Assinala-se hoje o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravatura. Em Portugal, onde durante muitos anos o comércio de escravos foi glorificado, vestígios arqueológicos estão a reconstruir esse capítulo.
"Em Portugal não existe memória do colonialismo, da escravatura e do tráfico transatlântico [de pessoas]. Faz parte da entidade nacional a era dos ‘descobrimentos', mas o impacto negativo dessa empreitada não é falado", diz Evalina Dias, presidente da Associação de Afrodescendentes Djass, com sede em Lisboa.
Nascida em Portugal, mas com raízes na Guiné-Bissau, exige agora que Portugal enfrente finalmente as suas responsabilidades históricas e reavalie minuciosamente a história.
Os portugueses sempre tentaram limpar esta mancha do passado. Em Portugal, diz-se sempre que a escravatura não foi uma invenção dos portugueses ou dos europeus e que sempre houve escravos, mesmo antes do século XV.
Mas a verdade é que durante a era das chamadas "descobertas" - a começar no século XV - o tráfico de escravos assumiu uma dimensão transatlântica. Ao abrir rotas marítimas para África, Ásia e América, os países da Europa Ocidental - liderados por Portugal - tornaram-se potências comerciais e coloniais internacionalmente ativas.
A partir desse momento, o comércio de especiarias, marfim, tecidos e escravos tornou-se global. Milhares de africanos foram forçados a trabalhar em plantações geridas por europeus na Europa, nas Américas e nas Caraíbas. Todos vítimas do tráfico transatlântico de escravos.
No entanto, é repetidamente salientado, inclusive nos livros escolares, que Portugal foi o primeiro país da Europa a abolir oficialmente a escravatura há 260 anos. Mas a proibição inicialmente só se aplicava a Portugal e às suas colónias na Índia. A escravatura continuou nas outras colónias. No Brasil, a escravatura ainda era praticada muito depois da sua independência de Portugal, em 1822, e só foi oficialmente banida em 1888.
Honrar a memória das vítimas
É por isso que a associação de afrodescendentes Djass quer honrar a memória dessas vítimas. "Em Lisboa, encontra-se uma série de monumentos – tudo relacionado com os ‘descobrimentos', com essa era ‘gloriosa'. Mas, o impacto que isso teve nas populações não é discutido. Por isso, achamos que é importante ter um memorial para lembrar às pessoas o papel de Portugal no tráfico transatlântico de pessoas escravizadas", lembra.
Uma iniciativa em conjunto com cidadãos portugueses com raízes africanas permitiu criar um memorial em Lisboa, que deverá ser inaugurado esta primavera. Trata-se de uma criação do artista angolano Kiluanji Kia Henda.
"O memorial tem como objetivo principal homenagear as pessoas escravizadas, que não têm nenhum tipo de reconhecimento da sua existência na história da cidade. Outro objetivo é iniciar um debate sobre o papel de Portugal no tráfico de pessoas escravizadas", explica Beatriz Gomes Dias, deputada e mãe de Evalina Dias.
Beatriz Gomes Dias é membro do
Parlamento português desde 2019, em representação do partido Bloco de Esquerda.
É uma das três mulheres parlamentares negras
"A sociedade portuguesa está a mudar muito lentamente", disse à DW Joacine Katar Moreira, outra deputada portuguesa com raízes guineenses. "Estamos a travar uma batalha difícil contra uma grande resistência dos círculos conservadores."
"Pelo menos uma tendência positiva é claramente visível: Os académicos e universidades portuguesas dedicam-se cada vez mais ao estudo do comércio transatlântico de escravos", diz Joacine Katar Moreira, que é também historiadora.
Sinais de desumanização no cemitério dos escravos
Em 2009, arqueólogos portugueses
descobriram provas valiosas sobre os primeiros escravos africanos
"Fomos a Lagos e fomos ver a zona onde foram encontras as ossadas. Conseguimos determinar que realmente eram pessoas africanas escravizadas, porque alguns esqueletos estavam com as mãos juntas e algemados", explica Evalina Dias.
Segundo a deputada Beatriz Gomes Dias, no século XVI, cerca de 10% da população de Lisboa era constituída por negros e muitos deles eram escravos. Alguns conseguiram libertar-se e tomaram posições importantes na sociedade.
Mas é preciso levar essa informação a cada vez mais pessoas, defende a parlamentar. "Importa recuperar essa memória da cidade. Temos de considerar a subjetividade [das vítimas da escravatura], as suas estratégias de resistência à escravidão e de conservar os seus traços culturais, que depois acabaram por influenciar muitas dimensões da cultura portuguesa."
António Cascais | Deutsche Welle
Imagem de topo: Maquete do monumento do artista angolano Kiluanji Kia Henda em Lisboa.
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