# Publicado em português do Brasil
Eduardo Vior* | Dossier Sul*
A geopolítica é um conjunto de métodos e técnicas para estudar a distribuição de poder no espaço; a geoestratégia, por sua vez, é o tipo de estratégia que se implementa para realizar essa distribuição. Como campos disciplinares das ciências sociais, ambos lidam com a relação das coletividades humanas com o território. Conseqüentemente, embora atuem dentro de determinações espaciais e, portanto, difíceis de modificar, eles podem operar no tempo e arbitrar tanto a análise quanto a intervenção estratégica em sintonia com as reconfigurações dos territórios ao longo de anos e décadas.
Ambos os campos de estudo e planejamento devem levar em conta as determinações estruturais dadas pelo território, a economia, hábitos e costumes, ideologias e o contexto regional e global, a conjuntura e a vontade dos atores. Este último, por sua vez, é o sistema energético que serve para a preservação e reprodução da vida organizada de acordo com os fins. Os valores e normas que organizam a vida em comum e os símbolos que permitem a identificação dos seres humanos com sua comunidade de filiação juntos constituem a moralidade de um povo, que se expressa quase sempre em sua imagem nacional.
Na medida em que a moralidade de um povo é um componente essencial de sua vontade de poder, sua desmoralização é um instrumento central de qualquer estratégia de subjugação. Um povo desmoralizado é um território vazio sem história. É por isso que a ativação da consciência nacional e popular é crucial para o exercício territorial da soberania e para a memória coletiva que forma sua identidade.
A geoestratégia do Cruzeiro do Sul
Em uma contribuição anterior, o autor deste artigo formulou a “A geoestratégia do Cruzeiro do Sul ” (https://asociacionfilosofialatinoamericana.files.wordpress.com/2020/09/revista-de-filosofia-latinoamericana-5.pdf). Com base na consideração das recentes mudanças no sistema mundial, o lugar da Argentina nas relações interamericanas e como pêndulo no conflito entre os blocos que lutam pela hegemonia, as ameaças atuais e potenciais, assim como a determinação de suas necessidades, interesses e objetivos, foi proposta uma estratégia de afirmação do poder nacional ao longo de quatro eixos, ao norte (mesopotâmico e andino) um a leste (o Atlântico Sul e a rota para a China através do Oceano Índico), um a oeste (Chile e Ásia-Pacífico) e um ao sul (Antártica e Ilhas do Atlântico Sul), seguindo assim o Cruzeiro do Sul. Estes eixos devem organizar a estratégia de afirmação do poder territorial dentro e fora da República.
O duplo giro geopolítico do Cone Sul durante a última década
A retórica do isolamento passa
pelas manchetes da imprensa reacionária: ‘Alberto Fernández aperta seus
contatos geopolíticos para marcar sua primeira vitória diplomática na América
Latina’, informou o Infobae em 26 de junho; ‘Alberto Fernández enfrenta uma
cúpula do Mercosul que poderia aprofundar o isolamento da Argentina na América
Latina’, repetia o mesmo jornal em 8 de julho. E o Clarín, no mesmo dia,
manchetou “Cúpula do Mercosul: à beira do precipício, demos um passo à frente”
com o seguinte subtítulo “O grupo regional avança para um novo formato e a
Argentina é deixada de fora”. E no mesmo dia apareceu no
Pelo contrário, a Argentina adquiriu vacinas na Rússia, China, Estados Unidos e Grã-Bretanha, tem as maiores exportações dos últimos quinze anos, participa do G20 e renegociou com sucesso sua dívida com o Clube de Paris. Tanto o Presidente Alberto Fernández quanto o Ministro da Economia são convidados e participam de todos os tipos de fóruns internacionais.
Desde o início do século XIX, o Cone Sul tem sido um espaço disputado entre hegemonias conflitantes. O Brasil português e posteriormente imperial alinhou-se cedo como uma semicolônia do Império Britânico. Após a Primeira Guerra Mundial ela se voltou para os EUA, e durante a Segunda Guerra Mundial ela se tornou “o porta-aviões fixa do Atlântico”. Este perfil de aliado privilegiado significa que qualquer consideração da geopolítica do Cone Sul deve levar em especial consideração o papel do Brasil.
Como José L. Fiori explicou em recente entrevista (https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Jose-Luis-Fiori-Bolsonaro-nao-tera-sucesso-caso-tente-sabotar-as-eleicoes-de-2022-/4/51109 ), entre o início dos anos 50 e os anos 80 os EUA fizeram do Brasil parte de sua estratégia subalterna de desenvolvimento, como na Europa Ocidental e no Japão, mas desde o fim da Guerra Fria a preponderância da valorização financeira reduziu o peso da indústria na participação do país na economia mundial capitalista. Esta mudança de paradigma também teve repercussões na mudança do papel das forças armadas e na tarefa regulatória do Estado. Com diferentes enfoques sociais, tanto o governo de F.H. Cardoso (1995-2003) quanto o de Lula (2003-2011) validaram este esquema. Enquanto a primeira parte do primeiro governo de Dilma Rousseff (2011-15) tentava manter este paradigma, a queda nos preços das commodities a partir de 2012 produziu um colapso nos termos de troca que afetou severamente a economia global do país. Este golpe financeiro foi agravado por uma agitação orquestrada contra o aumento das tarifas de transporte. Apesar da vitória do PT nas eleições de 2014, o Alto Comando das Forças Armadas aproveitou a deterioração da situação econômica e o descontentamento de amplos setores para organizar o impeachment de Dilma e, ao mesmo tempo, promover a Lava Jato, que defenestrou a liderança de todos os partidos políticos.
A substituição de Dilma por Michel
Temer em 2016 teve um efeito “terra arrasada” sobre o estado brasileiro que,
como aponta Fiori (texto citado acima), induziu o eleitorado a votar
A única diferença que pode ser registrada entre as políticas do governo Barack Obama (2009-17) e Donald Trump (2017-21) com relação ao Brasil é a identificação ideológica de Bolsonaro e alguns de seus ministros (Ernesto Araújo, Abraham Weintraub) com a ala mais dura do Trumpismo. No Brasil, ambos os presidentes promoveram o total cumprimento das políticas regionais dos EUA, o desmantelamento do Estado, a integração continental das redes de tráfico de drogas e a tomada militar da administração estatal, a ponto de incorporar 6 mil oficiais ativos e da reserva em diferentes níveis da administração. Neste contexto, a prisão de Lula em 2018 foi a condição necessária para a eleição de Bolsonaro e o subsequente desmantelamento do complexo judicial Lava Jato.
Devido a suas implicações na luta pelo poder no Paraguai, sua extensão financeira ao Uruguai e a cumplicidade da trama Macrista na Argentina, a Lava Jato pode ser vista como uma conspiração político-jurídica destinada a minar a divisão de poderes e a fortalecer os serviços de inteligência como governantes da integração contra-revolucionária do Cone Sul.
É neste contexto que ocorreu o golpe de Estado na Bolívia em novembro de 2019 e os sucessivos golpes parlamentares no Peru. Em contraste, os movimentos populares no Chile, Peru, Equador e Colômbia, bem como o triunfo da Frente de Todos na Argentina, não foram apenas reações dirigidas contra o neoliberalismo, mas também contra a conivência das elites com o tráfico de drogas dirigido a partir da Colômbia, a financeirização extremada, a generalização da violência e a despossessão aguda da maioria das sociedades.
A atual conjuntura geopolítica do Cone Sul
Como era de se esperar, os primeiros passos da administração Biden em direção à região foram tentar colocar ordem em uma situação que poderia ficar fora de controle. É nesse sentido que devem ser lidas as visitas de figuras do Comando Sul e do Departamento de Estado a vários países. A China é o alvo abertamente declarado, mas agora a influência da Rússia também foi acrescentada, impulsionada pela geopolítica das vacinas. Tendo chegado ao poder sem uma estratégia para o continente, o novo governo dos EUA está tentando conter os danos. Em junho passado, o diretor da CIA William Burns viajou para a Colômbia e o Brasil e em ambos os países deu seu apoio aos governos autoritários, embora tenha apelado para alguma contenção na repressão.
O voto de Washington será decisivo para a decisão do FMI sobre a dívida da Argentina, contudo, além de algumas doações de vacinas, não tem nada a oferecer a uma região que precisa muito de investimentos produtivos e mercados abertos. O Departamento de Estado vive, então, tapando buracos.
Neste contexto, a Argentina pode progredir se medir seu tempo adequadamente e for decidida ao mesmo tempo. A ascensão de Pedro Castillo à presidência peruana, apoiada por um forte movimento popular, mas extremamente limitada pela situação sanitária e financeira e por um golpe de estado à espreita, oferece ao nosso país a possibilidade de construir pontes, por exemplo, através de uma doação maciça de vacinas, para depois fazer negócios e encarar projetos de infraestrutura juntos.
A cooperação com a Bolívia na denúncia do golpe de Estado de 2019, contra os líderes do Macrismo e do intervencionismo norte-americano e brasileiro também deve servir para fortalecer iniciativas conjuntas não só em questões de segurança, mas também em outras áreas como a exploração do lítio, gás, transporte e infra-estrutura, migração e tráfico de drogas.
Embora o jogo esteja longe do fim no Chile, o envio de gás, o progresso em projetos de infraestrutura e transporte, a integração entre regiões e os acordos de saúde e fronteira podem construir pontes que, não importa qual governo seja eleito em novembro ou dezembro do próximo ano, darão frutos.
Enquanto isso, considerando a penetração do tráfico de drogas na elite e na sociedade do Paraguai, a relação com nosso vizinho noroeste é particularmente problemática. Por outro lado, a cheia do Rio Paraná destacou especialmente a necessidade de cooperação com os países do Alto e Médio Paraná-Paraguai. Acima de tudo, é necessário acompanhar de muito perto a evolução das negociações Brasil-Paraguai sobre a renovação do tratado de Itaipu, que expira em 2023 e deve ser renegociado até o próximo ano.
A Argentina deveria tentar reduzir a extrema dependência do Paraguai em relação ao Brasil, para o qual pode utilizar um sistema de recompensas e punições. A administração estatal do Rio Paraná pode reduzir a preponderância de navios e barcaças no rio e o contrabando de grãos argentinos no mesmo, mas em contrapartida, a compensação econômica e comercial, a cooperação em transporte, comunicações e infra-estrutura devem ser concebidas para influenciar positivamente a opinião pública, os políticos e empresários e compensá-los pelas perdas no tráfico ilegal.
Com o Brasil, por enquanto, nada mais há a fazer além de continuar a linha implementada pelo Embaixador Daniel Scioli: cooperação a nível sub-estatal, com federações e câmaras empresariais, e tentar influenciar o mundo acadêmico e os meios de comunicação de massa. Enquanto Bolsonaro permanecer no governo, o Brasil permanecerá desarticulado e irrecorrível para iniciativas conjuntas.
O Uruguai sempre trouxe problemas, mesmo devido à sua proximidade geográfica e cultural. Inserida como uma cunha entre as duas potências regionais, a vocação predominante de sua elite tem sido a de manter seus laços com a Grã-Bretanha, o que hoje se reflete em servir de base de apoio para o abastecimento das Malvinas. Neste sentido, a ameaça de Lacalle Pou de negociar acordos comerciais fora do Mercosul deve ser entendida como chantagem para obter concessões em outras áreas. Também neste caso, seria conveniente pensar em um sistema de recompensas e punições que atraísse progressivamente o “paisito” para nossas posições.
Um capítulo importante é representado pelo controle do Atlântico Sul. A crescente interferência dos Estados Unidos nessas águas parece visar não apenas o controle das rotas de navegação e do comércio mundial, mas também a criação de condições propícias à afirmação de seus direitos sobre a Antártida. Enquanto isso, das Malvinas, os britânicos controlam importantes recursos naturais de grande valor econômico, como hidrocarbonetos e pesca, exercem controle geopolítico sobre as rotas de navegação para a África e o corredor bioceânico de Magalhães, e se projetam em direção à Antártida.
De fato, o último e mais moderno navio científico britânico de exploração polar, o RRS “Sir David Attenborough”, foi batizado há um ano em Liverpool sob bandeira jurisdicional das Ilhas Malvinas e, de acordo com o portal “Zona Militar” de 23 de julho (https://www.zona-militar.com/2021/07/23/fuerzas-britanicas-desarrollan-el-ejercicio-cape-bayonet-en-las-islas-malvinas-imagenes/), o Comando Estratégico Britânico do Atlântico Sul acaba de realizar manobras terrestres e marítimas nas ilhas em um claro gesto de ameaça ao nosso país.
A Argentina está em uma encruzilhada da sua orientação geoestratégica. Obviamente, as negociações em andamento com o FMI exigem que evitemos conflitos com os EUA, mas, ao mesmo tempo, não podemos deter a cooperação com a Rússia e a China, particularmente no desenvolvimento de infra-estrutura. As relações com o Uruguai e o Paraguai são particularmente difíceis, e com o Brasil elas estão paralisadas a nível estatal. No entanto, no lado do Pacífico, foram abertas portas que, se bem utilizadas, podem ser aproveitadas nos vínculos com o leste. Da mesma forma, é importante tentar capitalizar os laços com a Rússia e a China, por um lado, e com os EUA e a UE, por outro.
Em uma época de crise global e regional, mas em uma situação de extrema debilidade, a Argentina não pode romper com ninguém, mas pode aproveitar ao máximo as vantagens oferecidas pelas sucessivas crises em seu entorno. É uma questão de ganhar tempo e espaço de manobra sem colidir com ninguém, colocando a ênfase no eixo Norte-Sul. Não estamos isolados nem carentes de estratégia. Estamos no centro de um enorme e crescente Cruzeiro do Sul.
* Eduardo Vior é cientista político argentino
* Originalmente em elpaisdigital.com.ar
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