Manuel Carvalho Da Silva*
| Jornal de Notícias | opinião
O retorno à normalidade é agora o
objetivo premente tornado coletivo. Que normal é esse a que se quer voltar?
A emergência e disseminação do
vírus e as duras condições do combate à pandemia trouxeram-nos, num espaço de
tempo curto, a evidência de que vimos de um passado carregado de erros e
contradições, de vulnerabilidades, riscos e injustiças. As desigualdades entre
as pessoas, os povos e os estados tornaram-se mais evidentes e inquietantes,
contudo já é visível que, se a resposta à crise se cingir à aplicação de leis,
de políticas e de práticas instituídas, essas desigualdades se aprofundam e se
gera um lastro pesado para o futuro.
É urgente evitar caminhos que
propiciam estabilidade a uma minoria e anormalidade permanente para a maioria
da população.
A saúde pública e a produção
económica são bens que não podem ser postos nos pratos de uma balança no
pressuposto de que um sobe quando o outro desce e vice-versa. Imaginamos,
porque estamos distantes de poder saber com rigor, a grande dimensão das consequências
económicas do confinamento sanitário. Mas serão enormes as consequências
sanitárias e económicas de uma pressão demasiada no lado da economia. Evite-se
uma escolha trágica entre dois males. Há quem, por egoísmo, pense que tudo se
resolve se cada um for já trabalhar, açaimado com máscaras protetoras mágicas e
vigiado por sistemas digitais capazes de saberem de cada um de nós coisas que
nem os próprios conhecem. É preciso ir trabalhar em pleno, mas as regras têm de
ser outras: não se podem cimentar divisões entre "produtivos" e
"não produtivos", entre os indispensáveis e os dispensáveis da
situação de emergência, entre teletrabalhadores e os outros. Se os idosos forem
colocados à parte, persistirão as condições de isolamento e desproteção em que
muitos vivem, e rapidamente se ouvirá um coro a qualificá-los de privilegiados
e de obstáculo ao "desenvolvimento" da sociedade.
O retorno à normalidade assente
na "retoma da economia" entregue direta ou indiretamente só à
responsabilidade do Estado - com este sujeito aos mercados - sem análise
crítica à matriz económica que vinha sendo prosseguida, nem esforço para
encontrar alternativas; a não consideração da "relocalização" de
atividades e de um forte impulso a restruturações empresariais; a introdução de
uma dose de tecnocapitalismo sem regulação (propiciador de mais fragmentação do
trabalho e de desigualdades); a normalização da perda já ocorrida de emprego e
de direitos laborais e o perigo de chantagem por parte de algumas empresas no
necessário processo de desarme da aplicação do lay-off, associados à conceção
de que a volta à normalidade política é o regresso a um governo do velho
"arco da governação" e a submissão às desastrosas políticas da União
Europeia, constituiria a mistura perfeita para o desastre. Precisamos de uma
economia ao serviço das necessidades das pessoas e da efetividade dos seus
direitos fundamentais.
Esta crise grita-nos às
consciências a centralidade do trabalho. O trabalho, individual e coletivo,
feito com lealdade e dignidade, como o da generalidade dos trabalhadores
portugueses mesmo quando ele é perigoso e mal pago, é imprescindível. A
normalidade tem de ser feita com mais justiça, menos desigualdades, valorização
do trabalho e afirmação do Estado social de direito democrático.
*Investigador e professor
universitário
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