terça-feira, 14 de abril de 2020

Moçambique | "Inimigo" que ataca Cabo Delgado tem rosto e mensagem clara


Já não há dúvidas: existe um grupo radical que quer "impor a sharia" em Moçambique, dizem investigadores à DW. Governo tem agora de trabalhar com o povo para "evitar que haja gente a passar para o lado do inimigo".

5 de outubro de 2017. A data é frequentemente apontada como o primeiro ataque levado a cabo por indivíduos armados no distrito de Mocímboa da Praia, na província nortenha de Cabo Delgado. Os ataques espalharam-se, entretanto, por vários distritos da região e têm sido recorrentes. Dois anos e meio depois, só "para as autoridades moçambicanas o mistério em torno da identidade e motivação deste grupo persistem", escreve o investigador Sérgio Chichava no relatório "Quem é o inimigo que ataca Cabo Delgado? Breve apresentação das hipóteses do Governo moçambicano", agora publicado.

"Não acredito muito nessa tese [que não sabe quem são os insurgentes], porque o Governo tem elementos suficientes para dizer quem é o grupo que está a atacar Cabo Delgado e o que pretende. Esse grupo nunca escondeu, desde o início, que pretende impor a sharia", lei islâmica que se sobrepõe à autoridade do Estado, explica em entrevista à DW África o pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE), que garante que já se falava na presença destes grupos em Moçambique em 2016.

"Evidências no terreno mostram claramente que o país está perante a presença de um grupo radical islâmico", conclui Chichava, sublinhando que os recentes ataques em Mocímboa da Praia e Quissanga, no final de março, "deixam poucas dúvidas da ligação entre o Al Shabaab e o Estado Islâmico", o que "deita por terra a tese de que se trata de atacantes sem rosto nem mensagem".

O grupo que tem atacado a província de Cabo Delgado é conhecido localmente como "Al-Shabaab", apesar de não serem conhecidas ligações com os jihadistas com esse nome e que operam na Somália.

Nas últimas semanas, circularam nas redes sociais fotos e vídeos dos atacantes a içar uma bandeira semelhante à do grupo terrorista Estado Islâmico num quartel das Forças de Defesa e Segurança, depois de terem destruído várias infraestruturas nas vilas de Mocímboa da Praia e Quissanga, assaltado bancos e ocupado edifícios governamentais.

Mais recentemente, na semana passada, uma igreja católica no distrito de Muidumbe, em Cabo Delgado, foi vandalizada. "Toda a população está a fugir para o mato", contou na altura à DW África o bispo de Pemba, Dom Luiz Fernando Lisboa.


Insurgentes mudam de estratégia

Várias organizações internacionais têm classificado como "ameaça terrorista" a violência na região de Cabo Delgado, que desde 2017 já fez centenas de mortos e milhares de deslocados. O grupo extremista Estado Islâmico já reivindicou várias ações armadas em Cabo Delgado.

Se até aqui a identidade dos assaltantes era pouco clara e as suas intenções desconhecidas, as dúvidas começaram, entretanto, a dissipar-se. Num vídeo publicado na Internet no final de março, um suposto jihadista justificava os ataques no norte de Moçambique com o objetivo de impor a lei islâmica na região.

É cada vez mais evidente a mudança na estratégia militar e mediática dos insurgentes, que já nem se dão ao trabalho de esconder o rosto nos vídeos em que reivindicam os ataques. "Há uma mudança sem dúvida, mas esta mudança não veio de repente. Houve um crescimento gradual", explica em entrevista à DW África o investigador britânico Eric Morier-Genoud.

"Começaram por atacar no campo à noite, depois de dia, depois atacaram vias de comunicação, depois vilas pequenas e agora sedes de distrito. E aconteceu o mesmo com a comunicação – cresceu regularmente", lembra o professor de História de África na Universidade de Queens, em Belfast, que prefere falar num "culminar da situação" em vez de uma "viragem brusca".

"Temos agora ataques mais regulares, mais ousados, mais espetaculares, mas em termos de violência já vivemos também momentos bastante terríveis em Cabo Delgado, com decapitação de pessoas, destruição de aldeias e de mesquitas. A cada dia que passa há ataques em vários lugares, sobretudo às sedes distritais", recorda Sérgio Chichava em entrevista à DW África.

O investigador moçambicano, que tem ido ao norte investigar os ataques, defende que é preciso mais pesquisa para entender as "diferentes mutações" pelas quais passou o grupo de insurgentes nos últimos dois anos e meio e os motivos de ter optado "pela via militar para alcançar o seu objetivo."

Mudanças na tese do Governo

No relatório mais recente do IESE, o investigador moçambicano enumera as diferentes conclusões do Executivo de Maputo sobre a identidade e os objetivos do grupo armado que tem atacado a província de Cabo Delgado.

Segundo Sérgio Chichava, basicamente são quatro as hipóteses avançadas até hoje pelo Governo moçambicano. Primeiro, começou por dizer que os "insurgentes" eram indivíduos com o objetivo de instalar um Estado islâmico. Depois mudou o discurso e apontou o dedo a antigos garimpeiros das minas de rubi em Montepuez, que estariam a ser manipulados por "estrangeiros" da Tanzânia e da República Democrática do Congo (RDC) expulsos das minas, onde alegadamente faziam exploração clandestina. A seguir acusou um grupo de empresários moçambicanos residentes na Beira de financiarem os insurgentes, supostamente por estarem descontentes com o combate do Estado ao tráfico ilegal de madeira. E, por último, avançou a hipótese de que se tratava de "uma guerra movida por forças externas em conluio com alguns moçambicanos".

"É difícil perceber porque é que houve um volte-face do Governo depois de no início ter defendido que se tratava de um grupo radical islâmico", afirma Sérgio Chichava, que acredita que terá havido "uma tentativa de evitar entrar em rota de colisão com a comunidade muçulmana local."

O investigador Eric Morier-Genoud considera que ainda há "muito silêncio" por parte das autoridades. "Seria bom o Governo, o exército e a polícia darem uma explicação oficial substancial do que está a acontecer em Cabo Delgado e fazerem briefings regulares sobre a situação. Assim, o Governo podia controlar a narrativa, enquanto o povo ficaria mais esclarecido e mais sossegado", defende o académico.

Governo tem de "fazer mais"

"O Governo condena veemente os hediondos e violentos ataques e continuará a perseguir todos os assassinos, levando-os, como está a acontecer, à barra da justiça", prometeu este domingo (13.04) o Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, durante a cerimónia de tomada de posse da nova presidente do Tribunal Administrativo, Lúcia do Amaral.

Mas no terreno são cada vez mais evidentes as dificuldades das Forças de Defesa e Segurança em controlar a situação. Aumenta, por isso, a pressão para que o Governo moçambicano encontre uma solução global para o problema.

"A maneira como estão a acontecer os ataques, em que os insurgentes quase não têm tido oposição, ou muito fraca oposição, por parte das Forças Armadas moçambicanas, faz-me duvidar que o Governo esteja preparado, pelo menos atualmente, para fazer face à situação em Cabo Delgado", afirma Sérgio Chichava, que recomenda que o Governo se "organize melhor" para enfrentar os insurgentes.

"Relatos no terreno, e não só aqueles que circularam nos diferentes vídeos dos insurgentes, mostram que estes têm melhor armamento que o das Forças Armadas e as próprias Forças Armadas que estão em Cabo Delgado confirmam isso", lembra ainda o investigador do IESE.

Eric Morier-Genoud salienta, por outro lado, que "muito académicos e outros comentadores disseram desde o início do conflito que a força, por si só, não ia resolver o conflito." O Governo já levou a cabo algumas ações não militares para mitigar a situação, "mas precisa fazer mais", defende o investigador britânico. "Precisa trabalhar com a população, para diminuir divisões, frustrações ou mágoas e, assim, evitar que estas levem a que haja gente a passar para o lado do inimigo ou a colaborar com ele", conclui.
Guerra por recursos naturais?

O que está a acontecer neste momento na região poderá ser interpretado como uma guerra pelos recursos naturais? Apesar de a insurgência não ter começado por causa dos recursos naturais, já que "vem de uma seita religiosa que quer mudar o Estado para ter uma sociedade que opera sob a lei islâmica", lembra Eric Morier-Genoud, tendo em conta o contexto de Cabo Delgado, a insurgência já tem consequências sobre a exploração.

"Por um lado, causa problemas de logística para as multinacionais do gás em Palma. Por outro lado, é possível que a insurgência venha a envolver-se em breve na tributação ou até na comercialização dos recursos explorados illegalmente", alerta o especialista.

Moçambique prevê começar a exportar gás natural de Cabo Delgado já a partir de 2022. Mas a crescente presença militar de insurgentes é uma ameaça cada vez maior aos megaprojetos.

Madalena Sampaio | Deutsche Welle

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