Em conflito contra megaprojeto
imobiliário, famílias Guarani Mbya são ameaçadas de morte. Só em 2019, já são
pelo menos 8 ataques contra povos indígenas de Norte a Sul do Brasil
Marcelo Ferreira, no Brasil
de Fato | em Outras Palavras
A madrugada do dia 11 de janeiro
registrou um atentado contra a vida das famílias Guarani Mbya que realizam uma
retomada de território na área de preservação ambiental conhecida como Ponta do
Arado, na Zona Sul de Porto Alegre. Dois homens encapuzados dispararam contra
os barracos dos indígenas e os ameaçaram de morte caso não desocupassem o
local. “Foram muitos tiros”, relata o cacique Timóteo Karai Mirim.
No dia seguinte, os indígenas e
grupos apoiadores registraram um boletim de ocorrência e a polícia civil
encontrou cápsulas e munição não deflagrada na areia, próximo à cerca que a
Arado Empreendimentos Imobiliários instalou no local. A contenção confina o
grupo a uma pequena faixa de marinha nas margens do lago Guaíba, sem acesso via
terrestre, sem água potável e sob constante vigilância e ameaça de seguranças
privados.
A empresa, que é proprietária do
terreno e luta na justiça para iniciar a construção de um condomínio de luxo
com cerca de 1,6 mil unidades habitacionais, diz que a cerca serve para “evitar
o avanço do desmatamento do local e da caça dos animais silvestres”.
Representantes do Ministério
Público Federal (MPF) estiveram no local e encontraram os indígenas abalados,
mas firmes na vontade de permanecer na área que abriga um sítio arqueológico
pré-colonial que atesta a ocupação pelos guaranis.
Retomada em área de disputa
judicial
Antes de ocuparem, em julho de
2017, os guaranis solicitaram ao MPF um grupo de estudos para demarcação da
terra. Com isso, explica Carmem Guardiola, pesquisadora associada ao Núcleo de
antropologia das sociedades Indígenas e Tradicionais da UFRGS (NIT), o caso
aguarda na alçada federal.
“A Ponta do Arado fica em área
considerada rural pela prefeitura mas que, em virtude do megaprojeto da
empresa, através de uma manipulação no legislativo, passou a ser uma área
urbana para poder receber o condomínio. Quando os guaranis chegaram ali, já
haviam muitos conflitos entre o setor imobiliário e a comunidade e
ambientalistas”, afirma a pesquisadora.
Em 2015, uma iniciativa do então
prefeito de Porto Alegre, José Fortunati (PDT), modificou o plano diretor da
cidade e retirou da área rural parte do bairro Belém Novo, no extremo sul da
capital gaúcha. A medida favorecia a implementação do Condomínio Fazenda Arado
Velho e foi feita a toque de caixa, sem a realização de audiência pública, como
exige a Constituição Estadual.
Megaprojeto tem alto custo
ambiental
Roberto Liebgott, coordenador do
Conselho Indigenista Missionário-Regional Sul (CIMI-SUL), aponta que a manobra
que alterou o plano diretor foi contestada pelo Ministério Público Estadual
(MPE) e o projeto está embargado por uma liminar concedida em 2017, que
suspendeu as alterações da lei. “O local é rico em biodiversidade, rico em
águas, ali há matas ciliares importantes, enfim, toda uma composição ambiental
muito importante naquela região e que é foco de luta dos movimentos
ambientalistas há anos. Se o condomínio acontecer vai causar uma enorme
devastação”, avalia Liebgott.
Juridicamente, é um caso
truncado, que aguarda decisão de um pedido de transferência da competência do
processo da justiça estadual para a justiça federal, por se tratar de demanda
indígena, de responsabilidade da União. A empresa conseguiu liminar impedindo a
entrada dos indígenas em seu território, confinando-os na orla, mas teve negado
o pedido de reintegração de posse.
“Enquanto o processo está parado
ninguém pode nem consegue dizer nada”, comenta Guardiola. “Quando fomos
conversar com o procurador, eu disse que os caminhos judiciais existem e devem
acontecer, e estão sendo percorridos. Mas e para hoje, no mundo real, que segurança
os indígenas têm ao voltar para casa? Nenhuma!”, conclui a pesquisadora.
Demarcação na mão dos ruralistas
Em sua primeira medida como
presidente, Bolsonaro retirou da Fundação Nacional do Índio (Funai) a
atribuição de demarcar terras indígenas e a passou para o Ministério da
Agricultura, comandado por Tereza Cristina (DEM). A ministra, deputada
conhecida como “musa do veneno”, liderou a frente parlamentar da agropecuária
em 2018. A
Funai, esvaziada, passou para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos,
da ministra Damares Alves. Esta, por sua vez, é acusada de levar sua filha
adotiva irregularmente da sua família biológica, da aldeia Kamayurá, reserva do
Xingu, no Mato Grosso.
No Twitter, Bolsonaro afirmou que
vai “integrar” indígenas ao que chama de “o Brasil de verdade”. “Mais de 15% do
território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um
milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade,
exploradas e manipuladas por ONGs”, publicou na rede social.
Para o coordenador do CIMI-SUL,
além desse discurso de integração que vai na contramão de toda luta histórica
dos povos originários no Brasil, há o discurso religioso fundamentalista “que
rompe com qualquer perspectiva do direito à diferença, de que os povos possam
se manifestar de acordo com seus costumes e crenças”.
Ainda segundo ele, o cenário
fortalece grupos econômicos que historicamente se colocam contra os direitos
indígenas: “O estado acabava exercendo uma certa fiscalização para que esses
setores não extrapolassem, impedindo a invasão e depredação sistemática das
terras indígenas. Agora, passa a se a dar um aval para que esses setores
retomem sua saga expansionista”.
“É um retrocesso ao tempo da
ditadura, de um tempo em que o estado tentava aniquilar a cultura indígena. Não
estamos otimistas, mas os indígenas estão se organizando, estão usando o
caminho judicial, seguindo as leis da constituição que eles conquistaram”,
desabafa Guardiola, recordando que a organização dos indígenas e o auxílio de
apoiadores é o que tem garantido o mínimo de segurança na retomada na Ponta do
Arado.
Modo de vida indígena cura o meio
ambiente
Um estudo lançado em 2015 pelo
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) demonstra a relação benéfica
dos indígenas com as florestas, na preservação do clima e do meio ambiente.
Dados entre o período de 2000
a 2014 apontam uma taxa de desmatamento de 2% em terras
indígenas. Nas áreas de entorno, não protegidas pelo modo de vida tradicional,
o desmatamento superou os 19%.
“A importância dos povos
indígenas para a preservação ambiental é evidente quando você verifica hoje o
mapa do Brasil. As áreas que ainda são preservadas, embora já sejam objeto de
invasão, são terras indígenas ou quilombolas, especialmente no Amazonas, mas
mesmo aqui nas regiões Sul e Sudeste”, comenta Liebgott. “Há uma composição de
interesse humano e também cosmológico que compõe a existência dos povos
indígenas. A vida humana interage com todos os seres da terra e também com
seres espirituais. Por isso, não se dão bem com grandes lavouras nem com áreas
degradadas”, explica.
“É um modo avesso ao capitalismo,
o modo tradicional”, afirma a pesquisadora do NIT. “Por isso, ele de fato faz
com que o meio ambiente fique preservado. E os guaranis são um povo de mato,
que normalmente fica perto do urbano, mas não muito, circulando entre aldeias.
Em outro tempo, tinham liberdade de caminhar pelo território com todos os
elementos cosmológicos necessários para viverem felizes. No mundo guarani não
existe cerca, não existe propriedade”, conclui Guardiola.
Extraído de Outras Palavras
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