Já não há dúvidas: existe um
grupo radical que quer "impor a sharia" em Moçambique, dizem
investigadores à DW. Governo tem agora de trabalhar com o povo para
"evitar que haja gente a passar para o lado do inimigo".
5 de outubro de 2017. A data é
frequentemente apontada como o primeiro ataque levado a cabo por indivíduos
armados no distrito de Mocímboa da Praia, na província nortenha de Cabo
Delgado. Os ataques espalharam-se, entretanto, por vários distritos da região e
têm sido recorrentes. Dois anos e meio depois, só "para as autoridades
moçambicanas o mistério em torno da identidade e motivação deste grupo
persistem", escreve o investigador Sérgio Chichava no relatório "Quem
é o inimigo que ataca Cabo Delgado? Breve apresentação das hipóteses do Governo
moçambicano", agora publicado.
"Não acredito muito nessa
tese [que não sabe quem são os insurgentes], porque o Governo tem elementos
suficientes para dizer quem é o grupo que está a atacar Cabo Delgado e o que
pretende. Esse grupo nunca escondeu, desde o início, que pretende impor a
sharia", lei islâmica que se sobrepõe à autoridade do Estado, explica em
entrevista à DW África o pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e
Económicos (IESE), que garante que já se falava na presença destes grupos em
Moçambique em 2016.
"Evidências no terreno
mostram claramente que o país está perante a presença de um grupo radical
islâmico", conclui Chichava, sublinhando que os recentes ataques em
Mocímboa da Praia e Quissanga, no final de março, "deixam poucas dúvidas da
ligação entre o Al Shabaab e o Estado Islâmico", o que "deita por
terra a tese de que se trata de atacantes sem rosto nem mensagem".
O grupo que tem atacado a
província de Cabo Delgado é conhecido localmente como "Al-Shabaab",
apesar de não serem conhecidas ligações com os jihadistas com esse nome e que
operam na Somália.
Nas últimas semanas, circularam
nas redes sociais fotos e vídeos dos atacantes a içar uma bandeira semelhante à
do grupo terrorista Estado Islâmico num quartel das Forças de Defesa e
Segurança, depois de terem destruído várias infraestruturas nas vilas de
Mocímboa da Praia e Quissanga, assaltado bancos e ocupado edifícios
governamentais.
Mais recentemente, na semana
passada, uma igreja católica no distrito de Muidumbe, em Cabo Delgado, foi
vandalizada. "Toda a população está a fugir para o mato", contou
na altura à DW África o bispo de Pemba, Dom Luiz Fernando Lisboa.
Insurgentes mudam de estratégia
Várias organizações
internacionais têm classificado como "ameaça terrorista" a violência
na região de Cabo Delgado, que desde 2017 já fez centenas de mortos e milhares
de deslocados. O grupo extremista Estado Islâmico já reivindicou
várias ações armadas em Cabo Delgado.
Se até aqui a identidade dos
assaltantes era pouco clara e as suas intenções desconhecidas, as dúvidas
começaram, entretanto, a dissipar-se. Num vídeo publicado na Internet no final
de março, um suposto jihadista justificava os ataques no norte de Moçambique
com o objetivo de impor a lei islâmica na região.
É cada vez mais evidente a
mudança na estratégia militar e mediática dos insurgentes, que já nem se dão ao
trabalho de esconder o rosto nos vídeos em que reivindicam os ataques. "Há
uma mudança sem dúvida, mas esta mudança não veio de repente. Houve um
crescimento gradual", explica em entrevista à DW África o investigador
britânico Eric Morier-Genoud.
"Começaram por atacar no
campo à noite, depois de dia, depois atacaram vias de comunicação, depois vilas
pequenas e agora sedes de distrito. E aconteceu o mesmo com a comunicação –
cresceu regularmente", lembra o professor de História de África na
Universidade de Queens, em Belfast, que prefere falar num "culminar da
situação" em vez de uma "viragem brusca".
"Temos agora ataques mais
regulares, mais ousados, mais espetaculares, mas em termos de violência já
vivemos também momentos bastante terríveis em Cabo Delgado, com decapitação de
pessoas, destruição de aldeias e de mesquitas. A cada dia que passa há ataques
em vários lugares, sobretudo às sedes distritais", recorda Sérgio Chichava
em entrevista à DW África.
O investigador moçambicano, que
tem ido ao norte investigar os ataques, defende que é preciso mais pesquisa
para entender as "diferentes mutações" pelas quais passou o grupo de
insurgentes nos últimos dois anos e meio e os motivos de ter optado "pela
via militar para alcançar o seu objetivo."
Mudanças na tese do Governo
No relatório mais recente do
IESE, o investigador moçambicano enumera as diferentes conclusões do Executivo
de Maputo sobre a identidade e os objetivos do grupo armado que tem atacado a
província de Cabo Delgado.
Segundo Sérgio Chichava,
basicamente são quatro as hipóteses avançadas até hoje pelo Governo
moçambicano. Primeiro, começou por dizer que os "insurgentes" eram
indivíduos com o objetivo de instalar um Estado islâmico. Depois mudou o
discurso e apontou o dedo a antigos garimpeiros das minas de rubi em Montepuez,
que estariam a ser manipulados por "estrangeiros" da Tanzânia e da
República Democrática do Congo (RDC) expulsos das minas, onde alegadamente
faziam exploração clandestina. A seguir acusou um grupo de empresários
moçambicanos residentes na Beira de financiarem os insurgentes, supostamente
por estarem descontentes com o combate do Estado ao tráfico ilegal de madeira.
E, por último, avançou a hipótese de que se tratava de "uma guerra movida
por forças externas em conluio com alguns moçambicanos".
"É difícil perceber porque é
que houve um volte-face do Governo depois de no início ter defendido que se
tratava de um grupo radical islâmico", afirma Sérgio Chichava, que
acredita que terá havido "uma tentativa de evitar entrar em rota de
colisão com a comunidade muçulmana local."
O investigador Eric Morier-Genoud
considera que ainda há "muito silêncio" por parte das autoridades.
"Seria bom o Governo, o exército e a polícia darem uma explicação oficial
substancial do que está a acontecer em Cabo Delgado e fazerem briefings
regulares sobre a situação. Assim, o Governo podia controlar a narrativa,
enquanto o povo ficaria mais esclarecido e mais sossegado", defende o
académico.
Governo tem de "fazer
mais"
"O Governo condena veemente
os hediondos e violentos ataques e continuará a perseguir todos os assassinos,
levando-os, como está a acontecer, à barra da justiça", prometeu este
domingo (13.04) o Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, durante a cerimónia de
tomada de posse da nova presidente do Tribunal Administrativo, Lúcia do Amaral.
Mas no terreno são cada vez mais
evidentes as dificuldades das Forças de Defesa e Segurança em controlar a
situação. Aumenta, por isso, a pressão para que o Governo moçambicano encontre
uma solução global para o problema.
"A maneira como estão a
acontecer os ataques, em que os insurgentes quase não têm tido oposição, ou
muito fraca oposição, por parte das Forças Armadas moçambicanas, faz-me duvidar
que o Governo esteja preparado, pelo menos atualmente, para fazer face à
situação em Cabo Delgado", afirma Sérgio Chichava, que recomenda que o
Governo se "organize melhor" para enfrentar os insurgentes.
"Relatos no terreno, e não
só aqueles que circularam nos diferentes vídeos dos insurgentes, mostram que
estes têm melhor armamento que o das Forças Armadas e as próprias Forças
Armadas que estão em Cabo Delgado confirmam isso", lembra ainda o
investigador do IESE.
Eric Morier-Genoud salienta, por
outro lado, que "muito académicos e outros comentadores disseram desde o
início do conflito que a força, por si só, não ia resolver o conflito." O
Governo já levou a cabo algumas ações não militares para mitigar a situação,
"mas precisa fazer mais", defende o investigador britânico.
"Precisa trabalhar com a população, para diminuir divisões, frustrações ou
mágoas e, assim, evitar que estas levem a que haja gente a passar para o lado
do inimigo ou a colaborar com ele", conclui.
Guerra por recursos naturais?
O que está a acontecer neste
momento na região poderá ser interpretado como uma guerra pelos recursos
naturais? Apesar de a insurgência não ter começado por causa dos recursos
naturais, já que "vem de uma seita religiosa que quer mudar o Estado para
ter uma sociedade que opera sob a lei islâmica", lembra Eric
Morier-Genoud, tendo em conta o contexto de Cabo Delgado, a insurgência já tem consequências
sobre a exploração.
"Por um lado, causa
problemas de logística para as multinacionais do gás em Palma. Por outro lado,
é possível que a insurgência venha a envolver-se em breve na tributação ou até
na comercialização dos recursos explorados illegalmente", alerta o
especialista.
Moçambique prevê começar a
exportar gás natural de Cabo Delgado já a partir de 2022. Mas a crescente
presença militar de insurgentes é uma ameaça cada vez maior aos megaprojetos.
Madalena Sampaio | Deutsche Welle
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