Paramilitares pressionam por
reabertura de comércio para manter extorsão. Aparelhadas, funerárias cobram
preços abusivos às vítimas da covid-19. Em ano de eleição, aliados de Bolsonaro
querem mais de poder. Só tráfico defende quarentena
José Cláudio Alves, em entrevista
ao IHU Online | em Outras Palavras
Projetar como será a realidade
nas periferias e favelas cariocas pós-pandemia “é um exercício de imaginação”,
mas a tendência é que sejam reforçadas “as estruturas de poder da face ilegal
do Estado, tanto no tráfico quanto nas milícias”, afirma José Cláudio Alves à IHU
On-Line. Segundo ele, a atuação do tráfico para garantir as medidas de
isolamento nas periferias e se autoproteger e, de outro lado, das milícias, para
manter o funcionamento do comércio e benefícios a aliados para continuar
arrecadando dinheiro, vai projetar tanto milicianos quanto candidatos apoiados
pelo tráfico nas próximas eleições municipais no Rio de Janeiro. “Essa
estrutura tende a se projetar porque vai lançar mão dos recursos do
clientelismo para beneficiar aqueles que são seus aliados nesses espaços”,
menciona.
Na entrevista a seguir, concedida
por WhatsApp, o sociólogo relata como tem sido a atuação do tráfico, das
milícias e de setores que detêm o monopólio de serviços em municípios do
interior do Rio de Janeiro durante a pandemia. “Na cidade de Caxias existe uma
única funerária, que tem o monopólio dos enterros e, agora com as mortes pelo
coronavírus, essa funerária cobra valores altíssimos para a população: algo em
torno de 2.500 reais pelo enterro, com caixão simples. É uma coisa
estapafúrdia. Hoje, essa funerária faz um jogo de disputa de poder com a
prefeitura, dizendo que o preço do enterro popular que a prefeitura quer pagar
não corresponde à realidade. Então, a funerária não quer fazer esses enterros e
a prefeitura diz que não pode pagar pelos enterros porque os valores cobrados
são altos”, informa.
Nas áreas onde o “Estado já opera
matando”, ressalta, se observa uma sobreposição. “As áreas onde as pessoas
morriam por conta do confronto com o aparato policial, com a milícia ou com as
facções do tráfico, estão sendo recobertas também pelo maior número de mortos
em decorrência da pandemia. Então, existe uma continuação da necropolítica em
outra dimensão, que acaba sendo uma face da mesma moeda: a moeda da violência,
que reprime e recai sobre esses conjuntos segregados, racialmente
discriminados, que são mantidos à margem da pobreza, sem acesso a recursos, à
escolaridade”, observa.
José Cláudio Alves lembra ainda
que as eleições municipais deste ano “são decisivas para deputados e senadores
se perpetuarem em 2022, então, a Câmara de Deputados e o Senado não têm o menor
interesse em tocar os processos de impeachment abertos contra o presidente. O
interesse deles é outro: é distribuir renda desse governo para as suas bases
eleitorais se protegerem contra a pandemia e, consequentemente, para as pessoas
os verem como benfeitores e votarem nos seus aliados eleitorais nos locais onde
eles estão”.
Na entrevista a seguir, ele diz
que o futuro pós-pandemia será ainda mais difícil para aqueles que vivem nas
periferias. “Como será a realidade da saúde pública nessas áreas depois da
pandemia? Vai ser melhor? Tudo indica que não, porque os recursos estão sendo
destinados de uma forma inadequada e o SUS, se virou herói nacional, foi por
mera contingência, porque não tinha outro sistema que pudesse dar conta desse
sofrimento e dessa pandemia. O SUS apareceu num cenário de crescimento e
expansão, mas isso não foi nada planejado e o pós-pandemia não garante que o
SUS possa receber algum tipo de aporte para, nessas áreas de periferias e favelas,
melhorar a condição de atendimento”, lamenta.
José Cláudio Alves é graduado em Estudos Sociais
pela Fundação Educacional de Brusque. É mestre em Sociologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor, na mesma área, pela
Universidade de São Paulo – USP. É professor na Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro – UFRRJ.
Confira a entrevista
IHU On-Line – Como as milícias e
o tráfico estão atuando no Rio de Janeiro neste período de pandemia?
José Cláudio Alves – Houve
uma informação inicial de que tanto a milícia quanto o tráfico estariam atuando
na manutenção do distanciamento social para impedir o avanço da pandemia nas
periferias. No entanto, esse comportamento, se de fato ocorreu, foi substituído
por relatos de que o tráfico de drogas estava determinando o isolamento social,
inclusive, às vezes, de forma violenta, com discursos de que iriam punir as
pessoas que não cumprissem o isolamento. De outro lado, documentários curtos
mostram a atuação do tráfico neste período, com traficantes ajudando a
comunidade, distribuindo álcool em gel, máscaras, tentando, de alguma forma,
colaborar.
Os relatos relacionados à atuação
da milícia neste momento começam a se modificar. Na Baixada Fluminense há
relatos – alguns veiculados pela ONG local, chamada Iniciativa Direito e
Memória à Justiça Racial – de que tanto na Zona Oeste do Rio de Janeiro, quanto
na Baixada, os milicianos estariam obrigando o comércio a reabrir para obter
ganhos pela extorsão e cobrança de taxas de segurança. A avaliação mais crítica
que faço está relacionada à cidade de Duque de Caxias, região metropolitana do
Rio de Janeiro que, neste cenário de pandemia, apresenta o quadro mais grave: é
a região que, proporcionalmente, tem mais mortos do que a cidade do Rio de Janeiro,
no cálculo por 100 mil habitantes. Duque de Caxias tem um histórico muito longo
de relacionamento com grupos de extermínio que, por sua vez, estão na origem e
na construção das atuais milícias. Esse vínculo político da cidade com as
milícias é histórico, construído lá nos anos de 1980, 1990, nos antigos
matadores. O atual prefeito vem de uma linhagem que já tinha vínculo com essa
estrutura. Agora, neste segundo momento, ele se alia muito mais ao grupo que
atua na venda de terrenos da União. Essa é a relação que se estabelece com a
cidade e com esses milicianos que hoje são vereadores e personalidades públicas
na cidade. Portanto, o comportamento do prefeito Washington Reis está muito
vinculado a essa estrutura de poder. O Ministério Público Federal tem atuado,
tentando coibir os negócios de venda de terrenos nessas áreas, e a prefeitura,
pelo contrário, nunca atuou nisso. Ao contrário, faz de tudo para que esse
esquema continue funcionando. Por mais que se diga que o prefeito baixou um
decreto para fechar o comércio, na prática, isso nunca aconteceu porque o
comércio sempre continuou na cidade de Caxias, porque os interesses escusos
continuam.
Monopólio dos enterros
Na cidade de Caxias existe uma
única funerária, que tem o monopólio dos enterros e, agora com as mortes pelo
coronavírus, essa funerária cobra valores altíssimos para a população: algo em
torno de 2.500 reais pelo enterro, com caixão simples. É uma coisa
estapafúrdia. Hoje, essa funerária faz um jogo de disputa de poder com a
prefeitura, dizendo que o preço do enterro popular que a prefeitura quer pagar
não corresponde à realidade. Então, a funerária não quer fazer esses enterros e
a prefeitura diz que não pode pagar pelos enterros porque os valores cobrados
são altos. Na verdade, isso é um jogo de poder e interesse entre eles, porque
essa funerária sempre teve o monopólio e sempre manteve uma estrutura de poder
muito grande. Essa funerária poderia até ser chamada de uma milícia antes mesmo
da presença da milícia na região, por ter surgido anteriormente.
Os milicianos, a partir de sua
estrutura política junto à prefeitura, também controlam os acessos dos exames
médicos e as consultas nos hospitais públicos da cidade. Até o hospital estadual
acaba sendo influenciado por essa estrutura de poder. Além disso, toda a rede
evangélica pentecostal que apoiou a eleição do prefeito e que, junto com ele,
fez vários vídeos anunciando que as igrejas ficariam abertas, dá apoio e quer
manter o seu serviço aberto. Alguns chegaram a dizer que as orações – e o
próprio prefeito disse isso – das igrejas é o que iria curar o coronavírus. Mas
quando o prefeito foi contaminado, ele foi para o hospital particular mais caro
do Rio de Janeiro e lá ficou por 13 dias, até sair curado. Esse prefeito, que
tem tanta fé e quer que as Igrejas curem o coronavírus, ao invés de ir para o
Hospital Adão Pereira Nunes, de Saracuruna, foi para o melhor hospital da
Zona Sul do Rio de Janeiro. No hospital público de Saracuruna, as pessoas estão
morrendo em quantidade, porque não têm acesso a respiradores, à UTI, os leitos
estão todos comprometidos e há uma fila de espera.
Então, durante a pandemia, este é
o quadro que permanece na cidade: o comércio continua aberto, funcionando,
porque há um interesse dos milicianos em manter essa situação política imediata
entre o prefeito e o governo federal, que querem manter a economia funcionando.
Mas essa economia local, especificamente, interessa principalmente aos grupos
milicianos que dominam essa região. Se a população morre, para eles, isso têm
pouca importância.
Qual o significado disso?
Enquanto o traficante tenta proteger a comunidade porque está, ele próprio,
confinado, estigmatizado, segregado naquela área e depende do tráfico para
sobreviver – é ali que estão seus parentes, seus amigos e aqueles que com ele
trabalham – e tenta preservar essa população do coronavírus com medidas de
distanciamento social, a milícia não tem esse comprometimento. Ela usa dos
espaços urbanos, extrai os seus ganhos através do monopólio dos serviços, dos
negócios e dos bens que ela detém. A diferença é que os milicianos não moram
nessas regiões e, se ficarem doentes, vão para os melhores hospitais do Rio de
Janeiro, porque eles têm muito dinheiro. Esta é a diferença básica entre a
milícia e o tráfico: o tráfico está confinado, é de outra classe social, são os
lascados e pobres deste país arrebentado. A milícia é de uma classe social
diferente, tem articulação política e pode se beneficiar disso. Claro que os
milicianos vão se vender como heróis, salvadores, os que matam os bandidos, mas
eles são os próprios bandidos. Mas nesta pandemia, o herói pode ser aquele que
consegue um hospital melhor, aquele que consegue furar a fila do hospital
público, que consegue um respirador para a população mais pobre, alimentando
assim o clientelismo, já que este também é um ano eleitoral.
IHU On-Line – A pandemia pode reconfigurar
as relações do Estado com os poderes paralelos, como o tráfico e a milícia?
José Cláudio Alves – Não
trabalho com a ideia de que existe um poder paralelo. Tanto a milícia quanto o
tráfico têm relações diretas com o poder do Estado. O tráfico é regulado pelas
operações policiais, pelo suborno, pelo tráfico de armas e conta com a presença
da polícia. É ela quem recebe o “arrego”, que regula as facções dentro dos
territórios, que interfere no cenário de disputas, enfim, é ela quem exerce o
papel decisivo do Estado no tráfico de drogas. É a partir da atuação dos
agentes públicos de segurança que se dá a configuração do tráfico hoje no
Brasil. Na milícia, a ação é direta e feita sob a administração e gerenciamento
do próprio agente de segurança pública, que é o miliciano e é quem vai operar.
Então, nos dois casos, não há poder paralelo.
Com a pandemia, diminuiu o número
de confrontos entre o tráfico e a polícia, mas eles não deixaram de existir. As
milícias, como sempre, não enfrentam grandes dificuldades para atuar. O
tráfico, como é confinado em áreas de favelas e periferias, é segregado e
controlado pelas políticas de execuções sumárias, de confrontos e mortes
permanentes. Nesse sentido, o tráfico está mais reduzido e tentando se proteger
nessas áreas porque não tem para onde ir. Portanto, ao se proteger contra a
covid-19, o tráfico protege também a comunidade. Já o comportamento da milícia
é de retomada dos seus negócios, focando na abertura do comércio, do não
distanciamento social, na volta dos seus empreendimentos a todo vapor, na
taxação dos comerciantes, que precisam abrir seus negócios para serem taxados.
Enfim, a volta da economia, para a milícia, é melhor e ela não sofre nenhum
controle ou combate por parte do Estado porque os milicianos são os próprios
agentes de segurança. Esse cenário tem se mantido e tem sido reforçado.
Pandemia favorece as milícias
O coronavírus favorece a
estrutura das milícias, que saem beneficiadas e acumulam uma quantidade
razoável de dinheiro, que neste momento é importante por conta do processo
eleitoral. Os traficantes não são candidatos, embora possam apoiar pessoas
próximas a eles, enquanto os milicianos são candidatos e é por isso que
defendem a reabertura do comércio e o funcionamento da economia, porque precisam
lançar suas trajetórias políticas eleitorais, buscando a vitória e o
fortalecimento do seu poder. A milícia tem interesse nesse projeto, porque se
beneficia muito.
Neste momento, o coronavírus está
trazendo sofrimento e redução de dinheiro para a população mais pobre, que não
tem como trabalhar ou que perdeu o emprego e depende do auxílio emergencial.
Muitas pessoas não conseguem nem acessá-lo e, mesmo as que conseguem, vão ter
dificuldades para sobrevier. Essa situação favorece a lógica do clientelismo e
da milícia, que neste momento quer dar algum tipo de benefício para essas
comunidades e, com isso, angariar votos mais à frente. Então, o velho
clientelismo vai voltar muito forte neste momento de crise.
IHU On-Line – Que regiões
periféricas do Rio de Janeiro estão sendo mais atingidas neste momento?
José Cláudio Alves – A
pandemia está atingindo principalmente as áreas em que, normalmente, a face
ilegal do Estado mais atua matando. Costumamos dizer que é a face do que
Achille Mbembe chama de necropolítica, ou seja, a capacidade do Estado de
determinar quem vai viver e quem vai morrer, uma bionecropolítica. A covid-19
tem atingido mais duramente as áreas mais pobres que não têm acesso à proteção
social, à renda mínima para sobreviver, não têm acesso à rede de saúde adequada
nem à água, recursos de higiene, limpeza e alimentação e, portanto, não possuem
um estado imunológico fortalecido para enfrentar a pandemia. Essas são as áreas
em que o Estado normalmente já opera matando e há, agora, uma sobreposição: as
áreas onde as pessoas morriam por conta do confronto com o aparato policial,
com a milícia ou com as facções do tráfico, estão sendo recobertas também pelo
maior número de mortos em decorrência da pandemia.
Então, existe uma continuação da
necropolítica em outra dimensão, que acaba sendo uma face da mesma moeda: a
moeda da violência, que reprime e recai sobre esses conjuntos segregados,
racialmente discriminados, que são mantidos à margem da pobreza, sem acesso a
recursos, à escolaridade. Agora, essas populações estão vivendo outro drama: o
da falta de acesso à saúde, que foi degradada nessas áreas.
IHU On-Line – Qual a sua
avaliação das ações adotadas pelo Estado para enfrentar a pandemia nas favelas
e periferias cariocas?
José Cláudio Alves – As
ações em relação à pandemia feitas pelo Estado são absolutamente inapropriadas,
sem capacidade de ajudar a população, com discursos e práticas contraditórios.
No âmbito federal, por exemplo, há um discurso irresponsável, assassino,
negacionista. O discurso de Bolsonaro é o discurso de que não existe uma
pandemia, de que é uma gripezinha, e de que a morte de doentes e idosos é
natural. Esse é um discurso que vários empreendedores do mundo capitalista
gostam, porque significa dizer que morrem as pessoas e a economia segue
funcionando. O presidente faz esse discurso a partir de uma concepção de que
está protegendo a população pobre, que não pode deixar de trabalhar, porque tem
que movimentar o país e sustentar suas famílias. Ele simplesmente ignora e não
põe em prática nenhum plano de proteção dessa população – o auxílio emergencial
aprovado, foi a contragosto dele e as pessoas encontram dificuldades para
acessá-lo. Além disso, o sistema de distribuição do auxílio obriga as pessoas a
se aglomerarem em filas nos bancos, aumentando ainda mais o risco de
contaminação. O quadro é muito duro e o presidente trabalha com o deboche, o
sarcasmo e o cinismo. Dizer “e daí?” que morreram tantas mil pessoas,
simplesmente é um deboche e um escárnio na cara da população que vai morrer.
O mais duro de tudo isso é que
essa mesma população vê no presidente alguém que vai ajudá-la. Essa população,
sem acesso a informações que a proteja, acredita nessa liderança. O
presidente foi eleito como uma liderança e empurra todos os seus seguidores para
o abismo. Os que vão para o abismo, vão acreditando que estão sendo salvos, mas
estão sendo vitimados e morrendo. É um comportamento muito humilhante,
degradante, triste e sério por parte de um presidente da República que não vai
ser atingido e não vai ser responsabilizado.
IHU On-Line – Como a pandemia
pode influenciar o cenário eleitoral nos municípios e como a perspectiva das
eleições tem influenciado a atuação do Congresso em relação ao enfrentamento
desta crise?
José Cláudio Alves – Este
é um ano eleitoral, de eleições municipais, e toda a base do Congresso está
se movimentando para favorecer as suas bases eleitorais nos municípios. As
eleições de 2020 são decisivas para deputados e senadores se perpetuarem em
2022, então, a Câmara de Deputados e o Senado não têm o menor interesse em
tocar os processos de impeachment abertos contra o presidente. O interesse
deles é outro: é distribuir renda desse governo para as suas bases eleitorais
se protegerem contra a pandemia e, consequentemente, para as pessoas os verem
como benfeitores e votarem nos seus aliados eleitorais nos locais onde eles
estão. Os pedidos de impeachment não serão analisados porque este é um momento
chave do processo eleitoral e abrir um impeachment neste momento seria acabar
com o famoso clientelismo e a famosa barganha do “toma lá dá cá” dos currais
que vão depender de emendas parlamentares e de distribuição de recursos para o
SUS e para os hospitais públicos. Essa destinação de recursos vai acompanhar os
vínculos desses deputados e senadores com o governo federal, com as políticas
públicas que este governo ainda realiza, apesar de todas as contradições no
discurso bolsonarista. Pelo menos o Ministério da Saúde ainda tenta
fazer algo, especialmente os médicos e enfermeiros que estão na linha de
frente.
Bolsonaro não é mito algum. Ele
seria mito se contraísse o coronavírus e viesse para o Hospital Adão Pereira
Nunes e tentasse se tratar numa enfermaria com mais de 50 pessoas, sem
distanciamento de leitos e tentasse enfrentar uma fila para ter acesso a
aparelhos respiratórios, à UTI. Se ele fizesse isso e sobrevivesse, de repente
poderia ser mito. Mas como ele não vai fazer, aliás, nenhum dos políticos vai
fazer, a exemplo do prefeito de Duque de Caxias, Washington Reis. Esses homens
só têm interesse em propagar as suas estruturas de poder e, neste exato
momento, eles não farão nada contra o governo federal porque seria atingir o
seu próprio interesse, a sua forma de fazer política e a sua base
eleitoral.
Contradições
A contradição do governo federal
leva a contradição para todos os estados. Os governadores que tentam fazer
alguma coisa são tratados de forma desqualificada por Bolsonaro, que aprova
normas que rompem com o distanciamento social. Os governadores são obrigados a
entrar na Justiça para se protegerem de medidas provisórias do governo federal.
Os governos aliados fazem o jogo do presidente porque não tiveram situações tão
graves nos seus estados, mas os que estão sentindo duramente os efeitos da
pandemia, estão lutando para tentar sobreviver.
Nos governos municipais, a
situação é mais contraditória ainda. Na Baixada Fluminense, a pandemia está em
estado crescente e governos aliados ao governo federal estão adotando uma
posição negacionista e um discurso religioso de que as igrejas evangélicas irão
curar as pessoas através da fé. Esses discursos se propagam nas populações mais
pobres e nos municípios da periferia da região metropolitana do Rio de Janeiro,
e têm provocado mortes e sofrimentos.
A meu ver, as atividades do
Estado estão comprometidas pelo dissenso e confronto entre as várias
instâncias, pelas ações nefastas, degradantes e cínicas. O Ministério da Saúde
vive numa corda bamba e o ex-ministro [Luiz Henrique] Mandetta, que tentou
fazer alguma coisa, foi defenestrado. O ex-ministro [Nelson] Teich não disse a
que veio, não disse coisa com coisa e não assumiu atos. Não sei como chegamos a
esse estado neste país. Ainda não temos luz no fim do túnel para avaliar tudo
isso.
IHU On-Line – É possível projetar
um cenário pós-pandemia nas favelas e periferias cariocas?
José Cláudio Alves – Projetar
um cenário pós-pandemia nas áreas de favelas e periferias da Baixada Fluminense
é um exercício de imaginação. Ainda não temos um quadro muito preciso de como
será. Pelo que eu disse até agora, a tendência é reforçar as estruturas de
sofrimento das pessoas e as estruturas de poder da face ilegal do Estado, tanto
no tráfico quanto nas milícias, assim como a estrutura de poder político que se
elege a partir do crime organizado. Essa estrutura tende a se projetar porque
vai lançar mão dos recursos do clientelismo para beneficiar aqueles que são
seus aliados nesses espaços. É claro que existe resistência e nem tudo está
perdido. Ainda temos grupos de movimentos sociais e organizações comunitárias e
espaços de discussão crítica e solidariedade que estão funcionando nessas
áreas. Se eles não existissem, o quadro seria muito mais grave. Essas
instituições também estão lançando mão das suas capacidades de apoiar essa
população e conseguem fazer isso. Mas eu vejo que a estrutura maior do crime
organizado tem mais condições de apoiar e proteger essa população e tem
conseguido fazer isso em função dos recursos, do controle militarizado que eles
têm, da violência que exercem, em função do apoio político que recebem dos que
estão hoje no poder nos governos federal e estadual. Esses grupos têm como se
projetar bastante.
Pós-pandêmico será
pior
O pós-pandêmico para essas áreas
será muito duro. Como será a realidade da saúde pública nessas áreas depois da
pandemia? Vai ser melhor? Tudo indica que não, porque os recursos estão sendo
destinados de uma forma inadequada e o SUS, se virou herói nacional, foi por
mera contingência, porque não tinha outro sistema que pudesse dar conta desse
sofrimento e dessa pandemia. O SUS apareceu num cenário de crescimento e
expansão, mas isso não foi nada planejado e o pós-pandemia não garante que o
SUS possa receber algum tipo de aporte para, nessas áreas de periferias e
favelas, melhorar a condição de atendimento.
A área de educação também será
bastante atingida e a discussão sobre o ensino a distância sequer tem sido
significativa. Falam em como pôr em prática o ensino a distância em muitos
municípios, mas as crianças que estão trabalhando dessa forma sofrem um
estresse tremendo junto às suas famílias e não há um trabalho de qualidade
sendo feito nesse sentido: não há plataforma nem acesso à internet para
trabalho remoto. As pessoas não têm aparelhos e equipamentos que lhes possam
garantir qualidade nesse acesso, ou seja, tudo é muito precário. É o precariado
da educação que está sendo posto em prática para se dizer que se está fazendo
alguma coisa e, no meio de tudo isso, os estudantes ainda farão o Exame
Nacional do Ensino Médio – Enem. Quem vai ter condições de participar disso se
as aulas a distância são de baixa qualidade e os serviços tão precários? Vai se
beneficiar quem tiver mais recursos, mais acesso e quem tem condições. Os mais
pobres e os moradores de periferias, como sempre, vão ser prejudicados.
O pós-pandêmico será muito pior
do que o pré-pandêmico, porque vai reforçar e ampliar o fosso social e vai
destruir mais ainda as políticas públicas já existentes. O futuro exige uma
mudança absoluta na destinação de recursos pelas leis orçamentárias para
destinar projetos no campo da educação e da saúde nessas comunidades. Mas não é
isso que observamos no âmbito federal; se vê destinação de recursos para
aqueles que são os credores do Estado, com os quais o Estado tem dívidas:
empreiteiros, banqueiros e o agronegócio são os destinatários dos recursos
públicos. Eles são os que continuam ganhando e o governo federal quer mantê-los
ganhando porque são os que financiaram a campanha do próprio governo federal.
Nesse sentido, não vejo uma mudança significativa da destinação de recursos
públicos para políticas públicas que protejam a população mais vulnerável. Não
vejo que esse é o sinal que está sendo dado. A tentativa de retomada do Plano
de Aceleração do Crescimento – PAC da era petista é uma piada de mau gosto,
porque não tem expressão efetiva e vai ser inexpressivo em termos de aporte. O
programa vai depender de como a pandemia vai se desenvolver para ser
implementado. Isso não é suficiente e precisaria de algo mais significativo em
termos de políticaspúblicas. O cenário vai ser muito mais duro do que o que
estamos vivendo agora.
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