Joana Mortágua* | jornal i | opinião
Veja-se a facilidade com que vários deputados laranjas comparam o Bloco de Esquerda e o PCP ao Chega com o único propósito de se convencerem a si próprios da absolvição da sua capitulação, mesmo sabendo que estão de arrasto a absolver forças odiosas.
Sabem como se esvazia o conteúdo de uma palavra até se transformar noutra palavra por a repetirmos muitas vezes? Se alguém adormecesse nos anos 40 do século XX e acordasse em 2020 ficaria espantado com o que aconteceu à palavra fascista, ao arrepio na espinha que deveria provocar, aquele instinto de sobrevivência que nos protege de nos magoarmos a nós próprios.
É preciso ter cuidado com esse fenómeno a que os psicólogos chamam saciedade semântica porque não passa de uma sensação, leva ao engano. Tal como a tortura não deixa de doer mesmo que se repita muitas vezes tor-tu-ra, se alguém soa a fascismo, cheira a fascismo e sabe a fascismo, há mesmo uma grande probabilidade de ser fascista.
E ninguém tem dúvidas sobre o significado da palavra, há filmes, livros e há memória, mas parece que para ser real lhe está a faltar qualquer coisa. O que é que distingue então a existência de candidatos ou até, imagine-se, de deputados e de partidos fascistas – de uma ameaça perigosa para a democracia? Neste momento, e olhando para o resto do mundo, diria que Rui Rio.
A maior tragédia da democracia
não é permitir a candidatura de um fascista, é falhar
Disso são culpados, em primeiro lugar, os que na direita tradicional perderam agenda própria, saíram derrotados da crise de 2008 e, incapazes de ganhar eleições para governar, encostam-se à extrema-direita como quem se agarra a um bocado de madeira num naufrágio. No Brasil Bolsonaro contou com o apoio de líderes da direita tradicional, como João Dória (PSDB), e beneficiou da “neutralidade” do MDB e de democratas como Fernando Henrique Cardoso. Nos EUA Trump em menos de nada conquistou o Partido Republicano com apoios que foram da ala mais liberal à mais conservadora.
Quando analisamos as eleições naqueles países vemos como os partidos de direita foram rapidamente esgotando a sua lista de potenciais candidatos “mais-do-mesmo-sistema” e cedendo espaço a fenómenos populistas ultraconservadores. Haveria aqui qualquer coisa a dizer sobre “o sistema” e as suas variadas contribuições liberais para a ascensão da extrema-direita, mas esse é assunto que merece – e terá – vida própria.
Voltando ao Atlântico, o papel histórico a que se prestam partidos como o PSD está condenado ao oportunismo. Veja-se a facilidade com que vários deputados laranjas comparam o Bloco de Esquerda e o PCP ao Chega com o único propósito de se convencerem a si próprios da absolvição da sua capitulação, mesmo sabendo que estão de arrasto a absolver forças odiosas.
Onde é que ficaram as convicções
democráticas do presidente do PSD que deu o alerta “nenhum país está livre do
extremismo” lamentando o desfecho das eleições
Há mau tempo no canal. Nada a acrescentar ao que Rui Rio disse há exatamente dois anos: “Esse é um erro que cometemos muitas vezes na nossa vida. Esquecemo-nos que muitas vezes a emergência dessas forças [extremistas] é fruto dos nossos erros”.
*Deputada do Bloco de Esquerda
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