Fernanda Câncio* | Diário de Notícias | opinião
Multa de 500 euros para quem não instalar uma aplicação no telemóvel, entrada "livre" da polícia em domicílios sem mandado: as notícias fazem-nos crer que o governo enloucou. Espera-se que não, mas na dúvida o melhor é precavermo-nos e lembrar do que diz a Constituição - ainda não a revogaram, certo
Sucedem coisas muito curiosas
As coisas acabaram por se compor e o juiz condenou o arguido. Mas este episódio
é bem simbólico do que pode suceder quando as autoridades esquecem que o poder
que lhes é conferido pelo povo não lhes permite mais que o que a lei dispõe,
nos estritos limites estabelecidos pela Constituição e pela necessidade, e que
sim, lembrar os limites desse poder é um direito dos cidadãos e não
impertinência - muito menos crime. Em última análise, aliás, cada um de
nós está investido do poder de defender o reduto fundamental dos seus direitos
face a ordens ilegítimas - tal tem consagração legal sob o nome de
desobediência civil ou "direito de resistência". Diz isso mesmo o
artigo 21.º da Constituição: "Todos têm o direito de resistir a qualquer
ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela
força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade
pública."
O problema, claro, é quando não
há autoridade pública que nos valha porque é mesmo ela que está a violar os
nossos direitos - e quando o cidadão não os conhece o suficiente para saber que
estão a ser violados, quanto mais para resistir a quem os viola. Isso mesmo
sucede quando, como em tantas circunstâncias relatadas pelos media, polícias
mandam parar cidadãos na rua para os identificar e chegam até a revistá-los sem
mais justificação que "desconfiar" ou "afigurar-se-lhes
suspeito" ou mesmo, não raro, por mera discriminação, embirração ou
perseguição - quando a lei impõe que para tal tenham fundadas suspeitas de cometimento de crime e que tenham
de o afirmar, especificando qual crime - ou entram, a meio da noite,
em diversas casas de um bairro, geralmente dito "problemático", sem
possuírem mandado judicial para cada uma delas e sem que exista "fundada
suspeita" de que ali estão a ser cometidos crimes.
Isto apesar de a Constituição - de novo ela - estabelecer no artigo 34.º que o
domicílio está expressamente protegido - a expressão usada é
"inviolável" - e que "a entrada no domicílio dos cidadãos
contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente,
nos casos e segundo as formas previstos pela lei." Há exceções,
também previstas no mesmo artigo: "Salvo em situação de flagrante delito
ou mediante autorização judicial em casos de criminalidade especialmente
violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de
pessoas, armas e de estupefacientes, nos termos previstos na lei."
Outra exceção, que a Constituição não indica mas que decorre do mero bom senso
e da necessidade, é quando é preciso entrar num domicílio para salvar pessoas -
quando há incêndios, terramotos, inundações, queda de aeronaves, aquilo a que
damos o nome de catástrofe ou desastres naturais. É disso mesmo, dessas
situações, que trata a Lei de Bases da Proteção Civil, decreto de 2006 onde estão
elencados os estados que desde março passámos a conhecer tão bem, pelo menos de
nome: alarme, contingência e calamidade. A esse elenco corresponde uma série de
medidas mais ou menos excecionais, entre as quais se contam as previstas no
artigo 23.º - "Acesso aos recursos naturais e energéticos" - no qual
se lê: "A declaração da situação de calamidade é condição suficiente para
legitimar o livre acesso dos agentes de proteção civil à propriedade privada,
na área abrangida."
É com base neste artigo que vimos esta semana os media, incluindo este
jornal, asseverar que "polícia pode entrar-lhe em casa sem mandado".
Sucede que, como a epígrafe do artigo 23.º indica, o que está em causa é o "livre
acesso a propriedade privada" mas para aceder a "recursos naturais e
energéticos". Não se pode pois, como é evidente, interpretar o artigo como
permitindo entrar em domicílios sem mandado.
Surgiu porém outra teoria: a de que a polícia pode aceder a domicílios sem
mandado caso suspeite que nestes está a decorrer um ajuntamento de mais pessoas
que as autorizadas (estando para se perceber quantas sejam, já que se fala de
máximo de cinco pessoas em restaurantes ou na rua mas do décuplo disso em
festas de casamento e batizado, evidenciando-se uma total ausência de lógica e
critério e até existência de discriminação - porquê admitir festas de batizado
e não de aniversário ou despedida ou de outra coisa qualquer? Quem decide, e
com base em quê, que celebrações são essenciais e inadiáveis?) e portanto,
prossegue a teoria, poderá estar em curso o crime de propagação de doença
contagiosa.
Como se a "suspeita de estarem mais do que x pessoas num domicílio",
algo que a ocorrer não passa de um ilícito sujeito a contraordenação, pudesse
ser tratado como crime em curso, permitindo invadir domicílios e identificar
quem neles se encontre. Teremos todo e qualquer jantar domiciliário
sujeito a ser invadido por polícias que deitam portas abaixo com marretas para
perceberem se quem está reunido tem laços de sangue, partilha casa ou leito? E
como se provaria ou desprovaria tal coisa, já agora, ou como se compaginaria
tal com o direito à reserva da vida privada?
É doideira que chegue, mas a teoria tem uma reviravolta mais alucinada: até
pode não haver um crime a ocorrer, concede-se - por não haver ninguém infetado
com covid-19 e portanto não haver propagação de doença contagiosa (e note-se
que para chegar a tal conclusão seria preciso obrigar toda a gente a fazer o
teste, o que também é um interdito constitucional) -, mas, a partir do
momento em que a polícia queira aceder a um domicílio e quem lá está recuse,
passa a haver crime de desobediência. E temos assim a perfeita pescadinha de
rabo na boca da arbitrariedade - com os media a fazerem-se eco disto
sem sequer questionarem a constitucionalidade de tanto dislate.
Perante isto e a inqualificável ameaça da obrigatoriedade da instalação da StayAway Covid -
tanto mais inqualificável quando, como é óbvio e tantos já sublinharam, esta só
funciona em smartphones, e recentes; o seu desenho dependeu de ser estritamente
voluntária e anónima (como Paulo Ferreira dos Santos, que nele participou, explicou no
Twitter ontem) e não pode funcionar noutros moldes; não haveria nenhuma forma
de fiscalizar a obediência à ordem que não violasse a Constituição - só vejo
duas explicações possíveis.
Uma é de que o governo, assustado
com o número crescente de infetados e a possibilidade de ser preciso voltar a
"fechar" o país pela pressão nos serviços de saúde, esteja a
tentar meter medo às pessoas, confiando na palermice dos media e na
iliteracia jurídico-legal geral para difundir a ideia de que estas medidas
estão já
Vendo António Costa esta sexta-feira a afirmar descontraidamente que também ele "tem dúvidas" sobre a constitucionalidade (e
exequibilidade) da obrigatoriedade do porte da aplicação, e portanto
"espera pela discussão", inclino-me para a primeira possibilidade.
Mas pode ser só porque prefiro acreditar que está a ser maleficamente taticista
do que concluir que perdeu mesmo a cabeça.
*Jornalista
Sem comentários:
Enviar um comentário