Uma ideologia que não se traduza na luta de classes está condenada ao apaziguamento da exploração capitalista, contribuindo objectivamente para a sua continuidade. É uma esquerda em confinamento.
Manuel Augusto Araújo | AbrilAbril | opinião
Os estrénuos e estrepitosos corifeus das políticas identitárias, das causas fracturantes em que a raça, o género, o sexo, a cor são as novas frentes de luta, consideram que a condição social, as classes sociais dissolveram-se até ser um resíduo que não conta no mundo globalizado pós-industrial. Essas são as bandeiras de luta da esquerda cosmopolita que abandonou as teorias marxistas, para as quais a exploração só é eliminada com a abolição da propriedade privada pela revolução. O seu objectivo, ainda que camuflado por enérgicas palavras de ordem que simulam uma radicalidade logo factualmente desmentida, é o mudar de vida sem mudar a vida. É considerar e aceitar que a luta de classes está ultrapassada no quadro actual do capitalismo – porque acabar com o modo de produção capitalista, para esses radicais de esquerda, está fora de questão. É a deriva reformista que abandona definitivamente o campo de batalha da luta de classes, em que se luta para acabar com o capitalismo, substituindo-a pela luta pelo controlo político das políticas económicas, aceitando que o capitalismo mau pode evoluir para um capitalismo bom, com a ilusão de que a burguesia acabará motivada pelas lutas identitárias e as causas fracturantes, assumindo uma cultura de responsabilidade social para que tudo acabe no melhor dos mundos das virtudes públicas e vícios privados da sociedade burguesa. São indiferentes às evidências de a democracia não ser possível no quadro global em que as desigualdades se agravaram, aumentando exponencialmente desde os anos 60 até ao ano de 2010, em que se contabiliza que 1% dos mais ricos do planeta controlam 46% de toda a riqueza mundial, o que exige da esquerda uma ampla unidade para uma luta continuada contra o neoliberalismo, unidade que é estilhaçada pelo segmentarismo identitário que faz o jogo da concentração do poder do dinheiro desertando do campo de batalha entre o capital e o trabalho, da luta de classes na sua forma actual, que tem por objectivo final acabar com a exploração capitalista que só se elimina com a abolição da propriedade privada pela revolução.
Essa esquerda radical chique reclama-se de uma imaginação política para, dizem eles, remobilizar a esquerda pelo crivo das lutas identitárias e das causas fracturantes, performances mediáticas com uma forte componente intelectual e de moda, em que a representação é um fim em si mesma que dispensa ideologias e propostas políticas, por considerar a luta de classes ultrapassada o que, mesmo que o não digam explicitamente, teria o óbvio efeito de desmobilizar os partidos e os sindicatos que são base política e social da esquerda no mundo do trabalho. No fim da linha, desarmar a esquerda marxista que considera contingente a realidade histórica do capitalismo. Têm a presunção elitista de que as lutas das mulheres, dos LGBT, dos grupos étnicos, mesmo quando fazem parte da classe trabalhadora, estão para lá da classe trabalhadora, pelo que poderiam assumir o seu lugar nos desafios aos poderes do capital, o que de facto significa negar que a exploração económica existe e persiste quaisquer que sejam os avanços que das lutas por mudanças de atitudes sociais. Um enorme equívoco dessa esquerda cosmopolita, em que se baralham as liberdades individuais de escolha com as liberdades que o mercado oferece. O que na aparência é uma estratégia revolucionária para derrubar opressões que de facto existem atasca-se num pântano de equívocos por nunca ter percebido, por miopia filistina, que as diferenças continuarão a florescer enquanto os seres humanos forem submetidos à exploração capitalista, pelo que, como escreve contundentemente Raymond Williams «as políticas identitárias são um particularismo militante que se torna uma farsa» (A Short Counter Revolution, Towards 2000, Revisited, Raymond Williams, Sage Publications, 2010).
Não percebe essa esquerda que, como a história abundantemente demonstra, as sociedades capitalistas neoliberais variam entre tanto serem limitadamente libertárias como não hesitarem em recorrer aos extremos mais repressivos, tanto se apresentam múltiplas como monolíticas, variando conforme as geometrias dos enquadramentos sociais, económicos e políticos resultantes dos avanços e recuos da luta de classes, para que a exploração da força de trabalho se mantenha intocada, pelo que o anti-capitalismo das lutas identitárias não é mais do que um código de barras que passa nas caixas controladas pela burguesia, que «resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades bem adquiridas e certificadas pôs a liberdade única, sem escrúpulos, do comércio. Numa palavra, no lugar da exploração encoberta com ilusões políticas e religiosas, pôs a exploração seca, directa, despudorada, aberta» (Manifesto do Partido Comunista, Marx/Engels, Obras Escolhidas (em três tomos), tomo I, edições Avante!, 2008).
As lutas identitárias e as causas fracturantes retomam o espalhar das ilusões políticas de um revisionismo actualizado nas modas em uso, considerando que os tempos revolucionários acabaram, que os grandes combates colectivos deixaram de fazer sentido, que as frentes de luta são as das tensões paradoxais das mutáveis relações entre as identidades pessoais e a acção política. É o que se verifica na actualidade nas manifestações contra o racismo nos EUA e no mundo, em que os movimentos gerados pelo Black Lives Matter abandonaram a visão revolucionária dos militantes do movimento de libertação negra dos Black Panthers, que viam racismo e capitalismo como as duas faces da mesma moeda, para em seu lugar instalarem os conceitos restritos da identidade, castradores de qualquer estratégia revolucionária. Asad Haider, que estudou extensamente a evolução das lutas contra o racismo nos Estados Unidos conclui que «o enquadramento da identidade reduz a política ao que se é como indivíduo e não à sua participação na luta colectiva contra uma estrutura social opressora (...) O resultado é que a política identitária paradoxalmente acaba reforçando as mesmas normas que se dispõe a criticar.» (Mistaken Identity: Race and Class in the Age of Trump, Asad Haider, Verso Books, 2018). O que desata o nó de outro aparente paradoxo na luta contra o racismo nos EUA e que ecoa pelo mundo. A violência com que os militantes do Black Panther Party foram combatidos pelo sistema foi substituída pelos apoios concedidos ao activismo na luta contra o racismo dos Black Lives Matter, extensível a outras grandes causas como o feminismo, as alterações climáticas, os direitos do género, etc., por «personalidades como Al Gore, George Soros, Mark Zuckemberg, Richard Branson, Jeff Bezos, Bill Gates, fundações emanando de poderosos grupos como Ford, Rockefeller, Bloomberg, Walmart, Heinz, Kellog, Lockheed Martin, empresas como a Shell, o fundo Black Rock, os bancos JP Morgan Chase ou Goldman Sachs distribuem os seus fartos lucros não apenas pelos accionistas mas também por indivíduos e organizações envolvidos em activismo por grandes causas». Em linha, a comunicação social estipendiada, as redes sociais amplificam as imagens dessas lutas, tratam com desvelado empenho e carinho todos esses activismos, qualquer que seja a forma porque se apresentam, catapultando a imagem dessa esquerda cosmopolita que reduz a política às performances identitárias das causas fracturantes, renunciando de vez ao universalismo marxista e à luta de classes para gáudio da plutocracia que percebe, até bem demais, as virtudes que extrai desse reformismo que abandona a revolução a favor do brilho das lantejoulas das constelações das causas.
A transfiguração que essa esquerda pretende fazer é rasurar a universalidade da luta de classes que ecoa em todas as lutas: transexuais, homossexuais, ciganos, negros, brancos, mulheres, pessoas com deficiência, imigrantes, fragmentando-a nas lutas identitárias e nas causas fracturantes onde ainda alguns colam o rótulo de anticapitalista, de um anticapitalismo fora de prazo e que não é mais que um rótulo para mascarar o seu reformismo.
Uma ideologia que não se traduza na luta de classes está condenada, na melhor das hipóteses, ao apaziguamento da exploração capitalista contribuindo objectivamente para a sua continuidade aceitando a sua hegemonia e perenidade. Garantidamente acabará sempre na paralisia política e social, ainda que contribua pontualmente para mudanças de atitudes sociais porque, como já se referiu, uma das características nucleares das sociedades capitalistas é adaptarem-se circunstancialmente a ser tanto libertárias como repressivas, tanto múltiplas como monolíticas, como a história, desde que a burguesia capitalista assumiu o poder político, tem demonstrado ao longo dos séculos.
Há que dizer claramente que essa esquerda cosmopolita que ainda se apresenta como radical vive em alegre contubérnio com as forças que aparenta combater. É uma esquerda em confinamento.
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