Numa
fase dramática da crise civilizatória, enfrentamos simultaneamente a arrogância
do colonialismo, a indolência das transformações inconclusas e a perversão das fake
news. Será possível mudar o mundo, ainda assim?
Escrevi
há muito que qualquer sistema de conhecimentos é igualmente um sistema de
desconhecimentos. Para onde quer que se orientem os objetivos, os instrumentos
e as metodologias para conhecer uma dada realidade, nunca se conhece tudo a
respeito dela e fica igualmente por conhecer qualquer outra realidade distinta
da que tivemos por objetivo conhecer. Por isso, e como bem viu Nicolau de Cusa,
quanto mais sabemos mais sabemos que não sabemos. Mas mesmo o conhecimento que
temos da realidade que julgamos conhecer não é o único existente e pode
rivalizar com muitos outros, eventualmente mais correntes ou difundidos. Dois
exemplos ajudam. Numa escola diversa em termos étnico-culturais, o professor
ensina que a terra urbana ou rural é um bem imóvel que pertence ao seu
proprietário e que este, em geral, pode dispor dela como quiser.
Uma
jovem indígena levanta o braço, perplexa, e exclama: “professor, na minha
comunidade a terra não nos pertence, nós é que pertencemos à terra”. Para esta
jovem, a terra é Mãe Terra, fonte de vida, origem de tudo o que somos. É, por
isso, indisponível. Durante um processo eleitoral numa dada circunscrição de
uma cidade europeia, onde é majoritária a população roma (vulgo, cigana), as
seções de voto identificam individualmente os eleitores recenseados. No dia das
eleições, a comunidade roma apresenta-se em bloco nos lugares de votação
reivindicando que o seu voto é coletivo porque coletiva foi a deliberação de
votar num certo sentido ou candidato. Para os roma não existem vontades
políticas individuais autônomas em relação às do clã ou família. Estes dois
exemplos mostram que estamos em presença de duas concepções de natureza (e
propriedade), num caso, e de duas concepções de democracia, no outro.