Pedro Tadeu | TSF | opinião
Julian Assange chegou a ter estatuto de herói pop. O homem que criou o Wikileaks para receber de forma segura informações, de fontes anónimas, com interesse jornalístico, divulgou documentos e vídeos a provar crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos da América, no Iraque e no Afeganistão.
Toda a imprensa mundial, graças a Assange e ao seu site, divulgou em 2010 as imagens terríveis de massacres de civis inocentes, cometidos três anos antes.
Foi uma comoção no mundo e foi a desoladora prova concreta da hipocrisia das nações que se desculpam com a defesa dos direitos humanos para intervir noutros países.
No mesmo ano, o jornal espanhol El País, o alemão Der Spiegel, o francês Le Monde, o britânico The Guardian e o norte-americano The New York Times juntaram-se para trabalhar mais de 250 mil documentos fornecidos pelo Wikileaks. Dessa vez os dados provaram inúmeros casos de corrupção na diplomacia mundial e desmascararam intervenções abusivas de países poderosos na vida interna de outros países.
Em 2016 o Wikileaks divulgou e-mails da então secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, que revelavam que o objectivo da guerra da NATO contra a Líbia tinha, mais uma vez, pouco a ver com direitos humanos e democracia mas, em contrapartida, tinha muito a ver com a vontade de impedir que este país tentasse criar uma moeda pan-africana alternativa ao dólar e ao franco usado em 14 ex-colónias africanas da França. Mais uma vez toda a imprensa mundial utilizou, alegremente, essa informação.
Sim, o australiano Julian Assange foi entusiasticamente aplaudido pela generalidade da imprensa ocidental, foi inúmeras vezes apontado como campeão da liberdade de expressão, foi mostrado como exemplo de modernidade eficaz no combate pela transparência no mundo. Se formos ler os jornais da altura, até parecia que Assange, sozinho, ia revolucionar o governo mundial.
Nos dias de hoje quase ninguém fala de Julian Assange. Quando os Estados Unidos decidiram capturá-lo, a polícia sueca tentou prendê-lo por um suposto caso de violação sexual. Assange refugiou-se em 2012 na embaixada do Equador em Londres e ficou lá a viver até ao ano passado. Entretanto a acusação a Assange não foi provada, mas o fundador do Wikileaks teve azar: é que o governo no Equador mudou e o novo presidente do país, Lenin Moreno, amigo dos Estados Unidos, decidiu entregá-lo à polícia inglesa.
Apesar de uma missão da ONU ter declarado a detenção ilegal, uma vez que a acusação sueca de abuso sexual tinha caído, a verdade é que Assange está preso por uma suposta falta a uma convocatória de um tribunal inglês.
Neste momento uma juíza decide se ele vai ser extraditado para os Estados Unidos. onde terá de cumprir uma pena de prisão de 175 anos, anunciada ainda antes de qualquer julgamento nos tribunais norte-americanos ter começado.
No julgamento em Inglaterra, Assange tem de estar dentro de uma gaiola de vidro e não pode falar, não pode comunicar com os seus advogados e, ao contrário de todos presos da Grã-Bretanha, não foi submetido a medidas de proteção contra o coronavírus.
O relator especial das Nações Unidas, Nils Metzer, já disse mesmo que Assange está a ser submetido a tortura psicológica. Há, também, informações de que o ativista está debilitado, sofre de depressão e alimenta tendências suicidas. O antigo herói-pop pode acabar por morrer sozinho.
Os grandes jornais que tanto se serviram de Julian Assange, desde 2010, não querem agora saber dele. A opinião pública foi, entretanto, intoxicada com denúncias e até filmes sobre eventuais falhas de carácter do ativista ou sobre uma possível manipulação russa das informações do Wikileaks - como se isso, mesmo se fosse verdade, desculpasse ou apagasse os múltiplos e infinitamente maiores e mais graves crimes de Estado, de guerra e de corrupção que Assange ajudou a denunciar.
Tenho sempre muitas dúvidas sobre a utilidade para a democracia dos que se apresentam como justiceiros solitários, como Julian Assange, Edward Snowden ou, agora, o português Rui Pinto - desconfio sempre de quem quer ser D. Quixote: o mais certo é ser louco ou ser falso.
Acontece, porém, que o que estão a fazer a Julian Assange, mesmo se ele for louco ou falso, é uma desumanidade, é uma manipulação da justiça, é uma perversão da democracia, é uma vergonha para a comunicação social supostamente livre e democrática que aceita este silenciamento cúmplice.
É tudo demasiado para ficar calado.
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