O DN está em lay off. Ao
contrário do que no jornalismo se costuma dizer - que os jornalistas nunca são
notícia - isso é obviamente notícia. E deve, creio, ser falado aqui mesmo, onde
o lay off acontece, pelas pessoas que o vivem. Porque não está tudo bem, e
talvez nunca mais fique.
Fernanda Câncio | Diário de Notícias
| opinião
“Toda a vida ouvi a palavra lay
off e nunca soube bem o que quer dizer."
A frase é de um colega do DN, mas
podia ser minha. Como eu, ele é jornalista há décadas e viu muitas vezes este
termo aplicado a outros. Como eu nunca teve a curiosidade de tentar perceber -
perceber mesmo, de maneira a saber explicar - o que é um lay off. Até que
chegou a nossa vez.
É irónico, muito. E diz muito
sobre a forma como vemos o mundo, sobre o que consideramos importante saber e
transmitir, o lugar onde nos colocamos, como entendemos as relações laborais e
a importância que lhes damos. Diz muito sobre a forma como o jornalismo aborda
isso a que se dá o nome de luta dos trabalhadores, de como provavelmente a
maioria dos jornalistas desconhece noções básicas sobre o funcionamento do
mercado de trabalho, da economia, do Estado social. Como nos afastámos, na
cobertura noticiosa habitual, dessas matérias, a ponto de termos passado uma
longa crise económica, entre 2008 e 2016, sem ter uma ideia clara sobre um
mecanismo previsto no Código de Trabalho e criado pelo Estado para auxiliar
empresas em situação difícil e tentar manter postos de trabalho, pondo a
Segurança Social a pagar parte dos salários.
Acho que isto diz muito sobre
a nossa falta de consciência social. A minha falta de consciência social. A
minha falta de interesse pela realidade dos outros - o que é sempre muito mau
em seja quem for mas muito pior num jornalista. Talvez a pior coisa que posso
dizer de um jornalista seja isto, e estou a dizê-lo. Sobre mim.
Serve-me de pouco saber que não
sou única, que eu e o meu colega não somos únicos; que a generalidade dos
jornalistas, dentro e fora da redação do DN, e inclusive nos jornais
económicos, não faz ideia do que seja o lay off, mesmo se muitos já terão até
escrito sobre empresas e trabalhadores nessa situação.
Aliás, nas notícias que agora
saem sobre nós, os trabalhadores da empresa Global Media - que detém o DN - em
lay off, também não se explica em que consiste exatamente este mecanismo e
sobretudo o que significa para aqueles a quem é aplicado. Como vi esta
sexta-feira alguém dizer no Twitter, muita gente acha que lay off é
despedimento. O facto de se tratar de uma expressão inglesa ajuda à confusão: afinal,
lay off significa, à letra, "pousar fora" - como se nos pusessem à
porta.
E é mesmo disso que se trata: os
trabalhadores são postos fora das empresas, dos seus postos de trabalho durante
um determinado período. Os seus contratos de trabalho são suspensos total ou
parcialmente, consoante o lay off seja total ou parcial, e os seus salários
diminuídos para dois terços (não podendo ser inferiores ao ordenado mínimo),
sendo pagos em parte pela Segurança Social, que perdoa também à empresa o
pagamento da taxa social única durante o período de lay off.
Esse perdão da TSU só se aplica,
porém, à empresa; o trabalhador, apesar de ver o seu salário bruto diminuído,
continua a pagar 11% de TSU e IRS (na taxa correspondente ao seu
"novo" salário). Esta notícia - de que os trabalhadores nestas
circunstâncias, ao contrário do que passa por exemplo quando se está de baixa
ou a receber subsídio de desemprego, continuam a manter as suas obrigações
contributivas - dei-a a duas colegas da Global Media, que tinham usado o simulador on
line criado pela Segurança Social para perceber quanto iam receber e
pensavam que o valor ali constante era líquido.
Partilhei com elas também outra
descoberta desagradável: a de que até um determinado nível salarial - acima dos
três mil e tal euros de remuneração ilíquida não é assim - o trabalhador em lay
off recebe exatamente o mesmo quer esteja em regime parcial ou total. A
diferença está na percentagem que a Segurança Social paga: é maior no salário
do trabalhador em suspensão total. O que quer dizer, como comentou indignada
uma colega da TSF, que se não estivesse a trabalhar (ela está com 25% de lay
off, ou seja, terá de efetuar o trabalho correspondente a 75% do horário
normal) receberia o mesmo. O que é realmente injusto, até porque ainda não
percebi se as empresas são sequer obrigadas a pagar, na proporção dos dias que
trabalhem, o subsídio de refeição aos que foram colocados em lay off parcial.
Tudo isto, note-se, descobri nos
últimos dias, durante um processo muito rápido e durante o qual não existiu
qualquer diálogo da administração com os trabalhadores do DN (nem, que eu
saiba, com os dos outros títulos do grupo, nomeadamente TSF e Jornal de
Notícias). Neste jornal soubemos na quarta-feira 15 de abril que íamos entrar
em lay off porque a direção de Ferreira Fernandes e Catarina Carvalho se
demitiu e indicou esse motivo. Os nossos delegados sindicais e o Conselho de
Redação procuraram obter informação junto da administração, mas sem sucesso;
cinco dias depois, na tarde de segunda-feira 20, recebemos um comunicado da
administração a informar formalmente da intenção de nos colocar em lay off;
cerca de três horas depois cada trabalhador recebeu uma comunicação informando
que o lay off se iniciava nesse dia, especificando o regime que se lhe aplicava
(suspensão total ou parcial), e qual o valor do salário durante o mês de
duração da medida.
Apesar de a lei, mesmo no regime
hiper-simplificado do decreto invocado (que faz parte das medidas de estado
de emergência e restringe a aplicação à duração máxima de três meses, proibindo
o despedimento nos 60 dias subsequentes), prever que os representantes dos
trabalhadores sejam ouvidos -- naturalmente implicando que sejam informados dos
motivos, extensão do lay off e respetivos critérios -- antes da comunicação
definitiva, a administração da Global Media optou por não o fazer. O Sindicato
de Jornalistas fez protesto público em relação a esta atuação da empresa
e comunicou que vai participar dela por esse facto.
Também os trabalhadores do DN
protestaram, em carta dirigida à administração e subscrita por todos, na qual
solicitamos que nos forneça a informação que nos é devida e nos deveria ter
sido prestada antes de a empresa declarar o lay off.
A situação laboral nas empresas é
normalmente um assunto de interesse público e as empresas de comunicação social
não são exceção; pelo contrário. É costume os jornalistas dizerem, para evitar
falar destes assuntos, que não devem ser notícia. Mas isso não é verdade: quando
recebemos prémios, quando o jornal sobe nas vendas ou nas visualizações ou
cliques no site ou há qualquer outra coisa positiva para reportar noticiamo-la.
A alegada regra só é invocada quando se trata de coisas negativas:
despedimentos, demissões, conflitos editoriais, faltas deontológicas,
condenações judiciais, lay off. Nesses casos, os outros meios reportam,
enquanto aquele que está em causa se cala. Não concordo com isso e nunca concordei.
Entendo que aquilo que se passa
num jornal, nomeadamente as condições em que é feito e a situação dos seus
trabalhadores, deve ser do conhecimento dos seus leitores. Sendo o lay off um
mecanismo de auxílio do Estado, ou seja dos contribuintes, esse dever de
informação é acrescido.
"É o meu primeiro dia de lay
off. Trabalho desde os 16 anos. Nunca tinha sido dispensada. Grande sorte só
ser aos 51", escreveu Valentina Marcelino, jornalista do DN, esta
quarta-feira no Twitter. Dois dias antes partilhara ali um artigo assinado por
ela, comentando: "A preparar-me para o lay off de 50%." Estes dois
tuites comoveram-me por várias razões - decerto porque estou na mesma situação,
também eu com 50% de lay off e também eu, tendo 56 anos e começado a escrever
em jornais aos 22, pela primeira vez; mas sobretudo por causa daquele
"grande sorte".
É amargo, claro. E sarcástico.
Mas é também o reconhecimento de que até agora víamos isto como algo que
acontecia aos outros, algo que não nos dizia respeito. Escrevíamos sobre a
luta de outros trabalhadores pela manutenção dos seus postos de trabalho e pela
viabilidade das suas empresas, mas de fora. Sem nunca sabermos realmente o que
lay off queria dizer. Agora sabemos. Alguma coisa boa se retire disto.
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