domingo, 10 de fevereiro de 2019

Brasil | Em Porto Alegre, retrato da “nova” política indigenista


Em conflito contra megaprojeto imobiliário, famílias Guarani Mbya são ameaçadas de morte. Só em 2019, já são pelo menos 8 ataques contra povos indígenas de Norte a Sul do Brasil

Marcelo Ferreira, no Brasil de Fato | em Outras Palavras

A madrugada do dia 11 de janeiro registrou um atentado contra a vida das famílias Guarani Mbya que realizam uma retomada de território na área de preservação ambiental conhecida como Ponta do Arado, na Zona Sul de Porto Alegre. Dois homens encapuzados dispararam contra os barracos dos indígenas e os ameaçaram de morte caso não desocupassem o local. “Foram muitos tiros”, relata o cacique Timóteo Karai Mirim.

No dia seguinte, os indígenas e grupos apoiadores registraram um boletim de ocorrência e a polícia civil encontrou cápsulas e munição não deflagrada na areia, próximo à cerca que a Arado Empreendimentos Imobiliários instalou no local. A contenção confina o grupo a uma pequena faixa de marinha nas margens do lago Guaíba, sem acesso via terrestre, sem água potável e sob constante vigilância e ameaça de seguranças privados.

A empresa, que é proprietária do terreno e luta na justiça para iniciar a construção de um condomínio de luxo com cerca de 1,6 mil unidades habitacionais, diz que a cerca serve para “evitar o avanço do desmatamento do local e da caça dos animais silvestres”.

Representantes do Ministério Público Federal (MPF) estiveram no local e encontraram os indígenas abalados, mas firmes na vontade de permanecer na área que abriga um sítio arqueológico pré-colonial que atesta a ocupação pelos guaranis.

Retomada em área de disputa judicial

Antes de ocuparem, em julho de 2017, os guaranis solicitaram ao MPF um grupo de estudos para demarcação da terra. Com isso, explica Carmem Guardiola, pesquisadora associada ao Núcleo de antropologia das sociedades Indígenas e Tradicionais da UFRGS (NIT), o caso aguarda na alçada federal.

“A Ponta do Arado fica em área considerada rural pela prefeitura mas que, em virtude do megaprojeto da empresa, através de uma manipulação no legislativo, passou a ser uma área urbana para poder receber o condomínio. Quando os guaranis chegaram ali, já haviam muitos conflitos entre o setor imobiliário e a comunidade e ambientalistas”, afirma a pesquisadora.

Em 2015, uma iniciativa do então prefeito de Porto Alegre, José Fortunati (PDT), modificou o plano diretor da cidade e retirou da área rural parte do bairro Belém Novo, no extremo sul da capital gaúcha. A medida favorecia a implementação do Condomínio Fazenda Arado Velho e foi feita a toque de caixa, sem a realização de audiência pública, como exige a Constituição Estadual.

Megaprojeto tem alto custo ambiental

Roberto Liebgott, coordenador do Conselho Indigenista Missionário-Regional Sul (CIMI-SUL), aponta que a manobra que alterou o plano diretor foi contestada pelo Ministério Público Estadual (MPE) e o projeto está embargado por uma liminar concedida em 2017, que suspendeu as alterações da lei. “O local é rico em biodiversidade, rico em águas, ali há matas ciliares importantes, enfim, toda uma composição ambiental muito importante naquela região e que é foco de luta dos movimentos ambientalistas há anos. Se o condomínio acontecer vai causar uma enorme devastação”, avalia Liebgott.

Juridicamente, é um caso truncado, que aguarda decisão de um pedido de transferência da competência do processo da justiça estadual para a justiça federal, por se tratar de demanda indígena, de responsabilidade da União. A empresa conseguiu liminar impedindo a entrada dos indígenas em seu território, confinando-os na orla, mas teve negado o pedido de reintegração de posse.

“Enquanto o processo está parado ninguém pode nem consegue dizer nada”, comenta Guardiola. “Quando fomos conversar com o procurador, eu disse que os caminhos judiciais existem e devem acontecer, e estão sendo percorridos. Mas e para hoje, no mundo real, que segurança os indígenas têm ao voltar para casa? Nenhuma!”, conclui a pesquisadora.

Demarcação na mão dos ruralistas

Em sua primeira medida como presidente, Bolsonaro retirou da Fundação Nacional do Índio (Funai) a atribuição de demarcar terras indígenas e a passou para o Ministério da Agricultura, comandado por Tereza Cristina (DEM). A ministra, deputada conhecida como “musa do veneno”, liderou a frente parlamentar da agropecuária em 2018. A Funai, esvaziada, passou para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, da ministra Damares Alves. Esta, por sua vez, é acusada de levar sua filha adotiva irregularmente da sua família biológica, da aldeia Kamayurá, reserva do Xingu, no Mato Grosso.

No Twitter, Bolsonaro afirmou que vai “integrar” indígenas ao que chama de “o Brasil de verdade”. “Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs”, publicou na rede social.

Para o coordenador do CIMI-SUL, além desse discurso de integração que vai na contramão de toda luta histórica dos povos originários no Brasil, há o discurso religioso fundamentalista “que rompe com qualquer perspectiva do direito à diferença, de que os povos possam se manifestar de acordo com seus costumes e crenças”.

Ainda segundo ele, o cenário fortalece grupos econômicos que historicamente se colocam contra os direitos indígenas: “O estado acabava exercendo uma certa fiscalização para que esses setores não extrapolassem, impedindo a invasão e depredação sistemática das terras indígenas. Agora, passa a se a dar um aval para que esses setores retomem sua saga expansionista”.

“É um retrocesso ao tempo da ditadura, de um tempo em que o estado tentava aniquilar a cultura indígena. Não estamos otimistas, mas os indígenas estão se organizando, estão usando o caminho judicial, seguindo as leis da constituição que eles conquistaram”, desabafa Guardiola, recordando que a organização dos indígenas e o auxílio de apoiadores é o que tem garantido o mínimo de segurança na retomada na Ponta do Arado.

Modo de vida indígena cura o meio ambiente

Um estudo lançado em 2015 pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) demonstra a relação benéfica dos indígenas com as florestas, na preservação do clima e do meio ambiente. Dados entre o período de 2000 a 2014 apontam uma taxa de desmatamento de 2% em terras indígenas. Nas áreas de entorno, não protegidas pelo modo de vida tradicional, o desmatamento superou os 19%.

“A importância dos povos indígenas para a preservação ambiental é evidente quando você verifica hoje o mapa do Brasil. As áreas que ainda são preservadas, embora já sejam objeto de invasão, são terras indígenas ou quilombolas, especialmente no Amazonas, mas mesmo aqui nas regiões Sul e Sudeste”, comenta Liebgott. “Há uma composição de interesse humano e também cosmológico que compõe a existência dos povos indígenas. A vida humana interage com todos os seres da terra e também com seres espirituais. Por isso, não se dão bem com grandes lavouras nem com áreas degradadas”, explica.

“É um modo avesso ao capitalismo, o modo tradicional”, afirma a pesquisadora do NIT. “Por isso, ele de fato faz com que o meio ambiente fique preservado. E os guaranis são um povo de mato, que normalmente fica perto do urbano, mas não muito, circulando entre aldeias. Em outro tempo, tinham liberdade de caminhar pelo território com todos os elementos cosmológicos necessários para viverem felizes. No mundo guarani não existe cerca, não existe propriedade”, conclui Guardiola.

Extraído de Outras Palavras

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