Pedro Tadeu | TSF | opinião
Uma das coisas que me desilude no debate sobre a questão da eutanásia é o facto de muitos dos protagonistas que se envolveram nele partirem de posições de princípios éticos, morais ou religiosos que lhes servem para defender uma argumentação a favor ou contra legislação que permita tornar legal alguém provocar uma morte indolor a uma pessoa que quer morrer.
As questões éticas, morais e religiosas são relevantes no debate da eutanásia, mas não podem prevalecer sobre as questões práticas. Antes de decidirmos se devemos ou não, em Portugal, legislar sobre a eutanásia, devemos olhar com muito cuidado para como é que, na prática, isso pode ser feito e para as consequências na vida real dos cidadãos de uma legislação desse tipo.
Há vários anos, quer por motivos profissionais, quer pessoais, que estudo o problema da eutanásia e do suicídio assistido. Deixo no site da TSF links para alguns textos (aqui, aqui e aqui) que, nesse período, escrevi no Diário de Notícias e que me parecem interessantes. Mas a conclusão a que cheguei, depois desse estudo e desse trabalho (para o qual parti inicialmente de uma posição a favor da legalização da eutanásia) é que, nesta matéria, não tenho a certeza sobre qual é a decisão mais humana, mais solidária e mais sensata.
Vou deixar algumas dúvidas para os leitores refletirem e que têm a ver com o que escrevi no início, ou seja, sobre o efeito da aplicação prática da eutanásia.
Quando alguém, possivelmente um profissional de saúde, executa um pedido de eutanásia a um doente que tem dificuldades de comunicação, como podemos ter a certeza de que o processo não é parado se houver um arrependimento de último segundo?
Como temos a certeza de que não matamos uma pessoa que se arrependeu e quer viver, apesar de todo o processo anterior, e já depois de lhe terem sido injetados os produtos que vão concretizar o pedido de eutanásia?
De tudo o que li não me parece que haja resposta para o problema de impedir o processo de morte de alguém que se arrepende no último instante de fazer eutanásia, sobretudo em doentes que não comunicam mas podem estar perfeitamente conscientes do que se passa à sua volta.
Este problema, que não me parece ter solução, poderia servir de argumento forte para os que são contra a eutanásia. Mas também há um problema desse lado para o qual não encontro resposta: o da eficácia dos cuidados paliativos.
A maioria das pessoas que quer fazer eutanásia sofre com dor.
Diz-me a experiência que os cuidados paliativos modernos, desde que haja serviços capazes e dinheiro para os pagar, produzem verdadeiros milagres no controlo da dor. Mas, diz-me também a mesma experiência prática vivida com familiares, os cuidados paliativos têm um limite e há alturas, nos estágios mais avançados das doenças mais dolorosas, em que ou não funcionam ou, para funcionarem, põem o doente ou num estado de semiconsciência, ou com alucinações, ou a dormir quase 24 horas sobre 24 horas, ou com incapacidade confrangedora de compreensão do mundo à sua volta.
Não é legítimo dar a quem chega a este ponto, a quem chega a uma situação em que já não é possível a vida na posse de faculdades essenciais para a definição normal do que é humanidade, que se aceite um pedido anterior, feito em consciência, para a execução de uma eutanásia?
Estes são apenas dois exemplos práticos dos problemas que uma decisão a favor ou contra a eutanásia coloca, mas há muitos mais.
Se cada um de nós pensar na sua própria morte, é natural que prefira ter a possibilidade de controlar o processo até ao fim. Nesse sentido parece fazer sentido aceitar o suicídio assistido, em que a própria pessoa que quer morrer executa até ao fim os procedimentos necessários. Isto parece ser uma solução humana e natural, nem que seja para evitar a violência para o próprio e para os que o rodeiam de um suicídio solitário, mas discrimina os que não têm condições físicas para se suicidarem. Por outro lado, colocar outras pessoas a satisfazer um pedido de eutanásia levanta muitos outros problemas e dúvidas, como os dois que já abordei.
O direito individual que me poderia levar a aceitar o suicídio assistido como um limite aceitável para estes casos confronta-me com, por exemplo, a notícia de, na Holanda, onde a eutanásia é legal, já haver mais de 10 mil mortes por ano através de eutanásia e estar a discutir-se que todas as pessoas com mais de 70 anos deveriam ter um comprimido para se suicidarem.
Pode o direito individual de cada um ter a possibilidade de controlar a sua morte abrir a porta à pressão da sociedade para que convençam os mais velhos a morrerem mais depressa? Não temos uma sociedade que se queixa de ter velhos a mais? Que se lamenta das despesas cada vez maiores com a saúde ou a segurança social? Que obriga cada vez mais familiares a enfrentarem o embate psicológico de acompanharem doentes crónicos ou prolongados, que se tornam numa grave perturbação da sua própria vida pessoal?...
Como é que se legisla levando em conta estas e muitas outras questões, que não posso agora abordar aqui, é algo que não sei. Peço, apenas, e humildemente, muito, mas mesmo muito cuidado aos nossos deputados.
Sem comentários:
Enviar um comentário