José Soeiro | Expresso | opinião
“Não consigo respirar”. O grito,
como é sabido, não é de nenhuma vítima da Covid-19, mas sim de George Floyd, o
cidadão negro, afro-americano, de 46 anos, que foi executado barbaramente por
um polícia em
Minneapolis.
“Não consigo respirar”. Foi
também este o grito, repetido desesperadamente mais de uma dezena de vezes, por
Eric Garner, cidadão negro que tinha 43 anos quando foi estrangulado ate à
morte, durante mais de 15 segundos, em julho de 2014, por um agente da polícia
de Nova Iorque, também ele um homem branco. O caso, seis anos antes numa outra
cidade, e que terminou sem qualquer condenação do homicida, tem todas as
afinidades possíveis com o de Minneapolis. E mostra como nada parece ter mudado
para todos aqueles que não podem sentir-se seguros se a polícia estiver por
perto.
Enquanto tantos se mobilizam, um
pouco por todo o mundo, para combater um vírus que nos impede de respirar, para
que haja ventiladores capazes de salvar vidas, há outras vidas e outros corpos
que são tratados como se não tivessem direito a viver. Como se o poder pudesse
dispor deles e eliminá-los.
A asfixia dos negros não vem,
como se sabe, de agora. Estes episódios estão longe de ser acontecimentos
isolados. Muito menos são tristes coincidências. São, de facto, a expressão da
política do racismo estrutural, que é brutal nos Estados Unidos, mas não só.
Estas histórias, que nos revoltam por dentro, existem porque foram conhecidas,
porque alguém filmou e nós as testemunhámos. Imaginem agora quando não há
ninguém a registar o que acontece, quando é no silêncio e na impunidade
absoluta que estes assassinatos acontecem. Quantos não existem, todos os dias?
Quanta violência racista é perpetrada sem que nunca ninguém seja condenado por
isso? Sabemos bem, em Portugal também. É preciso lembrar Alfragide, por
exemplo?
É por isso que me declaro
solidário com quem manifesta a sua indignação e a sua repulsa, que são também
minhas, contra esse racismo larvar que atira migrantes e negros e pobres para
as periferias das cidades e dos empregos mal pagos, para as vias desvalorizadas
do ensino e para os transportes cheios e expostos à doença, para as prisões e
para os bairros com poucas condições. Para a violência estrutural às mãos das
instituições.
Em Minneapolis, esta revolta é já
um potente grito coletivo e multirracial que ocupou as ruas, com gente de
várias comunidades e pertenças, com igrejas solidárias a abrirem as suas portas
para abrigar os manifestantes durante os ataques de gás lacrimogéneo da
polícia, com comerciantes a anunciar o seu repúdio pelo que aconteceu, com
gestos importantes como o de Joan Gabriel, presidente da Universidade de
Minnesota, que anunciou, numa carta pública, o corte de todos os contratos com
o Departamento de Polícia de Minneapolis e o cancelamento de qualquer pareceria
para a segurança de concertos, palestras ou outros eventos daquela instituição.
Está visto, é certo, que vai ser
preciso muito mais luta para que as coisas mudem. Hoje mesmo, Omar Jimenez, um
repórter negro da CNN que tem coberto as manifestações naquela cidade, foi
detido pela polícia em pleno direto televisivo. As imagens deixam qualquer um
perplexo – a mim, pelo menos, deixaram-me boquiaberto. Depois de tudo o que se
tem passado, Jimenez é levado pela polícia sem que se perceba porquê: “Por que
estou preso?”, pergunta em
direto. A polícia divulgou mais tarde a sua explicação: o
repórter e a equipa haviam sido detidos por não se terem afastado quando
receberam essa ordem. A câmara televisiva, caída no chão, continuou a
transmitir as imagens em direto.
Os olhos do mundo estão em
Minneapolis, porque Minneapolis é em muitos lugares do mundo. George Floyd é
hoje o símbolo das vítimas deste vírus insuportável que torna as nossas
sociedades irrespiráveis. O racismo mata, de muitas maneiras. E será só pela
nossa luta sem tréguas e sem hesitações que poderá ser erradicado.
Sem comentários:
Enviar um comentário