Afonso Camões* | Diário de Notícias | opinião
Para quem já dividia o mundo entre saudáveis e enfermos, o vírus que nos assaltou a normalidade veio criar um novo reino, o dos vacinados. E a vacina transformou-se no salvo-conduto obrigatório para embarcarmos nessa nova Arca de Noé que nos devolve o privilégio da viagem e as receitas do turismo.
Em vigor desde 1 de julho, o Certificado Digital da União Europeia está a alcançar um enorme e inesperado êxito em termos de disseminação - mais de 300 milhões emitidos até agora - e na revitalização da mobilidade. O documento permite verificar rapidamente se um viajante foi vacinado, se tem teste negativo ou superou a doença. As companhias de aviação reconhecem que, apesar das dúvidas iniciais, o chamado "passaporte de vacinação" tornou-se um instrumento essencial para a reanimação do setor neste segundo verão de defeso. Em julho, o tráfego aéreo já aumentou 20% e, sempre que a pandemia o permita, espera-se que esse crescimento continue.
Este é o terceiro mérito da Comissão Europeia presidida por Ursula von der Leyen, após o lançamento de um fundo de recuperação sem precedentes (800 mil milhões de euros) e da coordenação de uma estratégia comum de vacinação que, depois dos primeiros soluços, atingiu uma velocidade de cruzeiro considerável, colocando vários países europeus, incluindo Portugal, no topo do ranking mundial de vacinas per capita.
No caso do certificado digital, e apesar das resistências iniciais, sobretudo em França e na Alemanha, onde vários movimentos recearam que a criação desse documento significasse uma forma dissimulada de tornar obrigatória a vacinação, a verdade é que a emissão destes "passaportes" avançou rapidamente, tornando-os imprescindíveis para quem viaja, e a sua exibição cada vez mais necessária para muitas outras atividades. Sem prejuízo das liberdades e direitos individuais, e desde que as normas europeias e nacionais sejam respeitadas, a utilização do certificado é um instrumento legítimo para recuperar a mobilidade e melhorar a segurança em qualquer local onde seja inevitável a presença de pessoas que não convivem regularmente, como restaurantes, hotéis, concertos, conferências ou museus.
As sociedades têm o direito de se defender contra todas ameaças, e os governos têm a obrigação de mobilizar todos os instrumentos jurídicos para garantir a proteção dos seus cidadãos. Convém, todavia, estarmos prevenidos de que em grandes crises, como é o caso desta pandemia, há sempre a tentação de sacrificar alguns princípios a pretexto de uma qualquer solução pragmática de curto prazo. Nesta conjuntura, deve prevalecer a convicção de que o respeito pelos valores fundamentais da União Europeia não é um obstáculo, mas sim o caminho para a solução mais legítima e sustentável. A presença na União de governos como o húngaro de Orbán ou o do polaco Kaczynski, propensos a perseguir grupos populacionais pela sua orientação sexual, mostra que é melhor manter a fasquia muito alta perante qualquer tipo de discriminação, por mais bem-intencionada que pareça. O risco de uma deriva autoritária de alguns não deve ser um obstáculo para que os Estados europeus explorem todo o potencial de um certificado que, bem utilizado, pode ser o passaporte para a tão esperada normalidade. Ou, pelo menos, o caminho para um padrão de relações sociais e económicas ancoradas na maior segurança possível perante um vírus com o qual ainda teremos de conviver por tempo indeterminado. Por enquanto, é esse o passe que nos franqueia as portas à livre circulação.
*Jornalista
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