Os meios de repercussão da
mentira são incomensuravelmente mais fortes do que as reposições da verdade. Os
fabricantes e mensageiros das falsificações há muito que perderam a vergonha e
espezinharam os princípios – se é que alguma vez os tiveram.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
A Organização para a Proibição de
Armas Químicas (OPAQ/OPCW) não encontrou vestígios da utilização de produtos
químicos no alegado ataque cometido por forças sírias em Duma, região de Ghuta
Oriental, no dia 7 de Abril de 2018. O relatório da organização, com data de 1
de Março de 2019, sublinha ainda que a missão não conseguiu apurar o número de
mortos provocados pelo ataque, «se é que os houve».
Cerca de duas semanas antes da
publicação das conclusões da OPCW, o jornalista independente James Harkin, director do Consórcio
Internacional de Jornalismo de Investigação (ICIJ), afirmou que as imagens
que correram mundo na altura, supostamente captadas nos postos médicos da
região, foram «provavelmente» encenadas; o que, por sua vez, confirma as palavras do produtor da BBC, Riam Dalati, segundo
as quais «está enjoado e cansado de ver activistas e rebeldes usarem cadáveres
de crianças para encenar imagens emotivas para consumo do Ocidente».
Estes dados vêm engrossar as
informações no mesmo sentido divulgadas por alguns jornalistas que estiveram no
local pouco depois do suposto ataque, entre os quais Robert Fisk, Vanessa
Beeley e Eva Bartlett, do britânico The Independent; Uli Gack, da ZDF alemã;
e Pearson Sharp, da OAN – One America News Network.
Pelo que pode afirmar-se, sem qualquer
vestígio de dúvida – sobretudo após a publicação do relatório da OPAQ/OPCW,
organização galardoada com o Nobel da Paz – que não houve qualquer ataque
químico em Duma.
E agora?
Agora, se vivêssemos numa
sociedade onde os dirigentes que governam o mundo e a comunicação mainstream que
os sustenta se pautassem pela seriedade, a idoneidade e a ética, estaríamos
ouvir desculpas, retractações e reposições da verdade.
Ao menos, deveríamos estar a
assistir à divulgação do relatório da OPAQ/OPCW1 com
o realce e um destaque idênticos aos que tiveram as imagens do ataque químico
que não existiu e que, assim sendo, não se tratou de mais um caso em que «o
governo sírio atacou o seu próprio povo».
Se houvesse decência nos
políticos do globalismo, incluindo aqueles que funcionam a escalas domésticas,
e respeito pela profissão entre os jornalistas que fabricam a informação
dominante, as imagens estariam agora ser repetidas pelos meios que lhes deram repercussão
universal, mas como exemplos de notícias faltas ou fake news; e os
profissionais que vasculharam a verdade até conseguirem trazê-la à superfície,
que continuam a alertar para o facto de esta operação não ter sido a única no
género e outras estarem em preparação deveriam, no mínimo, deixar de ser
ostensivamente acusados de ser «teóricos da conspiração».
Recordando Duma
A luta por Duma foi um episódio
exemplar no processo de libertação da região síria de Ghuta Oriental do poder
cruel de grupos terroristas islâmicos como o Jaish al-Islam, associado à
al-Qaida.
Exemplar porque permitiu
desvendar a estratégia de propaganda que serve de suporte à agressão
internacional contra a Síria, conduzida pelos Estados Unidos, a NATO e a União
Europeia, através dos seus braços terroristas islâmicos. E permitiu desmontar,
a propósito destes grupos, o papel provocatório assumido pelas chamadas «Forças de Defesa
Síria» ou Capacetes Brancos – ao mesmo tempo organização terrorista e de
«socorro humanitário»criada pelos serviços secretos britânicos e aclamada
através da atribuição de um Oscar de Hollywood. Organização esta que,
comprovadamente, se dedica à encenação de «ataques químicos» atribuídos ao
governo sírio – usando, para o efeito, produtoras cinematográficas, entre elas
a britânica Olive2.
Para se ter ideia da
extraordinária importância que tem a recente divulgação do relatório da
OPAQ/OPCW é essencial recordar alguns dados factuais relacionados com os
acontecimentos desses dias de Abril de 2018, na altura em que Duma estava em poder
dos terroristas do Jaish al-Islam.
Quando as imagens do suposto
ataque químico começaram a correr mundo, como prova de que o governo sírio
«ataca o seu próprio povo», Damasco desmentiu a acusação – mas de nada serviu.
O Departamento de Estado
norte-americano não se limitou a afirmar-se seguro de que tinham sido
utilizadas armas químicas: chegou a identificar um dos agentes como gás sarin.
O presidente francês, Emmanuel Macron, revelou ao mundo que
tinha «provas de que foram usadas armas químicas». Fiel à permanente guerra
de propaganda de Londres contra Moscovo, o então chefe da diplomacia britânica,
Boris Johnson, qualificou como «grotesco» o parecer de especialistas russos
enviados ao local e que não detectaram vestígios de produtos químicos. E a primeira-ministra, Theresa May, asseverou que se tratava «de
um genocídio».
A embaixadora dos Estados Unidos
na NATO, Kay Hutchinson, foi um pouco mais além e declarou que uma resposta,
através de «punição militar», não era de excluir.
Entretanto, os megafones mainstreampassavam
e voltavam a passar as imagens de socorro «às vítimas», apenas não conseguindo
unanimidade quanto ao número de mortos: 48, segundo os Capacetes Brancos; 70,
segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, entidade com sede em
Londres, também controlada pelos serviços secretos britânicos; e uma centena,
segundo o Jaish al-Islam.
Agindo em conformidade, como
executantes da sumária justiça globalista, aviões e navios de guerra norte-americanos, franceses e
britânicos lançaram, em 14 de Abril, mais de cem mísseis de cruzeiro contra a
Síria tendo como objectivo declarado «atingir o programa químico do
regime». Uma espécie de réplica, tudo o indica, das célebres «armas de
destruição massiva» que estariam em poder de Saddam Hussein e detonaram uma
guerra que vai completar 16 anos nos próximos dias.
O que revela agora a OPCW no
relatório que acaba de publicar, após um ano de trabalho?
Que não encontrou qualquer traço
de armas químicas em Duma; que os terroristas do Jaish al-Islam não permitiram
aos investigadores examinar os cadáveres das alegadas vítimas; que ignora o
número de mortos, «se é que os houve»; que o Jaish al-Islam manteve a missão da
OPCW à margem enquanto os corpos eram queimados. Um ritual absurdo, tratando-se
de fundamentalistas islâmicos, inimigos da cremação.
Uma metodologia
A falsificação e encenação de
«ataques químicos» é uma metodologia da propaganda que acompanha política e
mediaticamente a guerra contra a Síria.
São recorrentes as informações
sobre os preparativos de novas encenações previstas, por exemplo, em Idleb, o
último bastião em poder dos terroristas islâmicos na Síria.
Os preparativos envolvem,
habitualmente, a movimentação de recipientes com produtos químicos, a
mobilização de equipas de algumas das maiores cadeias internacionais de
televisão e até o rapto de crianças e o respectivo treino para simulação de
sintomas associados à inalação de gases tóxicos.
Muitos destes dados têm vindo a
ser denunciados previamente, a partir de agências de informação sírias ou mesmo
de meios militares e diplomáticos russos no terreno, o que, previsivelmente,
tem dissuadido os Capacetes Brancos de levarem por diante algumas das operações
programadas. Isso não significa um abandono da estratégia, que pode reaparecer
a qualquer momento, devido à inegável vantagem dos efeitos alcançados sobre as
denúncias feitas. A situação de Idleb é crítica por ser o último bastião
terrorista e, por isso, ainda um trunfo para a estratégia de comando
anglo-saxónico e francês.
O caso de Duma agora desmontado
não foi, aliás, o primeiro registo de uma encenação deste tipo.
Riam Dalati, o produtor da BBC que
se diz «enjoado e cansado» de ver utilizar cadáveres de crianças em encenações,
parece ter razões para isso. Ele próprio fez parte da equipa de produção do
documentário Saving Syrian’s Children para o programa Panorama BBC,
em Setembro de 2013.
Este documentário foi objecto de
uma investigação forense pelo especialista independente Robert Stuart, que
concluiu o seguinte: «sequências filmadas pelo pessoal da BBC e
outros no hospital de Atareb, Alepo, em 26 de Agosto de 2013, mostrando a
situação depois de um ataque com bombas incendiárias perto de uma escola, são
em grande parte, se não totalmente, encenadas».
No entanto, o documentário em
nada foi desvalorizado por esta denúncia em relação aos seus objectivos
originais: desacreditar e incriminar o governo legítimo da Síria.
Tal como em Duma ou em qualquer
outro lugar, os meios de repercussão da mentira são incomensuravelmente mais
fortes do que as reposições da verdade. O que acontece também porque os
fabricantes e mensageiros das falsificações há muito que perderam a vergonha e
espezinharam os princípios, se é que alguma vez os tiveram.
Vivemos, pois, num mundo em que
também o triunfo da mentira é global.
Notas
1. O relatório final da OPAQ/OPCW, apresentado a 1 de Março
de 2019, pode ser consultado aqui. Refira-se, relativamente ao seu
conteúdo, e apesar de uma evolução positiva relativamente às primeiras
declarações da organização em 2018, as críticas do país que acompanhou as
investigações no terreno e denunciou o falso «ataque químico»: a 5 de Março o
MNE da Rússia protestou formalmente contra as debilidades do relatório,
afirmando terem os peritos «completamente ignorado a substancial informação,
fornecida pelas partes russa e síria, confirmando ter sido o incidente químico
uma encenação da pseudo-humanitária organização Capacetes Brancos». Tradução
parcial do comunicado e ligação para o original russo podem ser lidos aqui.
2. Sobre
o intelligence officer James Le Mesurier e as suas diversas conexões,
incluindo o Olive Group, ver este
artigo de Vamessa Beeley, publicado ainda em 2015.
Na imagem
Os chamados Capacetes Brancos,
organização fundada e apoiada pelas potências ocidentais e cuja credibilidade
como força de socorro foi posta em causa por diversas instâncias
internacionais, foi uma das principais fontes sobre o alegado ataque químico em
DoumaCréditos/ southfront.org
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