Numa
fase dramática da crise civilizatória, enfrentamos simultaneamente a arrogância
do colonialismo, a indolência das transformações inconclusas e a perversão das fake
news. Será possível mudar o mundo, ainda assim?
Boaventura de Sousa Santos |
Outras Palavras | opinião
Escrevi
há muito que qualquer sistema de conhecimentos é igualmente um sistema de
desconhecimentos. Para onde quer que se orientem os objetivos, os instrumentos
e as metodologias para conhecer uma dada realidade, nunca se conhece tudo a
respeito dela e fica igualmente por conhecer qualquer outra realidade distinta
da que tivemos por objetivo conhecer. Por isso, e como bem viu Nicolau de Cusa,
quanto mais sabemos mais sabemos que não sabemos. Mas mesmo o conhecimento que
temos da realidade que julgamos conhecer não é o único existente e pode
rivalizar com muitos outros, eventualmente mais correntes ou difundidos. Dois
exemplos ajudam. Numa escola diversa em termos étnico-culturais, o professor
ensina que a terra urbana ou rural é um bem imóvel que pertence ao seu
proprietário e que este, em geral, pode dispor dela como quiser.
Uma
jovem indígena levanta o braço, perplexa, e exclama: “professor, na minha
comunidade a terra não nos pertence, nós é que pertencemos à terra”. Para esta
jovem, a terra é Mãe Terra, fonte de vida, origem de tudo o que somos. É, por
isso, indisponível. Durante um processo eleitoral numa dada circunscrição de
uma cidade europeia, onde é majoritária a população roma (vulgo, cigana), as
seções de voto identificam individualmente os eleitores recenseados. No dia das
eleições, a comunidade roma apresenta-se em bloco nos lugares de votação
reivindicando que o seu voto é coletivo porque coletiva foi a deliberação de
votar num certo sentido ou candidato. Para os roma não existem vontades
políticas individuais autônomas em relação às do clã ou família. Estes dois
exemplos mostram que estamos em presença de duas concepções de natureza (e
propriedade), num caso, e de duas concepções de democracia, no outro.
O primeiro modo de produção de ignorância (chamemos-lhe Modo 1) reside precisamente em atribuir exclusivamente a um modo de conhecimento o monopólio do conhecimento verdadeiro e rigoroso e desprezar todos os outros como variantes de ignorância, quer se trate de opiniões subjetivas, superstições ou atavismos. Este modo de produção de ignorância continua a ser o mais importante, sobretudo desde que a cultura eurocêntrica (um certo entendimento dela) tomou contato aprofundado com culturas extra-europeias, especialmente a partir da expansão colonial moderna. A partir do século XVII, a ciência moderna consolidou-se como tendo o monopólio do conhecimento rigoroso. Tudo o que está para além ou fora dele é ignorância. Não é este o lugar para voltar a um tema que tanto me tem ocupado. Direi apenas que o Modo 1produz um tipo de ignorância: a ignorância arrogante, a ignorância de quem não sabe que há outros modos de conhecimento com outros critérios de rigor e tem poder para impor a sua ignorância como a única verdade.
O
segundo modo de produção de ignorância (Modo 2) consiste na produção coletiva
de amnésia, de esquecimento. Este modo de produção tem sido frequentemente
ativado nos últimos cinquenta anos, sobretudo em países que passaram por longos
períodos de conflito social violento. Esses conflitos tiveram causas profundas:
gravíssima desigualdade socioeconômica; apartheid baseado em
discriminação étnico-racial, cultural, religiosa; concentração de terra e
consequente luta pela reforma agrária; reivindicação do direito à
autodeterminação de territórios ancestrais ou com forte identidade social e
cultural, etc. Estes conflitos, que muitas vezes se traduziriam em guerras
prolongadas, civis ou outras, produziram milhões de vítimas – entre mortos,
desaparecidos, exilados e internamente deslocados. Para além das partes em
conflito, houve sempre outros atores internacionais presentes e interessados no
desenrolar do conflito; a sua intervenção tanto conduziu ao agravamento do
conflito como (menos frequentemente) ao seu término. Em alguns poucos casos
houve um vencedor e um vencido inequívocos. Foi esse o caso do conflito entre o
nazismo e os países democráticos. Na maioria dos casos, porém, tende a ser
questionável se houve ou não vencedores e vencidos, sobretudo quando a parte
supostamente vencida impôs condições mais ou menos drásticas para aceitar o fim
do conflito (veja-se o caso da ditadura brasileira que dominou o país entre
1964 e 1985).
Em
ambos os casos, terminado o conflito, inicia-se o pós-conflito, um período que
visa reconstruir o país e consolidar a paz. Nesse processo participam com
destaque as comissões de verdade, justiça e reconciliação, muitas vezes como
componentes de um sistema mais amplo que inclui a justiça transicional e a
identificação e apoio às vítimas. São disso exemplo a Coreia do Sul, Argentina,
Guatemala, África do Sul, ex-Iugoslávia, Timor-Leste, Peru, Ruanda, Serra Leoa,
Colômbia, Chile, Guatemala, Brasil. Na maioria dos processos pós-conflito,
forças diferentes militaram por razões diferentes para que a verdade não fosse
plenamente conhecida. Quer porque a verdade era demasiado dolorosa, quer porque
obrigaria a uma profunda mudança do sistema econômico ou político (desde a
redistribuição de terra ao reconhecimento da autonomia territorial e a um novo
sistema jurídico-administrativo e político). Por qualquer destas razões,
preferiu-se a paz (podre?) à justiça, a amnésia e o esquecimento à memória, à
história e à dignidade. Assim se produziu uma ignorância indolente.
O Modo
3 de produção de ignorância consiste na produção ativa e consciente de
ignorância por via da produção massiva de conhecimentos de cuja falsidade os
produtores estão plenamente conscientes. O Modo 3 produz conhecimento
falso para bloquear a emergência do conhecimento verdadeiro a partir do qual
seria possível superar a ignorância. É este o domínio das fake news. Ao
contrário dos Modos 1 e 2, a ignorância não é aqui um
subproduto da produção. É o produto principal e a sua razão de ser. Os
exemplos, infelizmente, não faltam: a negação do aquecimento global; os
imigrantes e refugiados como agentes de crime organizado e ameaça à segurança
da Europa ou dos EUA; a distribuição de armas à população civil como o melhor
meio de combater a criminalidade; as políticas de proteção social das classes
mais vulneráveis como forma de comunismo; a conspiração gay para destruir os
bons costumes; a Venezuela ou Cuba como ameaças à segurança dos EUA; etc., etc.
Os
três modos de produção produzem três tipos diferentes de ignorância, estão
articulados e acarretam consequências distintas para a democracias. O Modo
1 produz uma ignorância arrogante, abissal, que é simultaneamente radical
e invisível na medida em que o monopólio do conhecimento dominante é
generalizadamente aceito. As verdades que não cabem na verdade monopolista não
existem e tão-pouco existem as populações que as subscrevem. Abre-se assim um
campo imenso para a sociologia das ausências. Foi por isso que o genocídio dos
povos indígenas e o epistemicídio dos seus conhecimentos (passe o pleonasmo)
andaram de mãos dadas. O Modo 2 produz a ignorância indolente que se
satisfaz superficialmente e que, por isso, permanece como ferida que arde sem
se ver. É a ignorância-frustração que sucede à verdade-expectativa. Uma
ignorância que bloqueia uma possibilidade e uma oportunidade emancipadoras que
estiveram próximas, que eram realistas e, que, além disso, eram merecidas, pelo
menos na opinião de vastos setores da população. Esta ignorância sugere uma
sociologia das emergências, da emergência de uma sociedade que se afirma
reconciliada consigo mesma, com base em justiça social, histórica,
étnico-cultural, sexual. O Modo 3 cria uma ignorância malévola,
corrosiva e, tal como um cancro, dificilmente controlável, na medida em que as
redes sociais têm um papel crucial na sua proliferação. Esta ignorância está
para além da ausência e da emergência. Esta ignorância é a prefiguração da
estase, a imobilidade que estrutura a vertigem do tempo imediato.
Os
três modos de produção e as respectivas ignorâncias que produzem não existem na
sociedade de modo isolado. Articulam-se e potenciam-se por via das articulações
que os tornam mais eficazes. Assim, a ignorância arrogante produzida pelo Modo
1 (monopólio da verdade) facilita paradoxalmente a proliferação da
arrogância malévola produzida pelo Modo 3 (falsidade como verdade
alternativa). É que uma sociedade saturada pela fé no monopólio da verdade
científica torna-se mais vulnerável a qualquer falsidade que se apresente como
verdade alternativa usando os mesmos mecanismos da fé. Por sua vez, a
ignorância indolente produzida pelo Modo 2(amnésia, esquecimento) desarma
vastos setores da população para combater a ignorância produzida quer pelo Modo
1, quer pelo Modo 3. A
ignorância arrogante é uma das principais causas da ignorância indolente, ou
seja, da facilidade com que se esquece, normaliza e banaliza um passado de
morte de inocentes, de sofrimento injusto, de pilhagens convertidas em
exercícios de propriedade, de corpos de mulheres e de crianças violentados como
objetos de guerra. Quando a ignorância arrogante se complementa com a
ignorância malévola, a ignorância indolente torna-se tão invisível que é
praticamente impossível de erradicar.
O
impacto destes três tipos principais de ignorância nas democracias do nosso
tempo é convergente, embora diferenciado. Todas estas ignorâncias contribuem
para produzir democracia de baixa intensidade. A ignorância arrogante torna
impossível a democracia intercultural e plurinacional, na medida em que outros
saberes e modos de vida e de deliberação são impedidos de contribuir para o
aprofundamento democrático; e faz com que vastos setores da população não se
sintam representados pelos seus representantes e nem sequer participem nos
processos eleitorais de raiz liberal. A ignorância indolente retira da
deliberação democrática decisões sobre justiça social histórica, sexual, e
descolonizadora, sem as quais a prática democrática é vista por vastas camadas
da população como um jogo de elites, uma disputa interna entre os vencedores
dos conflitos históricos. Mas a ignorância malévola é a mais antidemocrática de
todas. Sabemos que as deliberações democráticas são tomadas com base em fatos,
percepções e opiniões. Ora a ignorância malévola priva a democracia dos fatos
e, ao fazê-lo, converte a boa fé dos que dela são vítimas em figurantes ou
jogadores ingênuos num jogo perverso onde sempre perdem e, mais do que isso, se
auto-infligem a derrota.
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