quarta-feira, 31 de março de 2021

O que se passa em Cabo Delgado?

João Melo* | Diário de Notícias | opinião

A pandemia que mantém o mundo quase paralisado há mais de um ano parece ter-nos feito esquecer de que, apesar de tudo, a vida continua, com os seus momentos de normalidade e, por momentos, as suas pequenas alegrias, mas - sobretudo isso - com as suas iniquidades e os seus horrores. Um desses horrores é o conflito em Cabo Delgado, Moçambique.

Confesso: também estou incluído entre aqueles que, sabendo da existência desse conflito num país que nos habituámos a considerar irmão, pouco ou nada sabem quer da sua natureza quer dos seus verdadeiros contornos. O que se julga saber é que o fundamentalismo islâmico estará por detrás do que se passa hoje em Cabo Delgado. É pouco.

Repugna-me observar, neste momento, os jornalistas ocidentais, incluindo portugueses, a acusarem as autoridades moçambicanas por sempre terem olhado com indiferença para os acontecimentos que há mais de três anos começaram a germinar naquela região. A verdade é que, para a imprensa mundial, compreendendo, portanto, não apenas a dos países ocidentais, mas também, por exemplo, a imprensa africana, Cabo Delgado sempre foi apenas uma nota de rodapé.

No caso da imprensa portuguesa, o que espoletou a cobertura unânime e o sinal de alerta a que temos assistido nos últimos dias foi o ataque dos terroristas à cidade de Palma, na semana passada, onde um cidadão português foi gravemente ferido. Isso diz tudo sobre as motivações da imprensa portuguesa em geral.

Tem de ser dito, por conseguinte: em relação à situação em Cabo Delgado, a indiferença do mundo (a começar pelos países vizinhos de Moçambique e pelos países membros da CPLP) é geral. E, no entanto, é verdade que o modo, digamos assim, naïf com que as autoridades moçambicanas continuam a lidar com este problema é, no mínimo, estranho. Lembro-me, a propósito de uma conversa que tive no final de 2019 com uma deputada angolana que me contou uma conversa que, numa reunião de parlamentares da SADC, tinha mantido com colegas de Moçambique sobre a instabilidade que já se fazia sentir em Cabo Delgado. A leitura dos deputados angolanos segundo a qual o fundamentalismo islâmico estava por detrás dos acontecimentos na região foi liminarmente refutada - disse-me ela - pelos seus colegas moçambicanos.

Isso trouxe-me à memória outra lembrança, anterior, acerca da profunda diferença como a guerra civil terminou em Angola e em Moçambique. Para muitos angolanos, sempre fez espécie terminar uma guerra "empatada". É verdade que todas as guerras terminam numa mesa de negociações, mas, quase sempre, com um vencido e um vencedor. O facto de esse não ter sido o caso de Moçambique talvez explique - apenas em parte, claro - a persistência de grupos armados naquele país, à margem da própria Renamo.

A terminar, não cabe a um observador ocasional, como eu, da situação moçambicana dar receitas para resolver o problema de Cabo Delgado ou quaisquer outros relacionados com a mesma. Segundo foi noticiado, a África do Sul pondera uma intervenção militar em Palma, se as autoridades do país o solicitarem. Perante as óbvias fragilidades das forças militares moçambicanas, uma intervenção internacional, de preferência com cobertura institucional (SADC ou ONU), parece muito mais recomendável do que o recurso a empresas de mercenários. Mas o problema está longe de ser apenas militar.

*Jornalista e escritor angolano,publicado em Portugal pela Caminho

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