domingo, 1 de agosto de 2021

O "quase apagão" da rede eléctrica portuguesa

O "quase apagão" da rede eléctrica portuguesa: causas e consequências

Demétrio Alves [*]

Sobre o acidente verificado na rede eléctrica internacional no passado dia 24 de julho, que levou à necessidade de interrupção no abastecimento a um significativo número de consumidores domésticos e industriais em Portugal, não será necessário voltar à descrição dos vários aspetos directamente relacionados com a fita do tempo da ocorrência.

Mais relevante será sublinhar que este "quase apagão" vem demonstrar, com meridiana clareza, aquilo que se tem vindo a colocar em diversas notas e intervenções: existência de crescente instabilidade nas redes de transporte e de distribuição, resultante da complexificação induzida pela mudança forçada para um paradigma de aprovisionamento elétrico baseado em miríades de centros de produção suportados em fontes renováveis e dispersos no território nacional. Alguns milhares desses centros de (pequena) produção são, simultaneamente, pontos de consumo.

De facto, a transição energética, em particular a que impacta o sector elétrico, estreitamente correlacionada com uma política energética drasticamente virada para a descarbonização rápida da indústria, da produção de electricidade e dos diversos consumos, comporta no seu cerne, não tanto objectivos de recuperação económica, de racionalidade técnica, de preocupação ambiental abrangente ou de eficiência energética global, mas, de uma voluntariosa e idealista mutação para um portefólio produtivo quase exclusivamente centrado na produção renovável (tipos e dimensões muito variáveis), através do qual se conseguiria diminuir as concentrações de CO2 na atmosfera terrestre, o que, supostamente, permitiria estancar as alterações climáticas que, argumenta-se, seriam devidas em exclusivo às emissões de CO2 antropogénico.

Não sendo o local e o momento oportuno, importa referir que os desejos de controlo climático subjacentes a estas hipóteses são, no mínimo, merecedoras de uma análise crítica e isenta.

O sistema de produção e as respetivas redes elétricas (transporte e distribuição), que se baseava, até há alguns anos, em fluxos de eletricidade que iam das grandes e médias centrais hidroeléctricas e termoeléctricas (5 ou 6 dezenas) para as várias centenas de milhares de pontos consumidores dispersos no território continental português, passou rapidamente para um desenho quase completamente invertido (e híbrido): para além de ainda se manter alguma produção centralizada em aproveitamentos hidroeléctricos e em centrais de ciclo combinado, proliferaram dezenas de milhares de núcleos de produção dispersos que injectam electricidade em certos pontos das redes as produções locais baseadas em fontes renováveis. Numa grande quantidade destes pontos – os de autoconsumo – verificam-se situações híbridas, isto é, nesses pontos para além de se injectar electricidade em certos momentos do dia, existem consumos noutros momentos, isto é, recebe-se electricidade da rede. Tudo isto com grande variância, volatilidade e imprevisibilidade.

A designada produção verde, está, e continuará a estar durante alguns anos, alicerçada, em grande parte, na subsidiação suportada pelos consumidores. Simultaneamente, o esquema tem permitido elevadas remunerações de capital aos accionistas de grandes empresas eléctricas

Os encerramentos extemporâneos de centrais termoeléctricas – Sines e Pego (a breve prazo), e as centrais de ciclo combinado que utilizam gás natural, daqui a poucos anos – têm sido conjugados com o exponencial aumento do número de unidades baseadas em renováveis intermitentes. Ora, esta alteração, implicou que a inércia da rede eléctrica se tornou cada vez menor, ou seja, verifica-se nela cada vez menor capacidade para reagir com flexibilidade e rapidez a súbitas falhas no abastecimento e a outras perturbações.

O incidente do passado dia 24, verificado ao nível da rede de transporte internacional MAT, foi, em Portugal, corrigido com o corte rápido e automático (até, no máximo, 10 segundos) do fornecimento de electricidade a determinados tipo de consumos pré-selecionados: bombagem, grandes consumidores industriais e diminuição de consumos gerais a nível da ERedes (rede de distribuição). É o chamado deslastre automático que está previsto exactamente para estas situações, e que é accionado quando a frequência eléctrica baixa 1 a 2 Hz devido à falta de potência na rede.

No entanto, e é aqui que entra a questão do tipo de produção, a necessidade de deslastre – desligar consumos – será tanto menor quanto maior for a capacidade do parque produtivo em responder, aumentando, também em poucos segundos, a produção de electricidade para compensar aquela que faltou subitamente. Neste caso a energia que estava a ser importada em quantidade muito significativa, através da rede espanhola, de França (electricidade também nuclear). Ora, esta compensação só é possível através do contributo das grandes unidades de produção convencional, sejam elas unidades baseadas em combustíveis (gás natural e carvão), seja de hidroeléctricas de albufeira, que possam entrar rapidamente na rede com potências significativas.

As pequenas e médias unidades baseadas no vento e no sol não têm possibilidade de responder a este tipo de necessidade, até porque estão sempre no máximo das suas capacidades (têm essa garantia contratual, ou, como têm preços marginais zero, entram sempre na rede). No caso dos milhares de micro-unidades existentes em moradias, condomínios e unidades económicas, a situação é similar, para pior. Nesses casos não é de esperar qualquer ganho no domínio da inércia, ou seja, com esse tipo de unidades não se conseguirá aumentar instantaneamente a potência, até porque, como sabemos, os fluxos de radiação solar e de vento não são controláveis pelo Homem.

Com a saída da central de Sines ainda sem estarem garantidas todas as condições que, aliás, o Operador da Rede de Transporte (REN) tinha alertado serem necessárias, a rede ficou desequilibrada e exposta a casos como o que agora se verificou. Essas condições passavam por estarem concluídas, pelo menos, a linha de 400 kV que atravessa o Alentejo (de Ferreira até Tunes) e o aproveitamento hidroeléctrico da Iberdrola do Tâmega. Estes empreendimentos só estarão prontos em 2023.

No actual contexto a central de ciclo combinado a gás natural situada no Carregado (Central Termoeléctrica do Ribatejo) passou a ter um papel fundamental para garantir a estabilidade da rede a norte de Lisboa, bem como para garantir alguma compensação daquela que se desenvolve para sul. Mas, nesta central apenas estão disponíveis 1169 MW.

Se Sines ainda estivesse interligada teria, muito provavelmente, um ou dois grupos a funcionar nos níveis mínimos, o que possibilitaria, em poucos segundos, escalar a potência de modo a compensar aquela que deixou de estar disponível a partir da importação. A necessidade de deslastre seria muito menor.

Não obstante o brutal aumento do custo da energia produzida nas centrais de Sines e do Pego devido à inflação artificial do "preço" do carbono, estas unidades continuam (ou continuariam) a ter um papel relevante.

O já referido deslastre da rede passa por cortes automáticos em diversos tipos de consumos.

Desde logo há os desligamentos em alguns dos aproveitamentos hidroeléctricos com grupos geradores (turbina/alternador) reversíveis que não estejam em modo de produção e sim em modo de "bombagem" levando a água de regresso à albufeira. Esses consumos são os primeiros a serem desligados – no dia 24 foram interrompidos automaticamente 300 MW (ocorreu uma situação anómala em Alqueva, onde o grupo que estava a bombar água se manteve indevidamente nesse regime, e que deverá ser averiguada por entidades competentes).

Depois, há um conjunto de clientes grandes consumidores de electricidade (geralmente empresas industriais) que têm contratualizado o chamado regime de interruptibilidade. Ou seja, sempre que acontecem situações anormais na rede do tipo da presente ocorrência são automaticamente desligados. Por essa razão beneficiam de preços especiais de electricidade, situação que leva a que, anualmente, possam encaixar alguns milhões de euros (mais de 100 milhões), mesmo que não haja qualquer problema. Neste regime, que irá terminar em outubro próximo, terão sido desligados consumos de apenas 100 MW (há dúvidas sobre este valor porque a associação destes consumidores referiu-se publicamente a cerca de 400 MW). Está actualmente contratualizada a interruptibilidade com nove [1] empresas num montante de 693 MW de potência desligável automaticamente. Estes contratos valem muitas dezenas de milhões de euros por ano para estas nove empresas, facto que faz acrescer a fatura endossada à generalidade dos outros consumidores.

Como os cortes já referidos não foram suficientes [2] , e porque, como já foi visto, a produção de compensação já não existe em quantidade suficiente, houve necessidade de aprofundar o deslastre, o que levou ao corte de mais 550 MW na rede de distribuição, coisa que acabou por afectar muitos milhares de consumidores. No total, com estes mecanismos automáticos desligaram-se mais de 1 000 MW dos cerca de 5 500 MW que Portugal consumia na altura. Isto é, em Portugal cortaram-se 20% dos consumos enquanto em Espanha apenas foram deslastrados 7,5% (estavam nos 20 000 MW). É fundamental pedir explicações ao governo, à ERSE, à REN e à EDP sobre o sucedido e suas razões.

O Prof. João Peças Lopes, um grande entusiasta das renováveis e da transição, disse que, no dia 24, "estivemos muito próximo de uma situação de blackout" [3] , acrescentando que a grande questão será a de saber se o sistema ibérico, numa tarde de verão, daqui a dez / quinze anos, "será capaz de sobreviver a uma perturbação deste tipo"?

O especialista referido, embora defendendo que o incidente " requer uma autópsia cuidadosa, pois é difícil de entender, como com todos os procedimentos de segurança que são normalmente adotados na exploração das redes de transmissão, uma situação destas pôde ter lugar. Algo correu muito mal ", acrescenta que se deverá " estudar cuidadosamente este tipo de problemas nos próximos anos, mas atrevo-me a responder dizendo que certamente que sim, o sistema sobreviverá ", adiantado desde já a necessidade de mobilizar "mecanismos de disponibilização de inércia síncrona, de emulação de inércia sintética e regulação rápida de frequência, com volumes a definir, associados a novos produtos a colocar em mercado..."

Para tentar "aguentar" o sistema que o regime político-económico dominante e sua entourage tecnocrática dizem pretender instalar (em 2050, teoricamente, já não haverá um único electrão produzido que não seja "verde" [4] ), existem ideias e propostas com "soluções" técnicas (grande extensão/densificação das redes, sistemas inteligentes, baterias de acumuladores, compensadores síncronos, etc). Conhecem-se, contudo, os elevadíssimos custos acrescidos que isto significará, e que, como também se sabe, serão totalmente imputados nas Tarifas de Acesso às Redes e de CGS, ou seja, repassados através das Tarifas Finais aos Consumidores.

Também se sabe que muitos dos vectores da transição energético-climática passam pela introdução de "novas tecnologias" que, sendo conhecidas há muitas décadas, aparecem agora como tábua de salvação no contexto de "emergência climática": as baterias de acumuladores, o hidrogénio e a mobilidade eléctrica centrada na continuação dos veículos individuais. Ora, é necessário ter presente que, grande parte destas "soluções", estando pouco amadurecidas do ponto de vista técnico-económico impõem enormes elevações nos preços finais, bem como um significativo volume de subvenções públicas não reembolsáveis e/ou créditos em condições especiais colocados à disposição das empresas privadas (e da banca comercial) que, agora, se tornaram fervorosos defensores da sustentabilidade verde.

A complexidade irracional do sistema eléctrico que vem sendo materializado, bem como a necessidade de contínuos e crescentes investimentos que mitiguem os seus efeitos negativos, determinarão custos e preços crescentes de uma electricidade já de si muito marcada por alcavalas de todo o tipo, entre as quais o peso da precificação artificial do carbono que vem sendo imposta numa cavalgada insustentável [5] .

Para um país como Portugal a situação terá grande impacto negativo.

Neste contexto de contínuo aumento do custo da electricidade para as populações e para a economia, justificado com o valor supremo do "combate às alterações climáticas", há, contudo, uma coisa intocável: os monstruosos lucros, alguns propiciados por rendas e subvenções públicas não reembolsáveis, arrebanhados anualmente pelas grandes empresas energéticas que operam em regime de monopólio e/ou de oligopólio consoante o sector e a perspectiva.

Além de muitas outras questões, caberá questionar como será possível perspectivar a recuperação económica e resiliência social numa transição marcada por preços e custos crescentes de um factor de produção tão relevante como é a energia (não apenas da electricidade), a que se acrescentarão as convulsões sociolaborais motivadas por encerramentos precoces de várias unidades de conversão energética, de processamento petroquímico, e, talvez, de fabrico de aço e de cimento?

Uma breve alusão complementar para referir, ainda, a questão da interruptibilidade que é previsto terminar a partir de outubro [6] .

A Associação Portuguesa dos Industriais Grandes Consumidores de Energia Eléctrica ( APIGCEE ) emitiu um comunicado acerca das consequências do fim do serviço interruptibilidade, em 31 de outubro, entre as quais o risco de " apagões descontrolados ". Dizem estes grandes consumidores industriais que, estando anunciado o términus do serviço de interruptibilidade (em 31 de outubro de 2021), Portugal irá "perder" 693 MW de " potência desligável automaticamente, aumentando desta forma gravemente o risco de apagões descontrolados e retirando à indústria um instrumento que tem servido para viabilizar o seu funcionamento em Portugal ".

Segundo a APIGCEE, " um apagão geral em Portugal pode afetar mais de quatro milhões de consumidores e custar cerca de 27 milhões de euros por hora ", o que seria, considera a associação, muito pior que o custo do serviço de interruptibilidade em Portugal (cerca de 110 milhões de euros por ano).

E, claro, a associação também lembrou que o combate às alterações climáticas implica a aceleração da eletrificação das economias, tornando as redes elétricas mais suscetíveis a apagões e, por isso, aumentando a " necessidade de mecanismos de defesa da rede elétrica, nomeadamente rapidez de corte de consumo desligáveis ".

As grandes empresas consumidoras recebem pela interruptibilidade não verdadeiramente com um serviço prestado, mas, de facto, um subsídio, pago à custa dos consumidores de electricidade.

A questão de fundo passa, de facto, pelos elevados CIEG – Custos de Interesse Económico Geral que incidem nas tarifas e vão por inteiro para as grandes empresas, conduzindo a altos preços finais. E, naturalmente, também pelo IVA muito elevado, e pelo peso da componente energia resultante de um mercado grossista que funciona em oligopólio especulativo, com tendência crescente para a volatilidade oportunista.

31/Julho/2021

Notas:

[1] Siderurgia (Megasa), Cimpor, Secil, Soporcel, Solvay, CUF Sakthi Portugal, Ar Líquido e Somincor.
[2] Será de indagar por que razão não se desligaram mais consumos em regime de interruptibilidade.
[3] Jornal online Água & Ambiente, 26/7.
[4] Imaginemos que, em 2050, quando já não existirem centrais convencionais, nem sequer centrais nucleares (também essas condenadas ideologicamente ao desaparecimento), não há sol durante várias horas (ou dias) e o vento intermitente não seja muito! Como não se sobreviveria à base das hidroeléctricas, ter-se-ia que recorrer maciçamente à importação (não se sabe bem donde) e, à electricidade acumulada em caríssimos sistemas de baterias e de hidrogénio (para gerar electricidade em dispendiosas pilhas de combustível).
[5] Ver recentes artigos de actores políticos como a deputada europeia Maria da Graça Carvalho (in DN, 21/7, A descarbonização inteligente ) e do ex-ministro e ex-deputado europeu Jorge Moreira da Silva (in DN, 29/7, Coerência e coragem na ação climática ) onde defendem, a propósito do combate às alterações climáticas, a "veracidade nos preços". Aliás, lendo bem tais artigos, percebe-se o "receio" que perpassa nos espíritos destes influentes membros do PSD, sobre um eventual fracasso da luta climática da União Europeia.
[6] O governo já fez passar a informação de que estará a considerar uma figura transitória alternativa que assegure às empresas grandes consumidoras, pelo menos em parte, um outro "subsidio" correlacionado.

[*] Engenheiro.

Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ 

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