segunda-feira, 18 de março de 2019

DAS PALAVRAS AOS ACTOS



1- Na Europa que continua a ser constante prova de ambiguidade, de cinismo e de hipocrisia, na Europa partícipe de ingerência e manipulação nos continentes a sul, na Europa que não reconhece sequer sua velada participação nas práticas de conspiração que tanto caos, terrorismo e desagregação têm disseminado nos Balcãs, no Cáucaso, no Médio Oriente Alargado e em África, particularmente  desde o início da década de noventa do século XX, na Europa cuja visão é a visão exclusivista de suas oligarquias económicas e financeiras, o multilateralismo é uma opção de dois pesos e duas medidas, sem coerência a não ser a identificada com os interesses que “democraticamente” se assumem sobre a cabeça dos povos!

O poder do mercado neoliberal usa os conceitos e as palavras nessa visão antropocêntrica que corresponde aos interesses exclusivistas das escalonadas oligarquias e das elites afins e, quando se estabelecem “parcerias” a sul, esbatem-se as prementes necessidades sejam elas quais forem, mas em particular as da solidariedade e justiça social reitoras do ambiente de paz social com que toda a humanidade se deveria reger, pondo em causa os equilíbrios em direcção aos quais é premente um constante impulso, a fim de melhor distribuir a riqueza e a fim de se alcançar maior felicidade e bem-estar para todos os povos da Terra.

O deus-mercado é uma barbaridade nesse sentido, mas os poderosos escolhem e medem bem as palavras e conceitos de sua própria conveniência para o mascarar, sabendo que os media de que são donos são-lhes de feição “global”, pelo que aqueles que possuem consciência crítica e estão mobilizados numa lógica com sentido de vida, devem-se obrigar sempre em contínuas radiografias sobre o estado dos relacionamentos internacionais em época de globalização, a medir a distância (e a coerência) entre o que está sobre a mesa: os conceitos, as palavras e os actos.


2- Vem esta introdução a propósito da longa entrevista que o presidente português deu ao Jornal de Angola, segundo a publicação de 6 de Março e sob o título “Relações seguem uma linha contínua que não vai parar para o futuro”, em particular no que diz respeito à interpretação e prática de multilateralismo e num momento em que se podem comparar as posições do estado português em relação aos países a sul, mais concretamente no que diz respeito a Angola e à Venezuela, com pano de fundo no Brasil e na CPLP.

O presidente português diz que há “convergência nos domínios do multilateralismo, valorização do direito internacional, dos direitos humanos, do papel das organizações internacionais, da importância das migrações, papel dos oceanos, da atenção às alterações climáticas”…

Os conceitos e as palavras que exprimiu, devem ser confrontadas com as práticas dum país que é fundador e activo participante da NATO, organização militar e de inteligência supranacional e desde a sua fundação sob comando do Pentágono, que agora se distende entre o Afeganistão e a Colômbia com todo o sul à mercê!

De facto Portugal tem obrigações perante a União Europeia da qual faz parte a partir do que passou a ser estimulado pelas suas oligarquia e elite nacional desde o 25 de Novembro de 1975 e tem obrigações perante a NATO transatlântica, no quadro da qual assume, além do mais, o asseguramento do seu próprio espaço marítimo e insular.

Essas obrigações estão por dentro das “filtragens” que faz nos seus relacionamentos a sul e por causa delas, expõe a graus de geometria variável em termos de ambiguidade, de cinismo e de hipocrisia, em especial quando elas obrigam a adoptar dois pesos e duas medidas conforme se demonstra comparativamente face à Venezuela e a Angola, por razões que se devem inventariar.

Quer na Venezuela, quer em Angola, há migrações portuguesas e luso-descendentes a ter em conta e, quando há radicalização dos processos políticos em resultado duma globalização tão inquinada como a posta em prática pelo poder que os Estados Unidos exercem particularmente sobre a NATO e seu sistema tentacular de vassalagens com correias de transmissão, as posições do regime da oligarquia portuguesa tendem a corresponder não levando em consideração os cuidados de respeito e solidariedade que deveriam garantir um relacionamento mais saudável com suas próprias comunidades migrantes e luso-descendentes, por tabela com os estados onde eles se situam, por via duma não ingerência garante de busca de consensos, de diálogo, de paz e de aprofundamento da democracia.

Isso acontece apesar de a nível internacional haver exemplos de não ingerência e rejeição de qualquer tipo de manipulação, como acontece com o México…

Ao invés disso, em consonância com os procedimentos históricos e antropológicos que se arrastam desde o passado, o regime oligárquico de Lisboa assume de facto e de forma contínua a defesa das oligarquias, a sua, aquelas que são parte integrante das opções que respondem à hegemonia unipolar contra os interesses e aspirações legítimas do povo bolivariano e em Angola a favor dum projecto de oligarquia que entendem estar em construção, conforme aos seus preceitos de “inteligência económica” que começam no “carácter modelar” dos tentáculos bancários que trouxeram para a latitude de Luanda sobretudo após Bicesse e 2002… que são parte da raiz dos problemas de corrupção que os angolanos estoicamente enfrentam, ainda que a maior parte deles não o reconheçam!...

3- O regime oligárquico de Lisboa começou por alinhar no reconhecimento do deputado Juan Guaidó como “presidente interino” da Venezuela no seguimento de sua auto proclamação instigada pela administração do presidente estado-unidense Donald Trump, alinhou em seguida no ultimato da União Europeia à Venezuela Bolivariana, que a obrigava a eleições segundo seu próprio “timing” e compulsivo critério, depois perante o espectro duma guerra de consequências tanto ou mais devastadoras da que ainda continua no Médio Oriente Alargado, recua em intimidade com o grupo de Lima mas sem baixar a pressão que caracteriza a estafa de sua ingerência em termos de inteligência, para a não-aceitação ambígua duma agressão militar… tudo isso em nome da democracia e pelos vistos do “multilateralismo” que vigora nas suas interesseiras cabeças, ao nível do que “promove” a Organização Não Governamental CANVAS, onde pelos vistos também aprendeu!...

Ao mesmo tempo, com a candura liberal que lhe é sob o ponto de vista sociopolítico “geneticamente” peculiar, a figura presidencial desse regime vem a Angola em pleno carnaval, dando previamente uma entrevista prévia ao Jornal de Angola cujo sentido geral e institucional é, com toda a ambiguidade dum aparentemente escrupuloso exercício, no sentido oposto, até nas apreciações emocionais que faz, não podendo contudo esconder os dois pesos e as duas medidas que na prática assume entre as palavras e os actos, ainda que face a dois países que em comum contam com uma expressiva comunidade portuguesa migrante e expressiva quantidade de luso-descendentes.

4- Perante esse tipo de evidências, entendo eu que em época de tão inquinada globalização neoliberal, ao assumir-se a advocacia dos povos do sul e tendo em conta o longo percurso do movimento de libertação nos dois lados do Atlântico Sul, essa ambiguidade cosmopolita deve ser colocado sob a mira de nossos olhos, por que pela sua natureza não deixa de ser a continuidade dum plasmado processo de há vários séculos a esta parte, desde quando sob o cândido rótulo da dilatação da fé e do império, afinal de facto se enveredava, em nome da “ocidental civilização” e em África, por uma cultura escravocrata e colonial, cujas consequências em muitas regiões, em especial onde a situação insular além do mais implica isolamento físico e geográfico, se fazem ainda sentir penosamente em múltiplos e traumáticos rescaldos até aos nossos dias.

É evidente que o “deus do mercado neoliberal” se preocupa, evocando a malabarística perfídia do “Fim da história”conforme Francis Fukuyama, não só em apagar todas pistas que puder, mas também na lavagem cerebral das multidões contemporâneas, em função dos interesses e conveniências da aristocracia financeira mundial e de suas agenciadas oligarquias e elites.

A legítima afirmação histórica e antropológica a que nos obriga o sul, não pode deixar passar em branco a lástima em relação àqueles que, investidos de poder representativo, em nome da democracia, não podem resistir à erosão, quando há dois pesos e duas medidas, ou seja tanta disparidade e incongruência entre suas próprias palavras e os seus actos!

Martinho Júnior - Luanda, 7 de Março de 2019

Imagem: presidente algum deveria ser malabarista…

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