Confirmada a derrota de Trump, justificar-se-ão os festejos pela saída de cena (ao que parece, muito renitente) desta grotesca figura. Mas é manifestamente exagerado o foguetório sobre uma “vitória da democracia”. O que figura nos EUA tem muito pouco de sistema democrático. E isso não tem apenas a ver – como aconteceu com Trump – com alguém ser eleito tendo menos votos que o adversário directo. Tem a ver com as centenas de milhares de eleitores “inconvenientes” que são apagados dos cadernos eleitorais, com a engenharia da distorção dos círculos eleitorais, com um sistema em que é preciso ser multimilionário para ser candidato. Quem prospera em tal quadro não é a democracia, é a extrema-direita.
Em que país democrático se pergunta ao titular do mais alto cargo público se aceita o resultado das eleições?
Em que democracia as eleições são precedidas de uma corrida aos bens essenciais por parte dos eleitores e os sectores do comércio e dos serviços entaipam portas e janelas como quem se prepara para a guerra?
Em que estado de direito as decisões dos tribunais são postas em causa pelo presidente em exercício?
Em que democracia representativa o sistema eleitoral se rege por regras tais que o presidente pode ser eleito sem ter a maioria dos votos populares a nível nacional?
Em que regime democrático é que o mais alto magistrado da Nação afirma que só não ganhará se houver fraude eleitoral e apela à violência – num país onde toda a gente tem armas – caso não seja reeleito?
As perguntas podiam continuar que a resposta seria sempre a mesma: nos EUA. Isso mesmo, esse país tão democrático, mas tão democrático que a maioria da população é classificada de ‘pequenos eleitores’ a quem cabe eleger um grupo restrito, esses sim, os ‘grandes eleitores’ que formam o colégio eleitoral que escolhe o presidente. Mas para a coisa ser ainda mais democrática, na maior parte dos estados funciona o sistema ‘the winner takes it all’ (o vencedor leva tudo), ou seja, o candidato com o maior número de votos leva os votos de todos os delegados desse estado.
É desta democracia que o mundo está suspenso, à espera que se conte os votos e fazendo votos para que a eventual derrota de Trump seja tão expressiva que retire às hordas da ‘supremacia branca’ qualquer veleidade de sair à rua. Porque a não ser assim, e na perspectiva de Trump contestar os resultados e recusar sair da Casa Branca, os democratas do lado de cá do Atlântico vão meter o rabo entre pernas, como sói dizer-se, fazer de conta que a democracia se dirime em tribunal e seguir em frente como se nada fosse, ou seja, sendo coniventes com quem faz da democracia uma paródia.
Enquanto isso, como também por cá já ocorre, os fascistas entram pela porta da frente das instituições à custa de desencantos e muita demagogia, e sentam-se à mesa de órgãos de soberania à boleia dos que pelo poder estão dispostos a alienar todos os valores que dizem defender. Dois dias depois de um «não» irrevogável de Ventura, eis que o Chega dá o aval – que PSD, CDS e PPM muito agradecem – à nova AD nos Açores.
É sabido que cada decisão que tomamos cria uma nova possibilidade; as que estão a surgir no horizonte são perturbadoras. Lembremo-nos do poema de John Donne: «A morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte da humanidade; por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti». É hora de perguntar o que estamos a enterrar.
*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2449, 5.11.2020
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