Omardine Omar da Carta de
Moçambique relata à DW a detenção "ilegal" e violenta a que foi
submetido quando estava a exercer funções investigativas. O jornalista,
libertado neste domingo, é acusado de desobediência civil.
O jornalista Omardine Omar, do
jornal digital Carta de Moçambique, foi libertado no domingo (28.06), após
ficar três dias detido, primeiro na sétima esquadra da PRM em Maputo e
posteriormente na cadeia central de Maputo. Durante esse período esteve isolado
de tudo, sem ser ouvido e sem direito a advogado.
A detenção ocorreu na avenida
Emília Dausse, região do Alto Maé, área central da capital moçambicana quando
estava a executar um trabalho jornalístico. À DW África, o jornalista diz ter
sido agredido e depois detido, sem justificação.
Esta terça-feira (30.06),
Omardine Omar vai a julgamento acusado de desobediência civil, supostamente por
ter violado o estado de emergência. O jornalista diz que é provável que
processe os policias envolvidos na detenção que chama de "ilegal” e exigir
a reparação de danos morais e materiais.
Esta situação não é caso único.
Moçambique apresenta um ambiente de considerável pressão para o exercício do
jornalismo. Ainda neste mês, os jornalistas Paulino Vilankulo e Yassin
Vilankulo, da estação online Vilankulo Televisão (VTV), foram detidos e tiveram
material confiscado quando reportavam um acidente de viação naquele distrito.
Jornalistas do Canal
de Moçambique também foram levados à barra da Justiça depois de
noticiarem acordo entre Estado e multinacionais para proteger trabalhadores dos
ataques em Cabo Delgado.
DW África: Quando se deu a
detenção? O que estava a fazer no local?
Omardine Omar (OO): No dia
25 de junho, quando eram 11 horas eu saí de minha casa para fazer um trabalho
na zona do mercado Estrela na cidade de Maputo, onde recentemente existiram
umas reformas feitas pelas autoridades retirando vendedores daqueles locais.
Aparentemente foram retiradas as bancas dos vendedores informais, mas isso é
apenas um discurso político porque na verdade saíram as bancas, mas ficaram as
pessoas. Há uma semana eu recebi uma denúncia, denunciando um documento que foi
submetido no comando de polícia do conselho municipal da autarquia da cidade de
Maputo de um conjunto de cidadãos expondo um conjunto de anormalidades às quais
estava expostos, como intimidações que partem da polícia, ameaças, corrupção,
extorsão… E eu como jornalista investigativo tinha de verificar os factos de
perto, tinha que aferir a realidade do que estava a acontecer, recolher as
melhores imagens e evidências concretas.
Então, naquele dia eu desloquei-me
até àquele local no intuito de estar ali numa casa vizinha e depois teria um
encontro com algumas fontes a nível local que vivem o dia-a-dia destas
atrocidades praticadas pela polícia. Quando eram 15 horas voltei para aquele
local para começar a fazer o trabalho investigativo. Chegado lá, éramos quatro
pessoas dentro da viatura, estava lá o meu ajudante de campo, um irmão meu e um
residente local. A casa para onde íamos era desse residente local. Quando
chegámos na porta de entrada que ia dar à garagem daquela casa, aparecem
agentes da unidade de intervenção rápida. Um pára em frente à viatura e outro
atrás. Entretanto, eu pedi explicações aos agentes porque é que estavam a parar
a viatura, uma vez que nós não estávamos na via pública, mas sim a entrar numa
residência privada. Aquele era precisamente um dos aspetos que contava naquela
carta [de denúncia], então eu pedi que o meu ajudante de campo pudesse ligar a
câmara. Eu me apresentei: "Eu sou jornalista e estou aqui para fazer um
trabalho e isso que está a fazer é violação". E procurei saber com que
base, qual era o artigo/decreto presidencial de estado de emergência que ditava
que polícias parassem viaturas durante o dia e coisas daquele género. Esta
pergunta criou um conjunto de problemas naquele dia.
DW África: Como se deu a
detenção? De que o acusaram?
OO: A polícia cercou a minha
viatura. Apareceram três polícias que me pegaram e me começaram a agredir. Ao
meu ajudante de campo também agrediram. O meu prim que me foi acompanhar
procurou saber [o que se passava] e também foi agredido. Fomos tratados que nem
marginais e criminosos, mesmo perante a minha insistência de que não sabia
porque me estavam a fazer aquilo. Fui conduzido à sétima esquadra onde passei
por um dos momentos mais tristes da minha vida. Fomos humilhados e jogados numa
cela fedorenta, uma cela escura, cheia de mosquitos, expostos a todos os tipos
de riscos. Procurei pedir à polícia para poder falar com o meu advogado e com a
minha família sobre o que estava a suceder e simplesmente disseram que eu não
tinha direito de fazer aquilo, que não valia a pena porque eles não iriam
permitir que eu fizesse qualquer ligação.Então, por coincidência eles pediram
que eu abrisse o telefone para poder apagar a imagem e eu simplesmente recusei.
Então forjou-se uma acusação de que eu estava a beber na via pública e a
fotografar a polícia, o que constitui uma grosseira mentira, constitui um
atentado contra a minha imagem e contra o trabalho que eu tenho feito.
Penso que este é um mecanismo que
está a ser usado para me intimidar e me afastar e inibir com que eu continue a
fazer o trabalho que eu tenho feito que é informar a sociedade sobre assuntos
como Cabo Delgado, questões de violação dos direitos humanos e muitas outras
nuances que apoquentam a "pérola do Índico". Este é um processo que
vem confirmar mais uma vez que em Moçambique não existe nenhum estado de
direito, que estamos dispostos a tudo. E que [nós] jornalistas com pensamento
crítico contra aquilo que é a organização vigente e contra aquilo que são as
entidades governamentais não somos vistos como moçambicanos de gema. Somos
vistos como postos de desgraça, como cidadãos antipatriotas. É uma situação que
é de lamentar. Eu amanhã (30.06) estarei presente a um juiz, terei um
julgamento sumário e vou preparado para tudo o que vier a acontecer, uma vez
que não entendo porque estou a ser submetido a toda essa situação. Mas o
jornalismo é uma paixão, o jornalismo é algo que me mantém firme. Trabalhar em
busca da verdade, informar, defender os reprimidos, as minorias. Esta guerra
que está sendo travada contra mim vem fortificar mais esta minha luta e esta
minha vontade de sempre fazer o bem.
DW África: O que vai acontecer
amanhã [30.06] em tribunal? Vai ser alvo de que acusações formais e por parte
de quem?
OO: Amanhã serei
julgado no processo 342/2020/d pela terceira secção do tribunal de Ka Mpfumo,
na cidade de Maputo, acusado de desobediência civil. De facto, será um
julgamento sumário com contornos de possíveis indemnizações ou o pagamento de
multas por supostamente ter violado o estado de emergência, o que não é
verdade. Eu estou a viver este momento de uma forma bastante sombria. Fui
detido ilegalmente em duas penitenciárias em menos de três dias. Estive numa
das maiores penitenciárias do país, a cadeia central, ilegalmente. Tentaram
tirar-me da cadeia a meio da noite mas por razões de segurança eu rejeitei. E
amanhã não sei o que me espera, se serei condenado ou absolvido. E espero que
isso não venha a aborrecer mais as elites políticas que estão por trás deste
processo sem nenhum sentido.
A acusação em princípio vai ser
movida pelo Ministério Público, em representação do Estado, uma vez que os
polícias que me detiveram são agentes do Estado. Mas com uma atuação não
estatal. Parece mais um "gang" unido para extorquir e maltratar e
tornar as pessoas [sentirem-se] medíocres. E um conjunto de coisas que eu podia
referir pelo comportamento que se verificou durante a minha detenção e pelo
comportamento que se verificou nas alegações que eles fazem contra mim. E pelas
provas forjadas que poderão ser usadas neste processo que para muitos parece
ser algo corriqueiro mas, na verdade, existem objetivos pouco claros, que para
mim são claros, que é intimidar-me e, talvez, reduzir o número de repórteres
comprometidos com a verdade e com a liberdade de expressão, com o exercício da
democracia. Eu, pessoalmente, sinto-me neste momento bastante preocupado e como
um cidadão que talvez esteja em listas de abate e de extermínio, porque é assim
que é feito em Moçambique.
DW África: Porque esteve em duas
prisões diferentes?
OO: Depois [de estar detido
na sétima esquadra] fui levado para tribunal distrital de Ka Mpfumo, permaneci
lá quase todo o dia sem ser ouvido. Só no final da tarde é que apareceu um
oficial de diligência e entregou um documento ao polícia que de um jeito
arrogante e não profissional foi-nos fazendo uma tortura psicológica. E foi
anunciado que iríamos ser transferidos já na sexta-feira ao final da tarde para
a cadeia central de Maputo. Alegadamente, a juíza ainda não tinha visto o
processo e, por coincidência, uma das coisas que violou todo este processo
– e que no nosso entender deveria ter desmoronado a partir daí – foi que a
nossa transferência para a cadeia central de Maputo foi com a aprovação de um
oficial de diligências e não por um juiz.
Isso levou com que o Ministério
Público interviesse no processo e no sábado (27.06), quando eram pouco mais de
19 horas eu fui chamado por alguns agentes de serviço na cadeia central de
Maputo que me perguntaram como é que eu fui parar ali, quem é que nos trouxe, o
que seria legal, etc. Eu respondia e foi-nos dito que estávamos soltos. Uma
coisa que deixou todo o mundo intrigado. Mas foi devido a uma pressão pública
em vários quadrantes, que eu agradeço bastante e espero continuar a ter este
apoio na plenitude porque isto parece ser o início de uma batalha que pode
terminar em tragédia caso não haja proteção particularmente de jornalistas que
fazem o trabalho investigativo na plenitude. Fui solto quando eram 10 horas [de
domingo, 28.06].
DW África: Mediante os abusos que
descreveu, pretende apresentar alguma queixa contra os polícias que o
prenderam?
OO: Tudo depende da decisão
que o colectivo de juízes irá tomar. Mas essa é uma possibilidade a considerar
nos próximos dias. Porque, de facto, isso demonstra que nós estamos num Estado
autoritário, num Estado que visa limitar os direitos ativos. Então, é provável
que eu venha a processar todos os policiais envolvidos na minha detenção ilegal
e exigir a reparação de danos morais e materiais no qual eu e os meus colegas
de viagem tivemos expostos nestes últimos dias.
Marta Cardoso | Deutsche Welle
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