do grande leilão mundial, a democracia e o
petróleo deram as mãos também no Brasil. Tal como no Equador, pouco falado mas
ainda assim o 19º país em reservas petrolíferas, do mesmo nível das que estão
detectadas no México – onde a empresa pública petroleira, a Pemex, continua sob
pressão para deixar de o ser.
Mas há um país onde existe uma
situação intolerável, um caso em que o governo teima em manter nas mãos da
população o usufruto das riquezas petrolíferas. E que riquezas!
Nada mais, nada menos, que a
maior potência do mundo em reservas petrolíferas, com 300 mil milhões de
barris, mais 37 mil milhões que a famosíssima Arábia Saudita, mais cem mil
milhões que o Brasil.
A Venezuela!
Tanta riqueza não pode estar
apenas na mão do povo de um país. É reparti-la, entregá-la às transnacionais
que verdadeiramente conhecem o sector e o fazem verter para o mundo inteiro,
tão democraticamente como ordenam o mercado e a inquestionável ordem
neoliberal.
E o mercado é oprimido na
Venezuela. Torna-se necessário «restaurar a democracia» para que ele se sinta
livre e o petróleo jorre para todos. É simplesmente o que está a acontecer
pelas mãos do eleito Guaidó, embora ninguém o tenha elegido para o cargo que
ocupa e do qual se permite fazer ultimatos aos «usurpadores».
Lei eleitoral à medida
Juan Guaidó demonstrou, nas
últimas horas, estar compenetrado do seu papel. E também ele dá ordens ao
governo legítimo, tal como os senhores do mundo e da democracia, mas a genuína:
ele exige eleições, mas que não sejam realizadas segundo o sistema legal em
vigor mas com outro – que ele e os mentores externos ditarão, tal como mandam
que se realizem eleições para que o golpe seja perfeito, isto é, não pareça um
golpe.
Pelo que tem vindo a perceber-se,
os interesses que fizeram avançar Guaidó já demonstraram que a sua democracia
se constrói à base de ultimatos, arbitrariedades e jogos fraudulentos entre os
conceitos de legitimidade e ilegitimidade.
Deduz-se, por isso, que não
excluirão quaisquer meios para atingir os objectivos que já estabeleceram entre
si.
Um deles é o recurso à agressão
militar. Não tardará que Guaidó, fazendo uso dos poderes que lhe foram
conferidos por interesses externos, chame países «amigos» como o Brasil, a
Colômbia – que é parceiro da NATO – ou o Paraguai, para que reponham a «ordem
democrática».
Talvez, por este caminho, as
pretendidas eleições decorram manu militari, como na Ucrânia, onde os
resultados foram tão bons.
Ou talvez não.
Pode acontecer que as instâncias
legítimas da Venezuela e o povo resistam às agressões, sejam elas políticas ou
militares. E que não entreguem sem lutar o que tanto custou a conquistar.
Se os poderes externos
insistirem, no horizonte está o pior dos pesadelos de um país, a guerra civil.
Daí à carnificina não será preciso dar mais qualquer passo. Temos ainda diante
de nós o caso da Síria, que se iniciou na sequência de ultimatos impostos a um
governo legítimo e soberano, na sequência de manifestações orquestradas do
exterior – como está abundantemente provado.
Ou, em alternativa, no horizonte
está também a imposição de um regime fascista de onde nascerá, radiosa, a
democracia.
Pode ainda acontecer, no limite,
que o presidente legitimamente em funções na Venezuela, fazendo uso dos poderes
que a Constituição lhe confere, peça socorro a países amigos, que os tem.
Não será difícil vaticinar que
tempos dolorosos se avizinham da Venezuela e dos povos da América Latina.
Mais difícil será prever como
tudo irá acabar. E que nunca mais nenhum governo da União Europeia tenha o
desplante e a ousadia de queixar-se dos crimes de Donald Trump.
Para todos os efeitos, já são
conhecidos alguns responsáveis pelo que vier a acontecer. E o governo português
não estará isento da sua quota-parte. A comunidade portuguesa na Venezuela bem
poderá queixar-se da armadilha que lhe foi montada pelos que mandam em Lisboa.
Na foto: Encontro do Ministro dos
Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, e do Secretário de
Estado norte-americano Michael Pompeo, em Washington, Junho de 2018. Créditos/
US Department of State
1. Em
2017 passou desapercebida uma notícia transmitida pela Reuters sobre a
realização na Venezuela, nos meios ligados à oposição de direita, de sessões de
cinema onde se passava um documentário favorável ao golpe de Maidan, com o
objectivo de ensinar aos jovens direitistas venezuelanos as técnicas de
armamento e a táctica de luta de rua utilizada pelos grupos pró-Maidan. A notícia não informa a mão generosa que propiciou tal peça
formativa, mas não é difícil adivinhar.
*Publicado em AbrilAbril em 28 de
Janeiro de 2019
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