terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Irlanda: o Comum volta a mostrar força


Após um século de domínio dos partidos conservadores, nova esquerda lidera eleições parlamentares e pode formar governo. Seu trunfo principal: diante crise da da política tradicional, condenar a “austeridade”, propor Reforma Tributária e políticas redistributivas de Habitação e Saúde

António Martins | Outras Palavras

A ideia segundo a qual o Ocidente vive uma maré conservadora, que obriga as forças de esquerda a se manter em defensiva, voltou a ser questionada pelos fatos ontem. Na Irlanda, uma longa hegemonia foi quebrada. Os dois partidos de centro-direita que governam o país há um século – Fianna Fail and Fine Gael – foram derrotados. Sobressaiu, nas eleições parlamentares, o Sinn Fein, historicamente ligado ao Exército Republicano Irlandês (IRA) e por isso estigmatizado durante décadas.

Liderado pela primeira vez por uma mulher, Mary Lou McDonald, tem até o momento 24,5% dos votos (quase o dobro do obtido há quatro anos), à frente de seus rivais. Não é certo que consiga formar um novo governo. Porém, as razões de sua vitória são claras. O Sinn Fein politizou o desencanto da população com a velha política. Defendeu, em especial, um feixe de políticas claramente voltadas a reduzir as desigualdades e criar instituições do Comum – no caso irlandês, principalmente Saúde Pública e Direito à Habitação. Estas posições tornaram-no especialmente popular entre os jovens. Segundo pesquisas de boca de urna, teve 32% das preferências, no grupo entre 18 e 34 anos.

Povoada pelos celtas, tendo sofrido forte influência viking na Idade Média, a Irlanda foi conquistada pelo Império Britânico em 1800 e alcançou sua independência apenas em 1922, tendo capital em Dublin (uma parte menor de seu território, a Irlanda do Norte, separou-se em seguida, estabeleceu capital em Belfast e compõe até hoje o Reino Unido). Nos anos 1990, tornou-se meca de grandes corporações (em especial tecnológicas), interessadas em tirar proveito de baixos impostos. Com população reduzida (menos de 5 milhões de habitantes) e área de 70 mil km², equivalente a 1,5 vezes a do Estado do Rio, tornou-se ficou então conhecida como o “tigre celta”. Seu PIB per capita (US$ 83 mil) é o quinto do mundo, mais de cinco vezes superior ao brasileiro.




Mas a crise global de 2018 interrompeu seu crescimento e mostrou que, no capitalismo contemporâneo, mesmo os países muito ricos convivem com condições de vida em declínio. Uma crise bancária exigiu resgate do FMI e Banco Central Europeu. Em contrapartida, os governos irlandeses aceitaram impor à população um feixe de políticas de “austeridade”, que resultou em greves e protestos – especialmente estudantis (em 2011, houve um Occupy Belfast, que instalou-se no edifício-sede do Banco da Irlanda).

A partir de 2015, a economia voltou a crescer rapidamente, mas em benefício de uma pequena minoria e das corporações. Em 2019, uma vasta matéria no New York Times relatava o aumento dos aluguéis, os milhares de desalojamentos de famílias inadimplentes e o surgimento de uma população de sem-teto. Ao mesmo tempo, o corte de verbas para a Saúde desencadeou uma crise nos hospitais públicos.

Esta combinação de fatores, mais a sagacidade do Sinn Fein, tiraram o partido da condição marginal que ocupava até agora. Na campanha eleitoral, as duas agremiações de centro-direita hegemônicas há cem anos atacaram o partido, apontando seus laços com o IRA e afirmando que suas propostas “socialistas” espantariam investidores. Mas o Sinn Fein manteve-se firme em seu ataque à desigualdade e na defesa de sua plataforma. Ela enfatiza impostos mais altos para os ricos e as corporações. Promete anular as medidas de “austeridade” que atingiram a Saúde pública. Responde à crise da Habitação com congelamento dos aluguéis e construção de dezenas de milhares de novas casas. Em completo contraste com as contrarreformas da Previdência, quer reduzir a idade mínima para aposentadorias.

Estas propostas deram-lhe a vitória sobre o Fianna Fail (22,2%) e o Fine Gael (20,9%). Ainda não é certo que o Sinn Fein possa liderar um novo governo. Para isso, teria de buscar coalizões com o Partido Verde (7,1%), o Partido Trabalhista (4,4%), o Partido Social Democrata (2,9%) e o Partido da Solidariedade (2,6%) e ou contar com a divisão entre as duas legendas de centro-direita rivais. De qualquer forma, afirmou Mary Lou Macdonald, a líder do Sinn Fein, o mais importante é que as propostas do partido estarão agora no centro do debate irlandês.

Há um efeito colateral importante: defensor da união entre as duas Irlandas, situadas na mesma ilha no Mar do Norte, o Sinn Fein pode tensionar a coesão do Reino Unido. Uma maneira de fazê-lo, prevista no programa do partido, é realizar em pouco tempo, e em seu próprio território, um plebiscito sobre a reunificação. A medida, evidentemente, não dependeria da aprovação de Londres ou Belfast, mas poderia provocar desejos de unificação também na Irlanda do Norte…

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