Aos
olhos da natureza não será assim, mas aos olhos da humanidade este julgamento
antropocêntrico é de uma lógica inevitável: porque somos gente e porque
conquistámos o poder de dominar o mundo, as pessoas deveriam ser mais
importantes do que os animais.
Pedro
Tadeu | TSF | opinião
Na
sequência deste raciocínio seria coerente admitir que é mais criminoso haver
gente sem abrigo a viver na rua, abandonada pelos seus semelhantes, do que
haver cães de companhia abandonados numa estrada pelos donos.
Na
ordem desta civilização que criámos, deveria constituir maior prioridade acabar
com a fome extrema, capaz de matar 100 milhões de humanos, do que tentar
alimentar animais domésticos que tiveram azar de nascer no sítio errado.
Na
noção de justiça humana, o básico e óbvio direito à vida da nossa espécie
gozaria de um valor infinitamente superior a qualquer reivindicação semelhante
em favor de qualquer outra espécie.
É,
em tese, quase revoltante admitirmos ser mais fácil mobilizar militância,
solidariedade e ação de cidadãos comuns para ajudar os animais do que aquela
que parece existir para salvar os homens.
E,
no entanto, nenhum humano que a humanidade possa considerar decente é capaz de
deixar de sentir um impacto emocional extremo ao ver ontem as fotografias e as
imagens na televisão dos cães salvos das chamas de um incêndio na Serra da
Agrela, em Santo Tirso.
As
notícias relatam que um grupo de pessoas esteve horas a tentar convencer a GNR
a entrar numa propriedade ameaçada por um incêndio muito grande, onde centenas
de animais corriam o risco de ficarem carbonizados.
A
Guarda Nacional Republicana já tinha salvado alguns cães, mas a ameaça das
chamas punha a vida de pessoas em perigo e essa foi a razão apresentada para
ordenar a proibição de entrada aos populares que queriam salvar mais animais.
Parece
que o canil era ilegal, parece que foi processado (sem sucesso, não sei se sem
razão) por alegados maus tratos a animais, parece que o dono proibiu a entrada
das pessoas, parece que a câmara de Santo Tirso se enredou num emaranhado
burocrático, parece que há guerras antigas e contas por ajustar: as notícias
não conseguem desfazer dúvidas sobre uma possível manipulação política de toda
esta trama... mas nada disso me interessa.
Interessa-me
que este grupo de pessoas acabou por se estar nas tintas para a GNR e para a
suposta falta de segurança, entrou pelo canil adentro e salvou dezenas de
animais.
Interessa-me
perceber que mesmo assim morreram carbonizados, pelo menos, 52 cães.
Interessa-me
o olhar dos cães que vi serem salvos: ao colo do seu salvador, uma cadela vira
o focinho para a câmara de televisão e mostra, cravado, um olhar de medo; um
cão a soro é transportado em peso por dois rapazes aflitos e na fotografia que
lhe tiram mostra, indiferente e plácido, um olhar de moribundo; um outro,
pequenito, vem embrulhado numa manta e nos braços de uma mulher e, para a
posteridade, só tem a revelar-nos um olhar de incompreensão.
Os
olhares destes cães despertam-me a humanidade da compaixão e sim, se estivesse
lá em Santo Tirso
deitava às malvas as considerações racionais sobre a organização do mundo, da
política e do direito e ia com o grupo salvar mais um bicho - afinal, é
privilégio da superioridade humana decidir contra a lógica do Homem superior;
afinal, há momentos, apenas momentos, em que os animais podem valer mais do que
pessoas.
Alexandre
O"Neil escreveu um dia um poema chamado "Cão". É assim:
Cão
passageiro, cão estrito
Cão rasteiro cor de luva amarela,
Apara lápis, fraldiqueiro,
Cão liquefeito, cão estafado
Cão de gravata pendente,
Cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
Cão ululante, cão coruscante,
Cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão ali, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal de poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção,
cão pré fabricado,
cão espelho, cão cinzeiro, cão botija,
cão de olhos que afligem,
cão problema...
Cão rasteiro cor de luva amarela,
Apara lápis, fraldiqueiro,
Cão liquefeito, cão estafado
Cão de gravata pendente,
Cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
Cão ululante, cão coruscante,
Cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão ali, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal de poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção,
cão pré fabricado,
cão espelho, cão cinzeiro, cão botija,
cão de olhos que afligem,
cão problema...
Sai
depressa, ó cão, deste poema!
As
imagens do salvamento no canil "Cantinho das Quatro Patas" dizem-nos
mesmo isto: os olhos de um cão são um problema.
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