domingo, 10 de fevereiro de 2019

Portugal | Carlos Costa: No pior pano cai a pior nódoa

O governador do Banco de Portugal, Carlos Costa - Tiago Petinga / Lusa
Pelo que é descrito e se sabe Carlos Costa está "forrado" de impunidade e não tem de se explicar - nem nos dar contas - dos créditos a "amigos da trapaça" que assinou de cruz quando era um dos administradores da Caixa Geral de Depósitos. Foi cumprida a adulteração do adágio: no pior pano cai a pior nódoa. Mas apesar da "nódoa" Carlos fica impune e caladinho e os portugueses pagam como de costume os desvarios das pandilhas do costume. Mintam ou não mintam nas informações que prestam é certo que a impunidade segue dentro de momentos, sempre, e para esses é que está reservada em exclusivo. Assim se depreende e clarificamos pelas notícias do dia que também destacamos em baixo com origem em AbrilAbril. (PG)

Carlos Costa não responde pelos créditos ruinosos a Berardo e Vale do Lobo

O actual governador do Banco de Portugal foi um dos administradores da CGD que deram aval aos créditos ruinosos de Berardo, Fino e Vale do Lobo mas escapa ao exame de idoneidade do supervisor. 

A revista Sábado teve acesso às actas da Caixa Geral de Depósitos (CGD) que comprovam que Carlos Costa, actual governador do Banco de Portugal, participou nas reuniões onde foram aprovados empréstimos de risco que resultaram em perdas avultadas para o banco público. Informação que o Banco de Portugal desmente num comunicado publicado hoje na sua página. 

Créditos avultados a Manuel Fino, Joe Berardo e Vale do Lobo são alguns dos que Carlos Costa, administrador da CGD no período que está sob investigação, terá deixado passar, apesar do incumprimento das regras de concessão de crédito. 

O Jornal Económico avança na edição desta sexta-feira que o exame de idoneidade a ex-gestores do banco público por parte do supervisor «exclui» o actual governador do Banco de Portugal.

Perante a notícia e depois de a Sábado questionar se Carlos Costa iria pedir escusa no processo de averiguações à gestão do banco público, o Banco de Portugal responde que o ex-administrador da Caixa pediu para não participar nas decisões sobre a auditoria realizada pela consultora EY ao período entre 2000 e 2015, «tendo o Conselho de Administração aceite este motivo de escusa». 

O económico revela ainda que estão a ser avaliados menos de dez dos 44 gestores que passaram pela CGD e que alguns ainda estão na banca.

AbrilAbril

É FARTAR VILANAGEM

Portugal | Faturas do "ajustamento"


Manuel Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião

Os portugueses, sobretudo os jovens, perante o agravamento do desemprego e o acentuar dos baixos salários, viram-se obrigados, a partir de 2008, a emigrar em grande número.

Agora saem menos mas ainda continuam a sair mais que antes da crise. Se o país não conseguir uma melhoria qualitativa do emprego e dos salários, continuarão a partir, acentuando um grave problema demográfico que nos reduz a população ativa e limita a possibilidade de mais criação de emprego.

Os dados do Inquérito ao Emprego do INE relativos ao quarto trimestre de 2018, trazem-nos novos dados sobre o desemprego e a evolução dos salários e mostram-nos que o emprego não cresceu relativamente ao trimestre anterior e o desemprego não baixou.

A estagnação do emprego será conjuntural ou estrutural? A possibilidade da estagnação ser mais estrutural que conjuntural, que impactos tem na vida dos portugueses?

Como bem fundamentou José Castro Caldas no 2.0º Encontro Nacional de Economia Política, realizado em Coimbra nos dias 1 e 2, o choque migratório ocorrido durante o chamado ajustamento, longe de tender a diluir-se com a passagem do ciclo recessivo, tende a projetar-se no futuro sob a forma de um declínio demográfico duradouro. A emigração não está estancada. Alguma recuperação pontual da população tem sido feita pelo ligeiro aumento de imigrantes ativos, que vêm trabalhar por baixos salários, e de idosos que encontram em Portugal boas condições para a reforma, mas estes não aumentam a população ativa. Os hiatos salariais entre Portugal e os principais países de destino da nossa emigração acentuam-se, atraindo para esses países tanto portugueses como imigrantes de outras origens. Nos últimos seis anos a população ativa foi regredindo. Em 2017, esse declínio foi travado, não por aumento da população residente, antes pelo regresso de inativos à condição de ativos.

Menor população ativa não permite recuperar níveis de emprego do tempo pré-crise. Com menos emprego temos aumento de encargos para os portugueses que aqui trabalham e residem, quando o país precisa de investimento em várias áreas e de população para dar vida a todo o território. O stock da dívida continua elevado e tivemos muito capital delapidado. Se não se procuram novas soluções para esses problemas e ainda por cima formos menos a trabalhar e a pagar impostos, cada um ou pagará mais, ou perderá bens e serviços públicos essenciais na saúde, educação ou segurança social.

O INE diz-nos que temos, no 4.0º trimestre de 2018, uma taxa de desemprego de 6,7%, exatamente igual à do trimestre anterior. A hipótese do desemprego poder entrar numa fase de "estabilização" depende, fundamentalmente, de fatores (internos e externos) que geram diminuição da procura, mas também de bloqueios inerentes à nossa fraca matriz de desenvolvimento.

No que respeita à evolução dos salários, o valor avançado pelo INE (3,7%) refere-se ao rendimento líquido e é nominal. Sendo nominal não tem em conta o valor da inflação. Como se refere ao rendimento líquido, significa que parte desse aumento de rendimento resultou do ajustamento das taxas de retenção de IRS ocorrido no último ano. E, como inclui os trabalhadores da Função Pública, contém o efeito do descongelamento das progressões nas carreiras.

Entretanto, se olharmos para os dados relativos à evolução dos salários reais médios no conjunto da economia, por exemplo na base de dados da Comissão Europeia, AMECO, verifica-se um cenário global bem menos animador, pois aí se constata que, entre 2014 e 2017, os salários reais cresceram apenas 0,54%. Em 2017 eram 7% inferiores aos do ano 2010 e 2,62% inferiores aos do ano 2000.

Muito do emprego criado ocorreu em setores que pagam salários baixos. Daqui se conclui que esta criação de emprego foi importante para baixar a taxa de desemprego, mas não possibilitou a recuperação do valor salarial médio no conjunto da economia; piorou a distribuição do rendimento em desfavor dos trabalhadores; e não melhorou o perfil de especialização da economia.

O lastro deixado pelas políticas de desvalorização salarial e pelo receituário da austeridade foi muito pesado e as faturas vão chegando.

*Investigador e professor universitário

O Irão encurralado


Thierry Meyssan*

Os Estados Unidos preparam-se para organizar o «Médio Oriente Alargado» sem as as suas tropas. Eles deverão capitalizar os erros cometidos nos últimos cinco anos pelo Irão para criar uma aliança militar judeu-sunita contra os xiitas, denominada «OTAN Árabe» pela imprensa.

Quando o Pentágono se retira do «Médio Oriente Alargado» para se empenhar na «Bacia das Caraíbas», a Casa Branca apresta-se a reorganizar os seus aliados na região. Com este propósito, nos dias 14 e 15 de Fevereiro, irá realizar-se em Varsóvia uma «Reunião ministerial visando promover um futuro de paz e de segurança no Médio-Oriente». Todos os aliados dos Estados Unidos aí participarão, mas não os seus parceiros: nem a Rússia, nem a China.

A 10 de Janeiro, durante uma conferência na Universidade americana do Cairo, o Secretário de Estado Mike Pompeo fixou os objectivos: 

- opor-se ao «regime iraniano» e aos «seus mandatários»;
- por em acção uma Aliança estratégica judeu-sunita contra o Irão xiita [1].

O retorno de Elliott Abrams

Só se pode estar desolado perante a confessionalização da política externa dos EUA. Ela deve ser conjugada com o retorno de Elliott Abrams [2] ao Departamento de Estado após 30 anos de ausência. Este trotskista, que se juntou em 1980 ao Presidente republicano Reagan, é um dos fundadores do movimento neoconservador. Ele é também um dos iniciadores da teopolítica, essa escola de pensamento aliando judeus e cristãos sionistas segundo quem a Terra só ficará em paz quando for dotada de um governo mundial sediado em Jerusalém [3].

Contrariamente a uma ideia feita, os neoconservadores não são inimigos do Irão, nem amigos de outros. Eles sempre consideraram que era preciso manter um equilíbrio entre árabes e persas. Assim, Elliott Abrams participou na «Operação Irão-Contras», o que consistiu, nomeadamente, em vender armas israelitas, via Xeque Hassan Rohani (o actual Presidente do Irão), ao Aiatola Hashemi Rafsanjani (o qual se tornou o maior rico do seu país nessa ocasião) para resistir ao ataque iraquiano (este também comanditado por Washington). Tendo sido esta operação conduzida à revelia do Congresso, ele foi condenado, mas depois amnistiado (anistiado-br) pelo Presidente Bush Sr.

Durante este período, foi implicado em diversos massacres na Guatemala, no Salvador e na Nicarágua.

Os trotskistas da revista do American Jewish Commitee, Commentary, que, como ele, se juntaram a Reagan, entendiam lutar ao mesmo tempo contra a URSS, para prosseguir a luta de Leon Trotsky contra Joseph Stalin, e montar um Golpe de Estado mundial, se este conceito realmente faz sentido. Elliott Abrams participou, pois, na criação do Instituto da Paz dos EUA (que instrumentalizou o humanitário afim de promover o imperialismo) e na National Endowment for Democracy (que organizou as revoluções coloridas), da qual ele continua a ser um dos directores. É neste sentido que é preciso compreender a teopolítica, como uma justificação religiosa para uma tomada de Poder mundial.

O Congresso fundador da teopolítica foi financiado pela Izmailovskaya, uma organização criminosa russa, da qual, segundo a Justiça espanhola, Michael Cherney, Oleg Deripaska e Iskander Makhmudov faziam parte à época [4].

Sob a presidência Bush Jr., Abrams retorna discretamente à Casa Branca, para junto de Liz Cheney (a filha do Vice-presidente Cheney). No Conselho de Segurança Nacional, supervisionou o golpe de Estado contra o Presidente da Venezuela, Hugo Chavez [5]. Ele opôs-se, mas um pouco tarde, ao desequilíbrio criado por Washington que, ao eliminar, ao mesmo tempo, os Talibã e o Presidente Saddam Hussein, permitiu a Teerão impor-se a nível regional. Trabalhou no seio do «Grupo para as Operações e Política no Irão e na Síria» (Iran Syria Policy and Operations Group), depois foi encarregue da «Estratégia para uma Democracia Global» (Global Democracy Strategy) [6]. Ele foi o principal perito da Conselheira de Segurança Nacional, Condoleezza Rice, durante a guerra israelita de 2006 contra o Líbano.

A Conferência de Varsóvia

A «Reunião Ministerial visando promover um futuro de paz e segurança no Médio-Oriente» deverá ser co-presidida pelo Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, e pela Vice-Presidente do Governo polaco (polonês-br), Beata Szydło, que não tem qualquer competência na matéria.

À partida, considerando que os Estados implicados na guerra contra a Síria serão privilegiados, Israel reivindica várias operações anti-sírias que até aqui se havia recusado a confessar. Assim, o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o General Gadi Eisenkot, declarou que o Estado hebreu tinha apoiado os jiadistas desde o início dos acontecimentos, que lhes havia feito chegar uma enorme quantidade de armas, e os tinha apoiado militarmente bombardeando as Forças Sírias. Ou seja, todo o tipo de coisas que havíamos clamado nos últimos oito anos e que são agora oficiais.

Inquieta quanto ao que se poderia decidir em Varsóvia, Moscovo enviou uma delegação de alto nível a Telavive a fim de sondar Israel.

As falhas iranianas

É importante ter em mente que os Estados Unidos jamais lutaram contra o Irão em geral, mas quase sempre escolheram quem deveria governá-lo. Assim, em 1941, ajudaram os Britânicos a depor Reza Shah para instalar Mohammad Reza Pahlevi. Foram eles que, em 1953, forçaram o Xá a se separar do nacionalista Mohammad Mossadegh para impor o General nazi Fazlollah Zahedi. Foram eles que pressionaram, em 1979, o Xá a retirar-se e organizaram o retorno do Aiatola Rouhollah Khomeini.

O Irão contemporâneo encontra-se preso às suas contradições. Primeiro entre o seu discurso e a realidade. A República Islâmica não cessa de apresentar Israel e a Arábia Saudita como seus inimigos absolutos. Ora, os factos contradizem tanto a retórica de Teerão, quanto a de Telavive e Riade. Por exemplo, os três países combateram juntos, em 1992-95, ao lado da OTAN e dos muçulmanos da Bósnia e Herzegovina. Ou ainda, a sociedade EAPC que gere actualmente o “pipeline” Elait-Ashkelon é propriedade conjunta do Irão e de Israel [7].

Em segundo lugar, mesmo se fazem bloco face aos estrangeiros, os dirigentes iranianos estão extremamente divididos entre o Guia da Revolução (Aiatola Ali Khameney), o Presidente da República (Xeque Hassan Rohani) e o Chefe da Oposição (o antigo Presidente Mahmoud Ahmadinejad, colocado em residência vigiada desde há um ano e cujos principais colaboradores foram presos após julgamentos secretos) [8].

O Presidente Barack Obama negociou secretamente em Omã, no fim do segundo mandato de Ahmadinejad, com a equipe de Rafsanjani-Rohani. O princípio de acordo sobre o nuclear ficou então registado. O Aiatola Khamenei levou ao afastamento do candidato de Ahmadinejad da eleição presidencial, pelo Aiatola Ahmad Jannati, e favoreceu a eleição do Xeque Rohani, provavelmente ignorando certos aspectos do acordo que este havia concluído com Obama. O Xeque Rohani apostou tudo no seu acordo secreto com os Democratas dos EUA. Antecipou o levantamento das sanções norte-americanas e prometeu aos eleitores dias de abundância. Uma vez eleito, desmantelou o sistema de fuga às sanções, depois fingiu negociar na Suíça com as grandes potências o que já tinha acordado somente com os EUA. Ora, a assinatura do acordo dos 5 + 1 não foi seguida pelo levantamento das sanções. Não tendo a economia iraniana mais possibilidade de as contornar entrou em colapso. Quando Donald Trump chegou à Casa Branca rasgou o acordo com o Irão, mergulhando a equipe de Rohani no pânico. Esta cometeu o erro de acreditar que este Presidente seria rapidamente destituído e que os Democratas cedo regressariam ao Poder. Ela rejeitou a oferta de negociações de Donald Trump e encontra-se agora economicamente estrangulada.

O Xeque Hassan Rohani, que havia feito campanha em 2013 repetindo, constantemente, que o seu país não devia gastar mais um rial que fosse para libertar a Palestina, e apoiar o Hezbolla e a Síria, nada empreendeu com estes aliados desde a sua eleição. Progressivamente, os Guardas da Revolução deixaram de defender a Síria e apenas ofereceram a sua assistência a Damasco a fim de vir em socorro da minoria xiita. Durante quase dois anos, Teerão não nomeou embaixador para Damasco. Apenas em Dezembro de 2018 é que enviou altos funcionários do seu Governo à Síria. Foi então que eles assinaram acordos económicos, prontos desde há cinco anos, e que não correspondem mais, de forma alguma, às necessidades dos Sírios.

Buscando convencer o Aiatola Ali Khamenei a retirar os Guardas da Revolução da Síria, o Presidente Xeque Hassan Rohani aproximou-se da Turquia (com quem os seus amigos mantinham excelentes relações) e com a Rússia. No entanto, o Xeque Rohani havia também negociado com os Estados Unidos e a Áustria o fornecimento de petróleo iraniano aos Europeus em substituição dos hidrocarbonetos russos. Seja como for, os três países, a princípio, efectivamente aproximaram os seus pontos de vista. No entanto, a última reunião em Teerão com os Presidentes Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdoğan saldou-se num fracasso. Ela foi imediatamente seguida por um encontro russo-turco onde os diferendos foram regulados sem os Iranianos.

Simultaneamente, o afundamento económico e financeiro do Irão já não permite ao Guia da Revolução apoiar as suas milícias no Iraque e o Hezbolla. Ele já não é capaz de pagar os soldos dos seus combatentes. Apenas 60% dos salários foram pagos em Janeiro.

Desde há vários meses, Israel bombardeia alvos iranianos na Síria sem que a defesa russa os proteja. No decurso das últimas semanas, Moscovo ofereceu a Damasco mísseis S-300 que lhe permitem assegurar, por si mesmo, a defesa antiaérea do país. No entanto, os bombardeamentos israelitas contra os Iranianos prosseguiram. No fim de Janeiro, segundo a agência de notícias turca Anadolu, duas unidades do Exército Árabe Sírio teriam lutado entre si. A primeira estava enquadrada por oficiais Russos, a segunda por Iranianos.

A conferência de Varsóvia acontece quando os Democratas dos EUA retomaram a maioria na Câmara dos Representantes, mas o Xeque Rohani não será salvo por eles. É provável que o seu país vá pagar duramente a incoerência da sua política.

Thierry Meyssan* | Voltaire.net,org | Tradução Alva

* Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras: L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación(Monte Ávila Editores, 2008).

Imagem: Da esquerda para a direita: o Aiatola Ahmad Jannati (Presidente da Assembleia dos peritos, os 86 sábios religiosos que presidem ao Irão); o Aiatola Sadeq Larijani (Chefe da Justiça islâmica); o Aiatola Ali Khamenei (Guia da Revolução); o Xeque Hassan Rohani (Presidente da República islâmica); Ali Larijani (irmão do segundo e Presidente da Assembleia Nacional).

Notas:
[1] “Mike Pompeo’s Remarks at the American University in Cairo”, by Mike Pompeo, Voltaire Network, 10 January 2019.
[2] « Elliott Abrams, le "gladiateur" converti à la "théopolitique" », par Thierry Meyssan, Réseau Voltaire, 14 février 2005.
[3] « Sommet historique pour sceller l’Alliance des guerriers de Dieu », Réseau Voltaire, 17 octobre 2003.
[4] Uma Comissão do Senado francês investiga actualmente para saber se o encarregado de assistência do Eliseu, Alexandre Benalla, era ou não remunerado por Iskander Makhmudov quando trabalhava ao lado do Presidente Emmanuel Macron. Nesta fase, apenas os pagamentos de Makhmudov a Vincent Crasse foram confirmados.
[5] « Opération manquée au Venezuela », par Thierry Meyssan, Réseau Voltaire, 18 mai 2002.
[6Sous nos yeux, Du 11-Septembre à Donald Trump, Thierry Meyssan, éditions Demi-Lune, 2017.
[7] “Israel e o Irão exploram conjuntamente o oleoduto Eilat-Ashkelon”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 9 de Janeiro de 2018.
[8] “Processo Secreto: 15 anos de prisão para o Vice-presidente de Ahmadinejad Tradução Alva, Rede Voltaire, 30 de Março de 2018.

Para desestabilizar governos, chame Elliott Abrams


Sinais de hipocrisia: o assessor indicado por Trump para “restaurar a democracia” na Venezuela está envolvido em golpes, acobertamento de massacres, guerras sujas e até depoimentos falsos ao Congresso dos EUA…

Jon Schwarz, em The Intercept Brasil | Outras Palavras

Em 11 de Dezembro de 1981, em El Salvador, uma unidade militar salvadorenha criada e treinada pelo Exército dos EUA começou a abater todas as pessoas que encontrou em um vilarejo remoto chamado El Mozote. Antes de assassinar as mulheres e as meninas, os soldados as estupravam repetidamente, incluindo algumas de apenas 10 anos de idade, brincando que suas preferidas eram as de 12 anos. Uma testemunha descreveu um soldado atirando uma criança de 3 anos para o alto e a empalando com sua baioneta. O número final de mortos foi de mais de 800 pessoas.

O dia seguinte, 12 de dezembro, foi o primeiro dia de trabalho para Elliott Abrams como secretário de Estado adjunto para os direitos humanos e assuntos humanitários no governo Reagan. Abrams entrou em ação, ajudando a encobrir o massacre. Em depoimento ao Senado, Abrams disse que notícias a respeito do que havia acontecido “não tinham credibilidade” e que tudo estava sendo “significativamente mal utilizado” como propaganda por guerrilheiros antigovernamentais.

Na sexta-feira passada, o secretário de Estado Mike Pompeo nomeou Abrams como enviado especial dos Estados Unidos para a Venezuela. Segundo Pompeo, Abrams “será responsável por todas as coisas relacionadas aos nossos esforços para restaurar a democracia” na nação rica em petróleo.

A escolha de Abrams envia uma mensagem clara à Venezuela e ao mundo: o governo Trump pretende brutalizar a Venezuela, ao mesmo tempo em que produz um fluxo de discursos obsequiosos sobre o amor dos Estados Unidos pela democracia e os direitos humanos. Combinar esses dois fatores – a brutalidade e a magnanimidade – é a principal competência de Abrams.

Anteriormente, Abrams serviu em uma infinidade de funções nos governos de Ronald Reagan e George W. Bush, muitas vezes com títulos declarando foco na moralidade. Primeiro, foi secretário de Estado adjunto para assuntos de organização internacional (em 1981); depois, o cargo de “direitos humanos” do departamento de Estado mencionado acima (de 1981 a 1985); secretário de Estado adjunto para assuntos interamericanos (de 1985 a 1989); diretor-sênior de democracia, direitos humanos e operações internacionais do Conselho de Segurança Nacional (de 2001 a 2005); e, finalmente, consultor adjunto de segurança nacional de Bush para a estratégia da democracia global (de 2005 a 2009).

Nessas posições, Abrams participou de muitos dos atos mais sinistros da política externa norte-americana dos últimos 40 anos, sempre proclamando o quanto se importava com os estrangeiros que ele e seus amigos estavam assassinando. Em retrospecto, é inquietante ver como Abrams quase sempre esteve presente quando as ações dos EUA eram mais sórdidas.

Abrams, graduado do Harvard College e da Harvard Law School, juntou-se ao governo Reagan em 1981, aos 33 anos. Logo recebeu uma promoção devido a um golpe de sorte: Reagan queria nomear Ernest Lefever como secretário de Estado adjunto para os direitos humanos e assuntos humanitários, mas a nomeação de Lefever encalhou quando dois de seus irmãos revelaram que ele acreditava que os afro-americanos eram “inferiores, intelectualmente falando”. Um Reagan decepcionado foi forçado a recorrer a Abrams como segunda opção.

Uma preocupação central do governo Reagan na época era a América Central – em particular, quatro nações adjacentes: Guatemala, El Salvador, Honduras e Nicarágua. Todas haviam sido dominadas desde a sua fundação por minúsculas elites brancas e cruéis, com um século de ajuda das intervenções dos EUA. Em cada um desses países, as famílias dominantes viam os outros habitantes de sua sociedade como animais de forma humana, que podiam ser usados ou mortos, conforme necessário.

Porém, pouco antes da posse de Reagan, Anastasio Somoza, o ditador da Nicarágua e aliado dos EUA, foi derrubado por uma revolução socialista. Os reaganistas viram isso racionalmente como uma ameaça aos governos dos vizinhos da Nicarágua. Todos os países tinham grandes populações que, da mesma forma, não gostavam de trabalhar nas plantações de café ou de ver os filhos morrerem de doenças facilmente tratáveis. Alguns pegariam em armas e alguns simplesmente tentariam manter a cabeça baixa, mas todos, do ponto de vista dos guerreiros frios da Casa Branca, eram provavelmente “comunistas” recebendo ordens de Moscou. Eles precisavam aprender uma lição.

El Salvador

O extermínio de El Mozote foi apenas uma gota no rio do que aconteceu em El Salvador durante os anos 1980. Cerca de 75 mil salvadorenhos morreram durante o que é chamado de “guerra civil”, embora quase todos os assassinatos tenham sido perpetrados pelo governo e seus esquadrões da morte.

Os números por si só não contam a história toda. El Salvador é um país pequeno, do tamanho do estado norte-americano de Nova Jersey. O número equivalente de mortes nos EUA seria de quase 5 milhões. Além disso, o regime salvadorenho continuamente se engajou em atos de barbárie tão hediondos que não há equivalente contemporâneo, exceto talvez o ISIS. Em uma ocasião, um padre católico relatou que uma camponesa deixou brevemente seus três filhos pequenos aos cuidados de suas mãe e irmã. Quando voltou, descobriu que todos os cinco haviam sido decapitados pela guarda nacional salvadorenha. Seus corpos estavam sentados ao redor de uma mesa, com as mãos postas nas cabeças diante deles, “como se cada corpo estivesse acariciando a própria cabeça”. A mão de um, uma criança pequena, aparentemente continuava escorregando da cabecinha, de modo que havia sido pregada nela. No centro da mesa, havia uma grande tigela cheia de sangue.

A crítica da política dos EUA na época não estava confinada à esquerda. Durante esse período, Charles Maechling Jr., que havia liderado o planejamento do departamento de contra-insurgência durante a década de 1960, escreveu no Los Angeles Times que os EUA estavam apoiando “oligarquias semelhantes à máfia” em El Salvador e em outros lugares e eram diretamente cúmplices em “métodos dos esquadrões de extermínio de Heinrich Himmler”.

Abrams foi um dos arquitetos da política do governo Reagan de apoio total ao governo salvadorenho. Ele não tinha escrúpulos em relação a nada disso nem piedade de quem escapasse do matadouro salvadorenho. Em 1984, soando exatamente como os funcionários de Trump hoje, Abrams explicou que os salvadorenhos que estavam nos EUA ilegalmente não deveriam receber nenhum tipo de status especial. “Alguns grupos argumentam que imigrantes ilegais que são enviados de volta a El Salvador enfrentam perseguição e muitas vezes a morte”, ele disse à Câmara dos Deputados. “Obviamente, não acreditamos nessas alegações, ou não deportaríamos essas pessoas.”

Mesmo fora do cargo, 10 anos após o massacre de El Mozote, Abrams expressou dúvidas de que algo desagradável houvesse ocorrido lá. Em 1993, quando uma comissão da verdade das Nações Unidas descobriu que 95% dos atos de violência ocorridos em El Salvador desde 1980 haviam sido cometidos por amigos de Abrams no governo salvadorenho, ele chamou o que ele e seus colegas no governo Reagan haviam feito de uma “realização fabulosa”.

Guatemala

A situação na Guatemala durante os anos 1980 era praticamente a mesma, assim como as ações de Abrams. Depois que os EUA arquitetaram a derrubada do presidente democraticamente eleito da Guatemala em 1954, o país havia sucumbido a um pesadelo em torno de ditaduras militares. Entre 1960 e 1996, em outra “guerra civil”, 200 mil guatemaltecos foram mortos – o equivalente a talvez 8 milhões de pessoas nos Estados Unidos. Uma comissão da ONU descobriu depois que o estado guatemalteco foi responsável por 93% das violações dos direitos humanos.

Efraín Ríos Montt, que serviu como presidente da Guatemala no início dos anos 1980, foi considerado culpado em 2013 pelo sistema de justiça da própria Guatemala de cometer genocídio contra os indígenas maias do país. Durante a administração de Ríos Montt, Abrams pediu o levantamento de um embargo às remessas de armas dos EUA para a Guatemala, alegando que Ríos Montt havia “trazido progresso considerável”. Os EUA tiveram de apoiar o governo guatemalteco, argumentou Abrams, porque “se assumirmos a atitude de ‘não nos procurem até estarem perfeitos, vamos nos afastar desse problema até que a Guatemala tenha um registro de direitos humanos perfeito’, e deixaremos na mão as pessoas que estão tentando progredir”. Um exemplo das pessoas que estavam fazendo um esforço honesto, segundo Abrams, era Ríos Montt. Graças a Ríos Montt, “houve uma tremenda mudança, especialmente na atitude do governo em relação à população indígena”. (A condenação de Ríos Montt foi mais tarde anulada pela mais alta corte civil da Guatemala, e ele morreu antes que um novo julgamento pudesse terminar.)

Nicarágua

Abrams se tornaria mais conhecido por seu envolvimento entusiasmado com o esforço do governo Reagan para derrubar o revolucionário governo sandinista da Nicarágua. Ele defendeu a invasão total da Nicarágua em 1983, imediatamente após o bem-sucedido ataque dos Estados Unidos à pequena nação insular de Granada. Quando o Congresso cortou fundos para os Contras, força guerrilheira antissandinista criada pelos Estados Unidos, Abrams conseguiu persuadir o sultão de Brunei a desembolsar US$ 10 milhões pela causa. Infelizmente, Abrams, agindo sob o codinome “Kenilworth”, forneceu ao sultão o número errado da conta bancária na Suíça, de modo que o dinheiro foi transferido para um beneficiário sortudo aleatório.

Abrams foi questionado pelo Congresso sobre suas atividades relacionadas aos contras e mentiu abundantemente. Mais tarde, ele se declarou culpado de duas acusações de retenção de informações. Uma era sobre o sultão e seu dinheiro, e outra, sobre o conhecimento de Abrams de um avião C-123 de reabastecimento dos contras que havia sido abatido em 1986. Em uma bela rima histórica com sua nova função na administração Trump, Abrams já havia tentado obter dois C-123 para os contras dos militares da Venezuela.

Abrams recebeu uma sentença de 100 horas de prestação de serviço comunitário e considerou todo o caso como uma injustiça de proporções cósmicas. Logo escreveu um livro em que descreveu seu monólogo interior sobre seus acusadores, que dizia: “Seus desgraçados miseráveis e imundos, seus sanguessugas!” Mais tarde, ele foi perdoado pelo presidente George H. W. Bush na saída dele após perder a eleição de 1992.

Panamá

Embora isso esteja esquecido agora, antes dos Estados Unidos invadirem o Panamá para derrubar Manuel Noriega em 1989, este era um aliado próximo dos EUA – apesar de o governo Reagan saber que ele era um traficante de drogas em larga escala.

Em 1985, Hugo Spadafora, uma figura popular no Panamá e seu ex-vice-ministro da saúde, acreditava ter obtido provas do envolvimento de Noriega no tráfico de cocaína. Ele estava em um ônibus a caminho da Cidade do Panamá para torná-las públicas quando foi capturado por capangas de Noriega.

De acordo com o livro “Overthrow” (Derrubada), do ex-correspondente do New York Times, Stephen Kinzer, a inteligência dos EUA pegou Noriega dando aos seus subalternos a permissão para derrubar Spadafora como “um cão raivoso”. Spadafora foi torturado durante uma longa noite e teve a cabeça serrada enquanto ainda estava vivo. Quando o corpo foi encontrado, o estômago de Spadafora estava cheio de sangue que ele engoliu.

Foi algo tão terrível que chamou a atenção das pessoas. Mas Abrams saltou em defesa de Noriega, impedindo o embaixador dos EUA no Panamá de aumentar a pressão sobre o líder panamenho. Quando o irmão de Spadafora convenceu o hiperconservador senador do Partido Republicano da Carolina do Norte, Jesse Helms, a realizar audiências no Panamá, Abrams disse a Helms que Noriega estava “sendo realmente útil para nós” e “não era um problema tão grande assim. … Os panamenhos prometeram que vão nos ajudar com os contras. Se você fizer as audiências, isso os alienará”.

… E isso não é tudo

Abrams também se envolveu em conduta ilegal por nenhuma razão discernível, talvez apenas para ficar em forma. Em 1986, uma jornalista colombiana chamada Patricia Lara foi convidada aos EUA para participar de um jantar de homenagem a escritores que haviam promovido “o entendimento interamericano e a liberdade de informação”. Quando Lara chegou ao aeroporto Kennedy, em Nova York, foi levada sob custódia e depois colocada em um avião de volta para casa. Logo depois, Abrams apareceu no programa “60 minutos” para alegar que Lara era membro dos “comitês dirigentes” do M-19, um movimento guerrilheiro colombiano. Ainda segundo Abrams, ela era também “uma ligação ativa” entre o M-19 “e a polícia secreta cubana”.

Dada a frequente violência paramilitar de direita contra os repórteres colombianos, isso representou um alvo marcado nas costas de Lara. Não houve evidência de que as afirmações de Abrams fossem verdadeiras – o próprio governo conservador da Colômbia as negou – e nenhuma apareceu desde então.

Os enganos sem fim e desavergonhados de Abrams desgastaram repórteres americanos. “Eles diziam que preto era branco”, explicou mais tarde Joanne Omang, do Washington Post, sobre Abrams e seu colega na Casa Branca, Robert McFarlane. “Embora tivesse usado todos os meus recursos profissionais, enganei meus leitores.” Omang ficou tão exausta com a experiência, que largou o emprego tentando descrever o mundo real para tentar escrever ficção.

Após a condenação, Abrams passou a ser visto como um problema que não podia retornar ao governo. Isso o subestimou. O almirante William J. Crowe Jr., ex-comandante dos chefes de estado maior conjunto, envolveu-se ferozmente com Abrams em 1989 sobre a política dos EUA quanto a Noriega, depois que ficou claro que ele era mais problemático do que era possível aceitar. Crowe se opôs fortemente à brilhante ideia que Abrams havia apresentado: de que os Estados Unidos deveriam estabelecer um governo no exílio em solo panamenho, o que exigiria a guarda de milhares de soldados norte-americanos. Foi algo profundamente estúpido, Crowe disse, mas isso não importava. Prescientemente, Crowe emitiu um aviso sobre Abrams: “Esta cobra é difícil de matar”.

Para a surpresa dos iniciados mais ingênuos de Washington, Abrams estava de volta à ativa logo depois de George W. Bush entrar na Casa Branca. Como poderia ser difícil obter aprovação do Senado para alguém que havia enganado o Congresso, Bush o colocou em um cargo no Conselho de Segurança Nacional – onde não era necessária qualquer aprovação do Legislativo. Assim como ocorrera 20 anos antes, Abrams recebeu um portfólio envolvendo “democracia” e “direitos humanos”.

Venezuela

No início de 2002, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, havia se tornado profundamente irritante à Casa Branca de Bush, que estava repleta de veteranos das batalhas dos anos 1980. Naquele mês de abril, de repente, do nada, Chávez foi expulso do poder em um golpe. Se e como os EUA estavam envolvidos ainda não é conhecido, e provavelmente não será por décadas até que os documentos relevantes sejam desclassificados. Mas, com base nos cem anos anteriores, seria surpreendente que os Estados Unidos não tenham desempenhado nenhum papel nos bastidores. Pelo que se sabe, na época, o London Observer relatou que “a figura crucial em torno do golpe foi Abrams”, e ele “deu um aceno” aos conspiradores. De qualquer modo, Chávez teve apoio popular suficiente para conseguir se reagrupar e voltar ao cargo em questão de dias.

Irão

Aparentemente, Abrams desempenhou um papel importante no silenciamento de uma proposta de paz do Irã em 2003, logo após a invasão do Iraque pelos EUA. O plano chegou por fax, e deveria ter ido para Abrams e depois para Condoleezza Rice, na época conselheira de segurança nacional de Bush. Em vez disso, de alguma forma, a proposta nunca chegou à mesa de Rice. Quando perguntado a respeito disso mais tarde, o porta-voz de Abrams respondeu que ele “não tinha lembrança de qualquer fax do tipo”. (Abrams, como tantas pessoas que prosperam no nível mais alto da política, tem uma memória terrível para qualquer coisa política. Em 1984, ele disse a Ted Koppel que não conseguia se lembrar se os EUA haviam investigado relatos de massacres em El Salvador. Em 1986, quando perguntado pelo comitê de inteligência do Senado se havia discutido a arrecadação de fundos para os contras com qualquer pessoa da equipe do Conselho de Segurança Nacional, também não conseguiu se lembrar.)

Israel e Palestina

Abrams também esteve no centro de outra tentativa de frustrar o resultado de uma eleição democrática, em 2006. Bush havia pressionado por eleições legislativas na Cisjordânia e em Gaza para dar à Fatah, a organização palestina altamente corrupta liderada pelo sucessor de Yasser Arafat, Mahmoud Abbas, uma legitimidade muito necessária. Para surpresa de todos, o rival do Fatah, o Hamas, ganhou, dando-lhe o direito de formar um governo.

Esse desagradável surto de democracia não foi aceitável para o governo Bush, em especial para Rice e Abrams. Eles elaboraram um plano para formar uma milícia da Fatah para assumir a Faixa de Gaza e esmagar o Hamas em seu território. Como relatado pela Vanity Fair, isso envolveu muita tortura e execuções. Mas o Hamas combateu o Fatah com sua própria ultraviolência. David Wurmser, neoconservador que trabalhava para Dick Cheney na época, disse à Vanity Fair: “Parece-me que o que aconteceu não foi tanto um golpe do Hamas, mas uma tentativa de golpe do Fatah que foi esvaziada antes que pudesse acontecer”. No entanto, desde então, esses eventos foram virados de cabeça para baixo pela mídia dos EUA, com o Hamas sendo apresentado como o agressor.

Embora o plano dos EUA não tenha sido um sucesso total, também não foi um fracasso total da perspectiva dos Estados Unidos e de Israel. A guerra civil palestina dividiu a Cisjordânia e Gaza em duas entidades, com governos rivais em ambos. Nos últimos 13 anos, houve poucos sinais da unidade política necessária para que os palestinos tivessem uma vida digna para si mesmos.

Abrams então deixou o cargo com a saída de Bush. Mas agora está de volta para uma terceira rodada pelos corredores do poder – com os mesmos tipos de esquemas que executou nas duas primeiras vezes.

Recapitulando a vida de mentiras e crueldade de Abrams, é difícil imaginar o que ele poderia dizer para justificá-la. Mas ele tem uma defesa para tudo o que fez – e é uma boa defesa.

Em 1995, Abrams apareceu no “The Charlie Rose Show” com Allan Nairn, um dos repórteres americanos mais versados sobre a política externa dos EUA. Nairn observou que George H. W. Bush já havia discutido colocar Saddam Hussein em julgamento por crimes contra a humanidade. Essa era uma boa ideia, disse Nairn, mas “se você é sério, precisa ser imparcial” – o que significaria também processar funcionários como Abrams.

Abrams riu diante do absurdo de tal conceito. Isso exigiria, disse ele, “colocar todos os funcionários americanos que venceram a Guerra Fria no banco dos réus”.

Abrams estava em grande parte certo. A realidade angustiante é que Abrams não é um bandido isolado, mas um respeitado e honrado membro da centro-direita do establishment da política externa dos EUA. Seus primeiros empregos antes de ingressar no governo Reagan foram trabalhar para dois senadores democratas, Henry Jackson e Daniel Moynihan. Ele era um membro sênior do conselho centrista de relações exteriores. Ele é membro da comissão dos EUA sobre liberdade religiosa internacional e agora está no conselho do National Endowment for Democracy. Ele deu aulas à próxima geração de funcionários de política externa na Escola de Serviço Exterior da Universidade de Georgetown. Ele não enganou Reagan e George W. Bush de alguma forma – eles queriam exatamente o que Abrams fornecia.

Portanto, não importam os detalhes macabros da carreira de Abrams, o importante a ser lembrado – conforme a águia americana aperta suas garras afiadas em torno de outro país da América Latina – é que Abrams não é tão excepcional assim. Ele é sobretudo uma engrenagem em uma máquina. É a máquina que é o problema, não suas partes mal intencionadas.

Extraído de Outras Palavras | Tradução: Cássia Zanon

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E o Estado brasileiro torna-se ainda mais opaco


Consultor da Transparência Internacional alerta: ao permitir que ABIN torne sigilosos documentos do poder, governo esvazia Lei de Acesso à Informação e promove ataque claro à democracia

Fabiano Angélico, entrevistado por Edson Sardinha, no Congresso em Foco | em Outras Palavras

Um dos principais estudiosos da Lei de Acesso à Informação (LAI) no país, o consultor da Transparência Internacional Brasil Fabiano Angélico criticou, nesta quarta-feira (6), a decisão do ministro Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) de delegar ao diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) competência para deixar um documento ou alguma informação pública longe da sociedade por até 25 anos, renováveis por outros 25.

Para Fabiano Angélico, a medida compromete o controle democrático e confirma o equívoco do governo com o decreto presidencial de 24 de janeiro que permite que servidores comissionados e chefes de autarquias, fundações e empresas públicas decretem sigilo a dados públicos considerados ultrassecretos.

“É muito ruim que uma das primeiras ações deste governo seja delegar esse poder à Abin, que é uma entidade que já tem uma forma de pensar voltada ao sigilo, porque é um órgão de inteligência. Isso coloca em risco o controle democrático. Vamos ter ainda mais dificuldade para entender o funcionamento de algumas instituições”, criticou Fabiano em entrevista ao Congresso em Foco.

A portaria do ministro Augusto Heleno, publicada na edição desta quarta do Diário Oficial da União, é a primeira assinada após o decreto presidencial que ampliou o número de servidores que podem atribuir sigilo ultrassecreto (de 25 anos) a dados públicos.

No caso da Abin, também poderão classificar informações em grau secreto (15 anos), além do diretor-geral, o diretor-adjunto, o secretário de Planejamento e Gestão, diretores das unidades da agência e ocupantes de cargo em comissão do Grupo Direção e Assessoramento Superiores (DAS 101.5).

Para rebater as críticas à mudança, o governo alegou que a delegação do poder de classificar as informações secretas e ultrassecretas seria analisada caso a caso. Mas, segundo Fabiano Angélico, a portaria do ministro Augusto Heleno mostra que a realidade será diferente. “O que se delegou à Abin foi amplo poder. Abriu a porteira geral. É mais um item a corroborar o argumento de que o decreto abriu demais a porta sem nenhum critério técnico objetivo para dar poder sobre a classificação de informações sigilosas”, observa o consultor da Transparência Internacional Brasil.

Cultura da transparência

Autor do livro Lei de Acesso à Informação: reforço ao controle democrático, Fabiano Angélico considera que o decreto contraria as diretrizes da norma e o princípio da publicidade previsto na Constituição, que incentivam a promoção da cultura da transparência na administração pública e o controle social. “É um erro delegar a subordinados a classificação de informações. Isso tem de ser de responsabilidade da autoridade máxima. Quem deve tomar a decisão política de classificar a informação é o ministro. Há um risco de expandir a autoridade e torná-la difusa”, acrescenta.

Antes do decreto assinado pelo vice-presidente Hamilton Mourão – que substituía o presidente Jair Bolsonaro no fim de janeiro –, a classificação em grau ultrassecreto só podia ser feita pela chamada alta administração, que inclui presidente, vice, ministros e comandantes das Forças Armadas.

O decreto ampliou esse poder para comissionados do grupo DAS 101.6 com remuneração de R$ 16.944,90, além de chefes de autarquias, de fundações, de empresas públicas e de sociedades de economia mista. De acordo com levantamento feito por entidades contrárias ao decreto, cerca de 1,3 mil funcionários públicos com diferentes funções estarão aptos à função, “abrindo espaço para que o volume de informações classificadas como ultrassecretas e secretas aumente”.

Retrocesso

Especialistas na Lei de Acesso à Informação consideram o decreto um retrocesso. O entendimento é de que, com a ampliação do número de pessoas que podem decidir sobre o sigilo de dados públicos, deverá aumentar o volume de informações que não poderão ser acessadas pela população.

“Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”, diz trecho da Lei de Acesso, assinada pela ex-presidente Dilma no fim de 2011.

O decreto do vice-presidente também amplia a relação de comissionados que poderão conferir a informações públicas os graus secreto (de 15 anos) e reservado (5 anos). De acordo com a LAI, os documentos que não estiverem protegidos como ultrassecretos, secretos e reservados devem estar disponíveis a qualquer cidadão. O governo alega que o objetivo da mudança é tornar o processo menos burocrático.

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Brasil | Em Porto Alegre, retrato da “nova” política indigenista


Em conflito contra megaprojeto imobiliário, famílias Guarani Mbya são ameaçadas de morte. Só em 2019, já são pelo menos 8 ataques contra povos indígenas de Norte a Sul do Brasil

Marcelo Ferreira, no Brasil de Fato | em Outras Palavras

A madrugada do dia 11 de janeiro registrou um atentado contra a vida das famílias Guarani Mbya que realizam uma retomada de território na área de preservação ambiental conhecida como Ponta do Arado, na Zona Sul de Porto Alegre. Dois homens encapuzados dispararam contra os barracos dos indígenas e os ameaçaram de morte caso não desocupassem o local. “Foram muitos tiros”, relata o cacique Timóteo Karai Mirim.

No dia seguinte, os indígenas e grupos apoiadores registraram um boletim de ocorrência e a polícia civil encontrou cápsulas e munição não deflagrada na areia, próximo à cerca que a Arado Empreendimentos Imobiliários instalou no local. A contenção confina o grupo a uma pequena faixa de marinha nas margens do lago Guaíba, sem acesso via terrestre, sem água potável e sob constante vigilância e ameaça de seguranças privados.

A empresa, que é proprietária do terreno e luta na justiça para iniciar a construção de um condomínio de luxo com cerca de 1,6 mil unidades habitacionais, diz que a cerca serve para “evitar o avanço do desmatamento do local e da caça dos animais silvestres”.

Representantes do Ministério Público Federal (MPF) estiveram no local e encontraram os indígenas abalados, mas firmes na vontade de permanecer na área que abriga um sítio arqueológico pré-colonial que atesta a ocupação pelos guaranis.

Retomada em área de disputa judicial

Antes de ocuparem, em julho de 2017, os guaranis solicitaram ao MPF um grupo de estudos para demarcação da terra. Com isso, explica Carmem Guardiola, pesquisadora associada ao Núcleo de antropologia das sociedades Indígenas e Tradicionais da UFRGS (NIT), o caso aguarda na alçada federal.

“A Ponta do Arado fica em área considerada rural pela prefeitura mas que, em virtude do megaprojeto da empresa, através de uma manipulação no legislativo, passou a ser uma área urbana para poder receber o condomínio. Quando os guaranis chegaram ali, já haviam muitos conflitos entre o setor imobiliário e a comunidade e ambientalistas”, afirma a pesquisadora.

Em 2015, uma iniciativa do então prefeito de Porto Alegre, José Fortunati (PDT), modificou o plano diretor da cidade e retirou da área rural parte do bairro Belém Novo, no extremo sul da capital gaúcha. A medida favorecia a implementação do Condomínio Fazenda Arado Velho e foi feita a toque de caixa, sem a realização de audiência pública, como exige a Constituição Estadual.

Megaprojeto tem alto custo ambiental

Roberto Liebgott, coordenador do Conselho Indigenista Missionário-Regional Sul (CIMI-SUL), aponta que a manobra que alterou o plano diretor foi contestada pelo Ministério Público Estadual (MPE) e o projeto está embargado por uma liminar concedida em 2017, que suspendeu as alterações da lei. “O local é rico em biodiversidade, rico em águas, ali há matas ciliares importantes, enfim, toda uma composição ambiental muito importante naquela região e que é foco de luta dos movimentos ambientalistas há anos. Se o condomínio acontecer vai causar uma enorme devastação”, avalia Liebgott.

Juridicamente, é um caso truncado, que aguarda decisão de um pedido de transferência da competência do processo da justiça estadual para a justiça federal, por se tratar de demanda indígena, de responsabilidade da União. A empresa conseguiu liminar impedindo a entrada dos indígenas em seu território, confinando-os na orla, mas teve negado o pedido de reintegração de posse.

“Enquanto o processo está parado ninguém pode nem consegue dizer nada”, comenta Guardiola. “Quando fomos conversar com o procurador, eu disse que os caminhos judiciais existem e devem acontecer, e estão sendo percorridos. Mas e para hoje, no mundo real, que segurança os indígenas têm ao voltar para casa? Nenhuma!”, conclui a pesquisadora.

Demarcação na mão dos ruralistas

Em sua primeira medida como presidente, Bolsonaro retirou da Fundação Nacional do Índio (Funai) a atribuição de demarcar terras indígenas e a passou para o Ministério da Agricultura, comandado por Tereza Cristina (DEM). A ministra, deputada conhecida como “musa do veneno”, liderou a frente parlamentar da agropecuária em 2018. A Funai, esvaziada, passou para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, da ministra Damares Alves. Esta, por sua vez, é acusada de levar sua filha adotiva irregularmente da sua família biológica, da aldeia Kamayurá, reserva do Xingu, no Mato Grosso.

No Twitter, Bolsonaro afirmou que vai “integrar” indígenas ao que chama de “o Brasil de verdade”. “Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs”, publicou na rede social.

Para o coordenador do CIMI-SUL, além desse discurso de integração que vai na contramão de toda luta histórica dos povos originários no Brasil, há o discurso religioso fundamentalista “que rompe com qualquer perspectiva do direito à diferença, de que os povos possam se manifestar de acordo com seus costumes e crenças”.

Ainda segundo ele, o cenário fortalece grupos econômicos que historicamente se colocam contra os direitos indígenas: “O estado acabava exercendo uma certa fiscalização para que esses setores não extrapolassem, impedindo a invasão e depredação sistemática das terras indígenas. Agora, passa a se a dar um aval para que esses setores retomem sua saga expansionista”.

“É um retrocesso ao tempo da ditadura, de um tempo em que o estado tentava aniquilar a cultura indígena. Não estamos otimistas, mas os indígenas estão se organizando, estão usando o caminho judicial, seguindo as leis da constituição que eles conquistaram”, desabafa Guardiola, recordando que a organização dos indígenas e o auxílio de apoiadores é o que tem garantido o mínimo de segurança na retomada na Ponta do Arado.

Modo de vida indígena cura o meio ambiente

Um estudo lançado em 2015 pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) demonstra a relação benéfica dos indígenas com as florestas, na preservação do clima e do meio ambiente. Dados entre o período de 2000 a 2014 apontam uma taxa de desmatamento de 2% em terras indígenas. Nas áreas de entorno, não protegidas pelo modo de vida tradicional, o desmatamento superou os 19%.

“A importância dos povos indígenas para a preservação ambiental é evidente quando você verifica hoje o mapa do Brasil. As áreas que ainda são preservadas, embora já sejam objeto de invasão, são terras indígenas ou quilombolas, especialmente no Amazonas, mas mesmo aqui nas regiões Sul e Sudeste”, comenta Liebgott. “Há uma composição de interesse humano e também cosmológico que compõe a existência dos povos indígenas. A vida humana interage com todos os seres da terra e também com seres espirituais. Por isso, não se dão bem com grandes lavouras nem com áreas degradadas”, explica.

“É um modo avesso ao capitalismo, o modo tradicional”, afirma a pesquisadora do NIT. “Por isso, ele de fato faz com que o meio ambiente fique preservado. E os guaranis são um povo de mato, que normalmente fica perto do urbano, mas não muito, circulando entre aldeias. Em outro tempo, tinham liberdade de caminhar pelo território com todos os elementos cosmológicos necessários para viverem felizes. No mundo guarani não existe cerca, não existe propriedade”, conclui Guardiola.

Extraído de Outras Palavras

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Sacrifício não global


José Ferrer [*]

1. A discutível base científica do aquecimento global
2. A vulgata do aquecimento global
3. Que pensar, que fazer?
4. A base religiosa do aquecimento global
5. O aquecimento global e a política


1. A discutível base científica do aquecimento global 

Como é do conhecimento público, o fundamento científico da tese do aquecimento global no planeta Terra (a tese diz que o mesmo vem ocorrendo por causa do aumento do teor de dióxido de carbono antropogénico na atmosfera terrestre) está, no mínimo, sujeito a enorme controvérsia.

Os seus defensores invocam o "consenso científico" entre "a maior parte dos cientistas", nestes incluindo os cerca de mil membros integrantes do Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática[1] , organismo da ONU também composto, porém, por muitas pessoas licenciadas em disciplinas científicas alheias à climatologia. Propõem-nos, assim, que a ciência (pelo menos esta ciência) se constrói sob consenso (Galileu esquecido?) e apelidam de negacionistas os climatologistas que dela discordam, acentuando tratar-se alegadamente de uma minoria.

Minoria que não atribui importância ao chamado efeito de estufa adicional que o dióxido de carbono antropogénico desempenhará.

Os defensores do aquecimento global insistem em que partem do tratamento de muitos milhares de dados em modelos computadorizados do clima e proclamam que a temperatura da atmosfera subiu cerca de 1ºC desde o início da revolução industrial, acompanhando a subida do teor de dióxido de carbono na atmosfera, aumento que atribuem à queima de combustíveis ditos fósseis: carvão, petróleo, gás natural.

Proclamam, ainda, que, mantendo-se o consumo de combustíveis fósseis, o aumento de mais de 1ºC ditará enormes catástrofes atmosféricas, isto porque o clima ficará substancialmente modificado.

Mas não são poucos os climatologistas que discordam da mencionada tese do aquecimento global. Porque a mesma não é consentânea com muitos factos: existência da Gronelândia (terra verde) no tempo dos Vikings (a temperatura no hemisfério norte era seguramente superior à actual, mas muito menor o teor de dióxido de carbono antropogénico na atmosfera), abaixamento da temperatura nas três décadas após o fim da Segunda Grande Guerra apesar de nesse período a concentração de dióxido de carbono antropogénico na atmosfera ter continuado a crescer, etc.

Da parte destes climatologistas há quem aponte o dedo: os defensores do aquecimento global esquecem a influência no clima terrestre do que se passa com o Sol, enquanto estrela pulsante, e, além disso, reduzem o Planeta ao território emerso, quando os oceanos ocupam 71% da superfície terrestre. Assim, dentre eles há quem observe: teremos que inverter a proclamação da tese do aquecimento global, pelo que, quando os oceanos arrefecem, baixa o teor do dióxido de carbono na atmosfera, quando os oceanos aquecem, aumenta em seguida o teor do dióxido de carbono na atmosfera. Considerando a influência do Sol, há quem afirme estar já em marcha um arrefecimento global durante as próximas décadas.

Enfim, o climatologista Marcel Leroux não hesitou em escrever que o aquecimento global é uma " impostura científica" [2] .

Convenhamos em que as perspectivas em presença são diversas e as previsões que geram são claramente antagónicas.

2. A vulgata do aquecimento global 

Todos a conhecemos.

O dióxido de carbono (gás da vida, no sentido em que, com a água e a fossíntese, gera o amido e as oses, fundamento da alimentação de animais e de humanos) passou a gás " poluente ", mesmo " tóxico ", explorando-se a fraca difusão da ciência química.

Como " prova " do aquecimento global, todas as catástrofes servem, sejam ciclones, tsunamis, vagas de calor (as de frio são tendencialmente ignoradas), como se antes não tivessem existido. E se tal é observado, logo se proclama: sim, dantes houve, mas agora cresce a frequência de tais fenómenos, quando não também a sua intensidade.

A televisão é imparável na mistificação: exibe há anos imagens de " chaminés" industriais com fumos esbranquiçados, passando a ideia de que tais fumos são sempre poluentes, não cuidando de saber quantas vezes o fumo exibido mais não será do que vapor de água, escondendo ainda que o tal horrível dióxido de carbono é um gás incolor. Mas o seu supra-sumo será a insistência aparentemente na imagem do degelo de um icebergue como "prova" de que, assim, o nível da água do mar irá subir por efeito do aquecimento global; ora, se tal se tratar, de facto, de um icebergue, isso só prova que já esqueceram o Princípio de Arquimedes (tivessem-no em conta, lembrar-se-iam que o degelo do icebergue não altera o nível da água líquida).

Não se ficam por aqui as " consequências " do aquecimento global, porque não só o dióxido de carbono é apontado como " poluente ". Outros gases o são, como o metano, esse ainda mais horrível gás gerado pela decomposição do estrume do gado, motivo pelo qual, além de termos que deixar de consumir combustíveis ditos fósseis, teremos de deixar de comer carne, a começar pela de vaca.

Porque, atenção, se o não fizermos, não vamos " salvar o Planeta ", diz-se. Ou seja, afinal os humanos são poderosos. No mínimo, seremos capazes de regular o clima, não apenas nas nossas casas, ou nas nossas cidades com muitos carros a circular e condicionadores de ar instalados, mas também ao nível global do Planeta.

3. Que pensar, que fazer? 

A síntese apresentada anteriormente induz-nos a pensar que, do ponto de vista científico, está por aperfeiçoar a tese do aquecimento global com base no aumento do dióxido de carbono antropogénico, na hipótese de a mesma persistir.

Estamos, porém, muito longe de vivermos num profícuo ambiente de discussão científica.

Em seu lugar, vimos assistindo há anos à intensificação da disseminação da vulgata do aquecimento global, com atropelo de verdades científicas tidas como válidas desde há muito, como referimos acima.

Como é isto possível, neste século XXI, em que, note-se, se produz tanta ciência em tantos e variados campos do saber?

Como é possível que tantas pessoas adiram à tese do aquecimento global, sendo que de parte delas se não pode dizer que desconheçam os princípios do método científico, as limitações da ciência, mas, também, a sua força?

Há que procurar explicação mais convincente para a base do êxito social da tese do aquecimento global. Se a base científica da tese do aquecimento global é, no mínimo, duvidosa, vejamos o que nos oferece a perspectiva religiosa.

4. A base religiosa do aquecimento global 

Considere-se a seguinte citação, inspiradora no contexto. Em excelente obra a vários títulos, Fernand Braudel, referindo-se à Cartago do século V a.C., ilustra a possibilidade da ocorrência simultânea de uma religião retrógrada e de uma economia virada para o futuro.

(…) é o peso obsessivo da religião cartaginesa que causa problemas, uma religião tenaz, vinda das profundezas do passado pré-histórico, terrível, dominadora. Os sacrifícios humanos – acusação muitas vezes repetida pelos Latinos – são demasiado reais: o tofet de Salambo pôs a descoberto milhares de peças de olaria contendo ossadas calcinadas de crianças. Quando queria exorcizar um perigo, Cartago imolava aos deuses os filhos dos seus mais distintos cidadãos. Foi o que aconteceu quando Agátocles, ao serviço de Siracusa, lançou a guerra no próprio solo de Cartago. Como cidadãos ilustres cometeram então o sacrilégio de substituir os filhos por crianças compradas, foi ordenado um sacrifício expiatório de duzentas crianças. O zelo religioso ofereceu trezentas...Os prisioneiros de guerra também eram imolados, por vezes aos milhares. O sangue destas vítimas mancha o nome de Cartago? (…) o que surpreende é que, em Cartago, a vida económica caminha para o futuro, enquanto a vida religiosa se detém séculos e séculos atrás (…) uma intensa vida de negócios, de espírito "capitalista" (…) alia-se a uma mentalidade religiosa retrógrada [3] .

Assim, em Cartago, quando se queria exorcizar um perigo, imolavam-se "aos deuses os filhos dos seus mais distintos cidadãos", em sacrifício de humanos. Tal a desumanidade a que a crença religiosa já chegou [4] . Consta que a prática ainda não terá sido de todo abandonada, mas a sua expressão será hoje incomensuravelmente menor, desde logo porque as religiões cristãs vigentes, pelo menos oficialmente, parecem não a apoiar.

Outra referência inspiradora da perspectiva religiosa reside na obra Año 303/Inventan El Cristianismo , de Fernando Conde Torrens [5] .

O autor, inicialmente crente, desatou a partir de certa altura a estudar os documentos mais antigos existentes, tendo chegado à conclusão de que terá sido apenas em 303 que o futuro imperador Constantino organizou aquilo a que hoje chamaríamos uma comissão redactorial para redigir os quatro evangelhos, as epístolas de Paulo, etc., ou seja, os documentos fundadores do cristianismo. O autor aponta para duas personagens principais de tal comissão : Lactâncio, o fanático, e Eusébio, de Cesareia, o erudito historiador, que muito bem terá sabido condensar nos documentos cristãos bastante da sabedoria da Humanidade acumulada à época, incluindo a da tradição faraónica.

Constantino terá dado toda a atenção à tese de Lactâncio, antes apresentada a Diocleciano (o imperador romano da tetrarquia, o qual, após 20 anos de governo, se retirou para o palácio da actual Split), de que o império só resistiria se se acabasse com a imensa profusão de crenças e deuses existentes na vastidão das suas regiões, sob pena de o fim do mundo se perfilar. Diocleciano rejeitou a tese da necessidade da criação de uma nova religião. Constantino, porém, terá entendido que isso ajudaria a manter a unidade do império, parecendo certo que a aposta na implantação do cristianismo o serviu como via para se tornar imperador único.

Segundo Torrens, o cristianismo foi disseminado através da criação da Igreja, entenda-se uma vasta rede de bispos espalhados pelos principais aglomerados populacionais do império.

Porém, nem tudo correu bem a Constantino no plano pessoal e familiar, e, segundo Torrens, por causa disso ele próprio ter-se-á inclinado para uma concepção menos fundamentalista (dogmática) do cristianismo aquando do Concílio de Niceia.

De qualquer modo, a marcha da nova religião foi muito irregular após a morte de Constantino, até que, perto do final do século IV, aparece Teodósio e, a ferro e fogo, o cristianismo dogmático é instalado para não mais findar. Segundo Torrens, vai a caminho de 17 séculos, um notável êxito histórico, portanto, ainda que hoje se defronte com a séria expansão do islamismo.

Trago esta contribuição interpretativa da criação e implantação do cristianismo da responsabilidade de um doutorado em engenharia industrial (obviamente que o mesmo e a sua contribuição hão-de ser largamente ostracizados, desde logo porque lhe falta a medalha oficial de historiador) pelas semelhanças que vejo no processo que o mesmo descreve na sua volumosa obra e o que vem ocorrendo com a propagação da tese do aquecimento global.

Da mesma forma que o cristianismo assenta em muitos aspectos na fé, assim vemos que a tese do aquecimento global é difundida sem escrúpulos científicos, mas não lhe faltam demonstrações de adesão de recorte claramente religioso. Pois, na prática, a tese já é apresentada como uma teoria cheia de interpenetrações.

Tudo indica que a igreja do aquecimento global está em propagação, não lhe faltando a sua já imponente rede debispos . Só que, desta vez, o âmbito inicial da implantação da nova religião não se confinou às adjacências do Mediterrâneo, antes logo se apontou para o carácter global que importa que tenha. Talvez por isso, e diferentemente da igreja cristã, que arrancou sem papa, não dispensou a escolha precoce deste, na figura do secretário-geral da ONU.

Outra manifesta semelhança entre os dois processos reside na ideia do fim do mundo. Ou seja, a concepção é a de que os homens são intrinsecamente maus, pelo que, ou aderem e cumprem os preceitos ditados pela igreja, ou contribuirão para o fim do mundo, agora a pressuposta morte do Planeta (decerto que querem dizer morte da vida no Planeta, mas o tremendismo que se impõe apela a fórmulas de linguagem tão terrorista quanto possível), daí a proclamada salvação do Planeta através da chamada descarbonização da economia.

O paralelismo que vimos fazendo leva-nos à pergunta inevitável: se o cristianismo, segundo Torrens, foi concebido e implantado para servir interesses políticos, que interesses políticos se ligarão ao (ou porventura estarão na base do) aquecimento global?

5. O aquecimento global e a política

Notemos: 

  Quem decidiu marcar o limite dito tolerável do aquecimento global de 2ºC em 2050? Ninguém se espante, essa meta foi fixada pelo Conselho da União Europeia! [6]

  E por que razão tal órgão político (agora já todos os outros da UE estão envolvidos) se envolve nesta nova cruzadada indispensabilidade do abandono do consumo de combustíveis fósseis? A resposta parece óbvia: a União Europeia vê-se crescentemente carente de combustíveis fósseis, cada vez mais dependente, portanto, dos oriundos de outras paragens. Logo, há que poupar aquilo que tem sido fundamental para o seu desenvolvimento capitalista desde há dois séculos. E se outros querem desenvolver-se, que escolham outras vias ditas " não poluentes ", a UE tem tecnologia " verde " para lhes vender.

A esta luz, é perfeitamente compreensível que a UE se tenha distinguido na caminhada que levou à aceitação pela ONU da afirmação da premente importância do aquecimento global. E se não for possível encontrar base científica para o mesmo, paciência, faça-se dele, na essência, uma nova religião. Que é bem difícil de desmontar, como sabemos.

Importa assegurar é que, também por esta via, os países menos desenvolvidos se mantenham dependentes. Mais, se se abstiverem de desenvolver (de poluir, diz-se amiúde), até podem receber dinheiro dos países desenvolvidos que mantenham, porventura aumentem, o consumo de combustíveis fósseis. Analise-se o Protocolo de Quioto, e veja-se como, sob o manto diáfano da litania ambientalista, se tem procurado perpetuar, ou renovar, a fase imperialista do capitalismo vigente.

Propagandeia-se, então, o advento de uma nova era, assente em " economia verde ": muitos mais computadores,robots , painéis fotovoltaicos, automóveis eléctricos, etc., e a maioria das pessoas acreditará facilmente que tudo isso será possível sem combustíveis fósseis, porque, diz a nova religião, se trata de " tecnologias limpas ".

E aqui temos a explicação principal pela qual haverá países, como os EUA de Obama, que aderiram à tese do aquecimento global, apesar de disporem de combustíveis fósseis e de os consumirem em grande proporção. Mas, como se ensina com especial ênfase nas Escolas de Gestão, o capitalismo das últimas décadas tem necessidade de retomar a proposta de Schumpeter, da destruição criativa, como trampolim para a renovação do sistema.

Está claro que se escamoteia que a produção daquelas tais novas tecnologias vai carecendo, além de combustíveis fósseis, de metais raros (em processos de facto poluentes e com recurso a combustíveis fósseis), de facto também não uniformemente distribuídos no Planeta. Aqui é a China que dá cartas e não é preciso ser comunista para perceber como o acesso fácil a esses indispensáveis materiais poderá implicar uma nova guerra [7] .

Ou seja, a luta de classes tende, de novo, a agudizar-se. Seja no plano interno da maioria dos Estados em resultado das crescentes desigualdades sociais, seja no plano do confronto dos países capitalistas desenvolvidos com os países subdesenvolvidos.

A Rússia é rica em combustíveis fósseis, além de em vários metais. A China é particularmente rica em metais raros. Trata-se de materiais estratégicos, como vimos de referir. Basta isto para percebermos as tensões existentes com a tríade capitalista dominante das últimas décadas do século XX: EUA, UE, Japão.

A guerra das últimas décadas em torno do petróleo ameaça alastrar aos metais, em particular, aos raros. Só que areligião do aquecimento global está muito bem concebida para dissimular os objectivos reais dessa guerra, que mais não será do que uma nova tentativa de prolongar, ou renovar, o capitalismo. A guerra parecerá aceitável a muitos milhões de pessoas, porque, através de tal cruzada , se salvará o Planeta, eis a nova crença legitimadora de novas atrocidades.

E se estas se concretizarem, ocorrerá, de facto, o sacrifício de muitos milhões, porventura, de milhares de milhões de pessoas. Porque lhes faltará o conforto ligado à disponibilidade energética, porque lhes faltará mais alimentos e comodidades que o capitalismo não assegura a todos, porque muitos serão condenados a morte precoce, mas, atenção, o provável é que o sacrifício não será global, porque há e haverá países ganhadores e classes privilegiadas.

Eis como a tese do aquecimento global pode ajudar a descambar no sacrifício não global. O que será muito mais grave do que o efeito anestesiante que o aquecimento global vem lançando sobre a poluição, problema real que o capitalismo, em rigor, nunca foi capaz de resolver a contento e que, eventualmente, nunca resolverá.

Ou seja, estamos numa época de agudização da luta de classes e do agravamento das tensões imperialistas. Não se diga que a luta está antecipadamente perdida. Mas há que ter em conta o aparecimento de novos meios guerreiros e comunicacionais e de novas ideias do arsenal ao dispor da actual fase imperialista do capitalismo (hoje ao serviço da alta finança e de grandes empresas transnacionais com vocação globalizadora).

Equivale a reconhecer a actualidade de Marx e de Lenin. E atente-se em Álvaro Cunhal, que, contra ventos e marés, sempre se bateu pela proximidade aos respectivos legados, em particular, na análise dos novos problemas.
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[1] IPCC, Intergovernmental Panel on Climate Change.
[2] Ver " Aquecimento global: uma impostura científica ", resistir.info/climatologia/impostura_cientifica.html .
[3] BRAUDEL, Fernand (1998), Memórias do Mediterrâneo/Pré-História e Antiguidade , Terramar, Lisboa, em 2001, pp. 226/7.
[4] Note-se que no passivo das religiões outros sacrifícios pesam. "... segundo Arquimedes, [Aristarco, 310-230 a.C.] teria afirmado que a Terra gira em torno de si mesma num dia e em volta do Sol num ano ". Há relato de que Aristarco sofreu as maiores humilhações. Resultado no plano científico: "a concepção heliocêntrica do mundo foi abandonada por ferir as concepções religiosas da época", ver BRAUDEL, obra citada, p. 293.
[5] TORRENS, Fernando Conde, Año 303/Inventan El Cristianismo, Ediciones Alta Andrómeda, S.L., 2017, España.
[6] Ver "A Encruzilhada de Quioto", abemdanacao.blogs.sapo.pt
[7] Ver " A guerra dos metais raros", inserção de 24/Nov/18, resistir.info/crise/metais_raros_22nov18.html .

[*] Engenheiro

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

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