Martinho Júnior, Luanda
1-
Na Europa que continua a ser constante prova de ambiguidade, de cinismo e de
hipocrisia, na Europa partícipe de ingerência e manipulação nos continentes a
sul, na Europa que não reconhece sequer sua velada participação nas práticas de
conspiração que tanto caos, terrorismo e desagregação têm disseminado nos
Balcãs, no Cáucaso, no Médio Oriente Alargado e em África,
particularmente desde o início da década de noventa do século XX, na
Europa cuja visão é a visão exclusivista de suas oligarquias económicas e
financeiras, o multilateralismo é uma opção de dois pesos e duas medidas, sem
coerência a não ser a identificada com os interesses que “democraticamente” se
assumem sobre a cabeça dos povos!
O
poder do mercado neoliberal usa os conceitos e as palavras nessa visão
antropocêntrica que corresponde aos interesses exclusivistas das escalonadas
oligarquias e das elites afins e, quando se estabelecem “parcerias” a
sul, esbatem-se as prementes necessidades sejam elas quais forem, mas em
particular as da solidariedade e justiça social reitoras do ambiente de paz
social com que toda a humanidade se deveria reger, pondo em causa os
equilíbrios em direcção aos quais é premente um constante impulso, a fim de
melhor distribuir a riqueza e a fim de se alcançar maior felicidade e bem-estar
para todos os povos da Terra.
O
deus-mercado é uma barbaridade nesse sentido, mas os poderosos escolhem e medem
bem as palavras e conceitos de sua própria conveniência para o mascarar,
sabendo que os media de que são donos são-lhes de feição “global”, pelo
que aqueles que possuem consciência crítica e estão mobilizados numa lógica com
sentido de vida, devem-se obrigar sempre em contínuas radiografias sobre o
estado dos relacionamentos internacionais em época de globalização, a medir a
distância (e a coerência) entre o que está sobre a mesa: os conceitos, as
palavras e os actos.
2-
Vem esta introdução a propósito da longa entrevista que o presidente português
deu ao Jornal de Angola, segundo a publicação de 6 de Março e sob o
título “Relações seguem uma linha contínua que não vai parar para o
futuro”, em particular no que diz respeito à interpretação e prática de
multilateralismo e num momento em que se podem comparar as posições do estado
português em relação aos países a sul, mais concretamente no que diz respeito a
Angola e à Venezuela, com pano de fundo no Brasil e na CPLP.
O
presidente português diz que há “convergência nos domínios do
multilateralismo, valorização do direito internacional, dos direitos humanos,
do papel das organizações internacionais, da importância das migrações, papel
dos oceanos, da atenção às alterações climáticas”…
Os
conceitos e as palavras que exprimiu, devem ser confrontadas com as práticas
dum país que é fundador e activo participante da NATO, organização militar e de
inteligência supranacional e desde a sua fundação sob comando do Pentágono, que
agora se distende entre o Afeganistão e a Colômbia com todo o sul à mercê!
De
facto Portugal tem obrigações perante a União Europeia da qual faz parte a
partir do que passou a ser estimulado pelas suas oligarquia e elite nacional
desde o 25 de Novembro de 1975 e tem obrigações perante a NATO transatlântica,
no quadro da qual assume, além do mais, o asseguramento do seu próprio espaço
marítimo e insular.
Essas
obrigações estão por dentro das “filtragens” que faz nos seus
relacionamentos a sul e por causa delas, expõe a graus de geometria variável em
termos de ambiguidade, de cinismo e de hipocrisia, em especial quando elas
obrigam a adoptar dois pesos e duas medidas conforme se demonstra
comparativamente face à Venezuela e a Angola, por razões que se devem
inventariar.
Quer
na Venezuela, quer em Angola, há migrações portuguesas e luso-descendentes a
ter em conta e, quando há radicalização dos processos políticos em resultado
duma globalização tão inquinada como a posta em prática pelo poder que os
Estados Unidos exercem particularmente sobre a NATO e seu sistema tentacular de
vassalagens com correias de transmissão, as posições do regime da oligarquia
portuguesa tendem a corresponder não levando em consideração os cuidados de
respeito e solidariedade que deveriam garantir um relacionamento mais saudável
com suas próprias comunidades migrantes e luso-descendentes, por tabela com os
estados onde eles se situam, por via duma não ingerência garante de busca de
consensos, de diálogo, de paz e de aprofundamento da democracia.
Isso
acontece apesar de a nível internacional haver exemplos de não ingerência e
rejeição de qualquer tipo de manipulação, como acontece com o México…
Ao
invés disso, em consonância com os procedimentos históricos e antropológicos
que se arrastam desde o passado, o regime oligárquico de Lisboa assume de facto
e de forma contínua a defesa das oligarquias, a sua, aquelas que são parte
integrante das opções que respondem à hegemonia unipolar contra os interesses e
aspirações legítimas do povo bolivariano e em Angola a favor dum projecto de
oligarquia que entendem estar em construção, conforme aos seus preceitos
de “inteligência económica” que começam no “carácter modelar” dos
tentáculos bancários que trouxeram para a latitude de Luanda sobretudo após
Bicesse e 2002… que são parte da raiz dos problemas de corrupção que os
angolanos estoicamente enfrentam, ainda que a maior parte deles não o
reconheçam!...
3-
O regime oligárquico de Lisboa começou por alinhar no reconhecimento do
deputado Juan Guaidó como “presidente interino” da Venezuela no
seguimento de sua auto proclamação instigada pela administração do presidente
estado-unidense Donald Trump, alinhou em seguida no ultimato da União Europeia
à Venezuela Bolivariana, que a obrigava a eleições segundo seu próprio “timing” e
compulsivo critério, depois perante o espectro duma guerra de consequências
tanto ou mais devastadoras da que ainda continua no Médio Oriente Alargado,
recua em intimidade com o grupo de Lima mas sem baixar a pressão que
caracteriza a estafa de sua ingerência em termos de inteligência, para a
não-aceitação ambígua duma agressão militar… tudo isso em nome da democracia e
pelos vistos do “multilateralismo” que vigora nas suas interesseiras
cabeças, ao nível do que “promove” a Organização Não Governamental
CANVAS, onde pelos vistos também aprendeu!...
Ao
mesmo tempo, com a candura liberal que lhe é sob o ponto de vista
sociopolítico “geneticamente” peculiar, a figura presidencial desse
regime vem a Angola em pleno carnaval, dando previamente uma entrevista prévia
ao Jornal de Angola cujo sentido geral e institucional é, com toda a
ambiguidade dum aparentemente escrupuloso exercício, no sentido oposto, até nas
apreciações emocionais que faz, não podendo contudo esconder os dois pesos e as
duas medidas que na prática assume entre as palavras e os actos, ainda que face
a dois países que em comum contam com uma expressiva comunidade portuguesa
migrante e expressiva quantidade de luso-descendentes.
4-
Perante esse tipo de evidências, entendo eu que em época de tão inquinada
globalização neoliberal, ao assumir-se a advocacia dos povos do sul e tendo em
conta o longo percurso do movimento de libertação nos dois lados do Atlântico
Sul, essa ambiguidade cosmopolita deve ser colocado sob a mira de nossos olhos,
por que pela sua natureza não deixa de ser a continuidade dum plasmado processo
de há vários séculos a esta parte, desde quando sob o cândido rótulo da
dilatação da fé e do império, afinal de facto se enveredava, em nome da “ocidental
civilização” e em África, por uma cultura escravocrata e colonial, cujas
consequências em muitas regiões, em especial onde a situação insular além do
mais implica isolamento físico e geográfico, se fazem ainda sentir penosamente
em múltiplos e traumáticos rescaldos até aos nossos dias.
É
evidente que o “deus do mercado neoliberal” se preocupa, evocando a
malabarística perfídia do “Fim da história”conforme Francis Fukuyama, não
só em apagar todas pistas que puder, mas também na lavagem cerebral das
multidões contemporâneas, em função dos interesses e conveniências da
aristocracia financeira mundial e de suas agenciadas oligarquias e elites.
A
legítima afirmação histórica e antropológica a que nos obriga o sul, não pode
deixar passar em branco a lástima em relação àqueles que, investidos de poder
representativo, em nome da democracia, não podem resistir à erosão, quando há
dois pesos e duas medidas, ou seja tanta disparidade e incongruência entre suas
próprias palavras e os seus actos!
Martinho
Júnior - Luanda, 7 de Março de 2019
Imagem:
presidente algum deveria ser malabarista…
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