Além de nos descrever a situação
em Itália, o cientista italiano Francesco Galassi diz que, em breve, toda a
Europa vai enfrentar problemas semelhantes ao seu país.
ENTREVISTA
Normalmente, o cientista e médico
italiano Francesco Galassi investiga as doenças que afectaram os humanos no
passado. Mas, nos últimos tempos, tem-se dedicado ao presente: tanto a combater
as fake news sobre a covid-19 como a dar informação correcta
sobre o que está a acontecer em Itália. “Fornecer informações correctas ao
público é um dever moral de todos os médicos e académicos”, considera. O
professor da Universidade de Flinders, na Austrália, descreve-nos a situação em
Itália, alerta-nos para os riscos em Portugal e leva-nos numa viagem pelas
pandemias ao longo da história. Neste momento, também ele tem trabalhado
sobretudo em casa, na Sicília, onde dirige o Centro de Investigação FAPAB, que
se dedica à paleopatologia, bioarqueologia e antropologia forense.
Como está a situação em Itália,
actualmente?
A situação ainda é muito grave. Já contamos com mais de 24 mil casos e mais de 2100 mortes. Estamos sobretudo preocupados com os espaços reduzidos nos hospitais e com a rápida disseminação da doença. O Norte industrialmente produtivo está de rastos e o resto do país está a seguir essa tendência.
O sistema de saúde italiano
estava preparado para esta pandemia?
O sistema de saúde italiano é um dos melhores do mundo. Contudo, não estávamos à espera de algo tão repentino e devastador como a situação trazida pelo novo vírus. O principal problema está relacionado com o facto de muitas pessoas terem sido internadas nas unidades de cuidados intensivos e de os hospitais ficarem sem camas. E está a acontecer precisamente numa altura de maior afluência por causa da gripe sazonal e de doenças como o AVC. Isto é um choque para o sistema e para todo o país. Reduzi-lo a um “problema italiano”, como aconteceu com outras doenças ao longo da história, é errado. Em breve, toda a Europa enfrentará problemas semelhantes.
É verdade que os médicos
italianos têm de escolher pôr ventiladores entre doentes mais jovens e
mais velhos?
Infelizmente, é verdade. Decisões difíceis devem ser tomadas devido ao aumento dos casos de insuficiência respiratória, o que causará um desequilíbrio entre as necessidades dos doentes e os recursos hospitalares disponíveis. A Sociedade Italiana de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Cuidados Intensivos publicou orientações específicas sobre como se deve enfrentar este cenário. Os tratamentos nos cuidados intensivos têm de ser garantidos para doentes com mais probabilidade de sucesso terapêutico. Portanto, a “maior esperança de vida” deve ser favorecida. Isto seria impensável há umas semanas.
O sistema de saúde italiano está
a entrar em colapso?
Estamos a esforçar-nos ao máximo para aguentar, mas esse é um risco que temos em conta. Depende muito de como podemos parar a transmissão do vírus. As próximas duas semanas serão fundamentais. Os profissionais de saúde estão a dar tudo o que têm. Estão exaustos, mas não desistem. São “soldados” que estão a lutar contra um inimigo praticamente invisível para salvar vidas.
A quarentena em Itália foi
decretada demasiado tarde?
É sempre melhor mais tarde do que nunca, mas devíamos ter actuado mais cedo. Nestas alturas, não há apenas decisões científicas ou médicas, a política tem sempre um grande papel em tudo isto. Estou satisfeito por a classe política ter concordado com estas medidas. Não podemos passar o tempo a queixar-nos sobre o que deveria ter sido feito antes; agora, temos de enfrentar a situação e actuar o mais rápido possível.
Como está a ser a quarentena em
Itália?
É possível sair de casa com motivos devidamente justificados, como para ir trabalhar (quando o teletrabalho não é possível), para cuidados de saúde e outras questões de sobrevivência (por exemplo, ir ao supermercado ou à farmácia). Deve-se mostrar às autoridades uma certificação que demonstra a verdadeira razão para a pessoa se estar a deslocar àquele local. Por agora, estamos de quarentena até 3 de Abril.
Esta quarentena será suficiente?
É uma quarentena drástica e trará resultados decisivos. Se as pessoas não perceberem que devem mesmo resguardar-se, medidas mais graves serão implementadas. A saúde pública é uma prioridade, a qualquer custo.
Há pessoas que ainda não
perceberam que devem ficar em casa?
Muitas já perceberam e muitas não se estão a comportar da melhor forma. A polícia está a sancionar essas más condutas. Acho que essas pessoas estão a subestimar o problema e pensam que é uma típica doença sazonal.
Por que é que a situação se
tornou tão grave em Itália?
Esta é uma situação com uma dimensão internacional, não tem uma dimensão só italiana. Em Itália, testámos um grande número de pessoas, mais do que outros países.
Mas como é que esta pandemia
começou em Itália?
A 20 de Fevereiro, o paciente número 1 chamou a atenção das autoridades de saúde na Lombardia. De acordo com o médico que o tratou, apresentou sintomas de uma ligeira pneumonia que não estava a responder às terapias tradicionais. Ao se falar com o doente, tornou-se claro que ele tinha jantado com uma pessoa que tinha regressado da China. Isto fez com que as autoridades de saúde ficassem alarmadas e começassem a fazer testes às pessoas a propósito do novo coronavírus. O teste do paciente 1 deu positivo, mas o teste da tal pessoa que regressou da China deu negativo. Por esta razão, ainda não sabemos quem é o paciente zero. Estudos moleculares mais recentes mostraram que o paciente zero faz parte de um “episódio alemão”, ou seja, alguém que chegou ao Norte de Itália vindo de Munique, embora a origem da doença seja na China.
Quais poderão ser os cenários dos
próximos dias?
A situação pode piorar e esperamos mais casos positivos, assim como mais mortes. Mas os italianos sabem como enfrentar as dificuldades e estou certo de que juntos iremos triunfar sobre este inimigo.
Já se atingiu o pico do surto em
Itália?
Não é fácil de se responder a isso porque não há apenas um foco da epidemia, o que significa que há diferentes curvas. Por agora, o Governo italiano estima que seja atingido a 18 de Março, mas isso apenas numa parte do país. Na Sicília, espera-se que seja daqui a entre 20 e 13 dias.
Está a seguir a situação em
Portugal? Estamos a fazer o suficiente, como a declaração do estado de alerta e
fecho de escolas e limitação de circulação de pessoas?
Sim, estou a acompanhar. Por agora, o país não tem sido fortemente afectado como outros, como Itália, mas os dados não são certamente agradáveis. Tal como vimos na China, quando o contacto entre humanos é rapidamente limitado, são alcançados melhores resultados preventivos. As medidas portuguesas são um bom sinal ao nível do risco que se está a enfrentar, mas medidas mais rigorosas deverão ser aplicadas imediatamente, para se evitar o que aconteceu em Itália.
E quanto a outros países
europeus, como o Reino Unido ou a França, que têm aplicado diferentes
medidas? Devem ser mais drásticas?
Absolutamente! Nem tenho dúvidas disso. Antes de termos uma vacina eficaz disponível, uma quarentena intensa é a melhor forma de prevenção. Tenho lido os comunicados oficiais do Reino Unido esta semana e fiquei chocado. Uma pandemia como esta deve ser vigorosamente travada. Não podemos apenas ficar sentados à espera de ver como iremos sobreviver. Tenho a impressão de que algumas pessoas ainda não perceberam a verdadeira natureza e escala deste problema.
Quais são ainda os maiores riscos
para Portugal?
Os mesmos de Itália. Estamos todos no mesmo barco. O principal risco é o impacto maciço no sistema de saúde. Também são esperados problemas económicos. É um problema geral com consequências já previsíveis. Mas tenho a certeza de que os médicos portugueses farão o seu melhor para conter esta nova doença.
Como deve ser o comportamento das
pessoas nesta altura?
Nesta fase, devemos resguardar-nos. Devemos evitar viagens e actividades ao ar livre que não sejam estritamente necessárias. Não devemos tocar ou falar muito perto com as outras pessoas. Todas as regras de higiene devem ser aplicadas no nosso quotidiano. Elas são sempre importantes, mas agora tornaram-se fundamentais. Um grande sentido de responsabilidade deve ser interiorizado a nível individual e comunitário.
Fazendo uma viagem pela história,
quais são as principais pandemias?
Na Ilíada de Homero temos [uma referência a uma praga] através da ira de Apolo. As grandes epidemias são reportadas em fontes históricas: a praga de Atenas [430 a.C.-426 a.C.] é descrita por Tucídides; a peste Antonina e a praga de Cipriano devastaram o Império Romano; a praga de Justiniano [afectou o mundo mediterrâneo no século VI]; a Peste Negra [no século XIV dizimou um quarto da população Ocidental], da qual Boccaccio nos deu um relato detalhado; a cólera no século XIX; e a gripe espanhola no final da Primeira Guerra Mundial. A qualquer momento, apesar dos avanços científicos, estamos vulneráveis a [estas epidemias] e as reacções das pessoas são muito semelhantes às que são descritas nas fontes históricas. À medida que a infecção se espalha, o medo é algo comum em todos estes momentos históricos.
Quais as semelhanças com a
pandemia que estamos a viver?
A grande semelhança entre as grandes pragas e esta pandemia é a componente animal, em que a doença passa dos animais para as pessoas, a que chamamos zoonose. Se ler a Ilíada, a doença que afecta os gregos primeiro afectou os animais. Este contacto próximo entre animais e humanos aconteceu sempre ao longo da história, o que permitiu a zoonose. Por exemplo, a peste de Atenas foi causada por uma bactéria e a pandemia actual foi por um vírus. Já a pandemia da gripe espanhola foi provocada por um vírus influenza e teve um impacto diferente porque começou a afectar os mais novos, em vez dos mais velhos. O coronavírus afecta, sobretudo, os mais velhos e também afecta as pessoas mais novas. É errado quando as pessoas dizem que só afecta os mais velhos.
Já a pandemia de 2009 foi uma
epidemia da gripe [suína]: era uma doença completamente diferente da covid-19 e
causada pelo vírus H1N1. Esta vem de um coronavírus. Das estimativas que temos,
a letalidade da gripe suína será menor do que aquela que estamos a ver por
agora na covid-19, mas é muito cedo para fazermos estimativas. Uma coisa que é
realmente característica da covid-19 – e que não é na gripe – é que causa
pneumonia viral primária. A covid-19 tem alguns sintomas similares à influenza,
mas é muito mais grave.
E qual o impacto dessas pandemias?
Tiveram um impacto enorme na história, por diversas razões. No passado, as pessoas não sabiam o que as provocava: diziam que tinham sido causadas pela fúria de Deus. Não se tinha ideia de que os agentes patogénicos espalhavam doenças. Também não tinham medidas preventivas. As medidas de higiene eram muito poucas e a transmissão da doença era muito fácil. E a medicina da altura não tinha grande capacidade para garantir condições de vida. Não é surpreendente que tenhamos milhões de mortes durante a Peste Negra ou durante a gripe espanhola. Nesta última, a Europa estava devastada pela Primeira Guerra Mundial e os soldados e as trincheiras favoreceram a chegada da doença.
Apesar de ainda não termos todos
os dados, a letalidade da covid-19 será muito mais baixa do que a da peste do
século XIV porque estamos em períodos diferentes. Não havia medidas de higiene
e a medicina não era avançada e eficaz como a de hoje. Mas é sempre algo que
pode mudar. A actual pandemia é a prova de que as grandes doenças podem sempre
voltar a afectar o nosso mundo. Nesta altura, é muito importante reagir
rapidamente e implementar medidas preventivas para conter a epidemia.
O conceito de quarentena começou
em Itália. Há semelhanças com a situação actual?
No seguimento da grande peste do século XIV, foi criada uma série de medidas sobretudo pelos venezianos e pela República de Ragusa [hoje Dubrovnik, na Croácia]. O termo introduzido foi “quarentena”, o que significava que as pessoas suspeitas de terem a doença chegavam nos navios não podiam desembarcar e tinham de ficar isoladas durante 40 dias. A palavra permaneceu igual, mas o período de isolamento hoje pode ser muito menor e variar (o desta pandemia é de 14 dias). Agora [na pandemia do coronavírus] a quarentena estendeu-se a toda Itália e é apoiada por provas científicas.
Quão responsáveis somos por estas
pandemias?
Podemos sê-lo devido a poucas condições de higiene, movimentações e interacção social. A nível político, muitas vezes quem está no poder aborda estas questões sem usar a perspectiva médica ou sem ouvir suficientemente cedo quem investiga estes problemas.
Como podemos travar a pandemia?
Se todos os países adoptarem sistemas de prevenção, podemos ter esperança no futuro. Precisamos de desacelerar a pandemia até termos medicamentos eficazes e, acima de tudo, uma vacina disponível. Temos de mostrar que a espécie humana consegue permanecer unida para derrotar um inimigo comum.
Teresa Sofia Serafim |
Público
Imagens: 1 - Limpeza nas ruas de
Roma devido à pandemia do novo coronavírus ANGELO CARCONI/LUSA; 2 - Francesco
Galassi DR
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