domingo, 5 de setembro de 2021

Afeganistão: A retirada da guerra

David Martelo [*]

Doutrinariamente, a execução de uma manobra de retirada é uma operação de alto risco em que a força que a executa pretende evitar o combate em condições que, ocasionalmente, considera desfavoráveis. Por definição, só há lugar a “retirada” quando a força já não está “em contacto” com o inimigo. Se está “em contacto” e, mesmo assim, pretende afastar-se do inimigo, tem de, primeiramente, conduzir outra operação de elevadíssimo risco, designada por “rotura de combate”, a qual pode ser feita “com” ou “sem” pressão do opositor.

Como quer que seja, a “retirada” é uma manobra “dentro da guerra”, com a clara intenção de continuar a combater. Não é, por conseguinte, o que se tem passado, neste Agosto de 2021, no tocante às tropas americanas e da NATO que, quando escrevo, estão prestes a concluir a saída do Afeganistão, depois de intensa participação no conflito civil em que se envolveram, no Outono de 2001, na sequência dos ataques terroristas ocorridos nos EUA em 11 de Setembro desse mesmo ano.

Estamos, portanto, perante uma situação rara – se não inteiramente nova –, que é a de um Estado (EUA) e uma aliança militar (NATO), após duas décadas de participação na interminável Guerra Civil do Afeganistão, movimentarem as suas tropas para fora do Teatro de Operações, sem que isso resulte do final do referido conflito. Mais inusitado, ainda, pelo facto de todo o processo ter sido conduzido de forma unilateral pelo governo dos EUA, sem coordenação com os seus aliados, e de se ter expresso, após acordo diplomático com o inimigo (Talibans), através de uma declaração bilateral de não-beligerância. Esta parte do acordo viria a ser mutuamente respeitada, pelo que havia mais de um ano que as tropas aliadas não sofriam baixas em combate.

Assim, do acordo de Doha, entre os EUA (governo do presidente Donald Trump) e o Emirado Islâmico do Afeganistão (Talibans), assinado em 29-02-2020, resultava, no essencial, o seguinte cenário:

1. Os EUA e os seus Aliados comprometiam-se a ir reduzindo progressivamente a sua presença militar no Afeganistão, num programa com a duração de 14 meses (01-03-20 a 30- 04-21) e a fazerem troca de prisioneiros;

2. O Emirado Islâmico do Afeganistão comprometia-se a não colaborar, sob qualquer forma, com organizações terroristas, nomeadamente a Al-Qaeda, nem a permitir-lhes a utilização do território afegão;

3. O governo de Cabul – que não fora parte do acordo, mas que era nele mencionado como parte integrante de futuras negociações intra-afegãs – supostamente continuaria em guerra com os Talibans, o que pressuporia a garantia de uma RETAGUARDA, protegida pelo exército regular do Afeganistão, que permitiria um embarque tranquilo das últimas forças aliadas.

Os termos do acordo eram tão esperançosos que não deve ser motivo de grande surpresa a não inclusão de qualquer referência ao direito das forças aliadas LEVAREM CONSIGO civis afegãos que haviam colaborado profissionalmente com a tropas estrangeiras. Em teoria, não havendo fim de guerra nem capitulação do governo de Cabul, os afegãos que haviam colaborado com os aliados nada tinham a temer.

A parte “cor-de-rosa" deste escrito termina aqui.

Quando o novo presidente dos EUA, Joe Biden, assumiu funções, eram conhecidas as suas intenções de pôr fim à participação americana na campanha do Afeganistão, um dos raros temas em que estaria de acordo com a política da administração anterior. O acordo de Doha foi mantido como referência, apenas com o diferimento da data de saída das tropas ocidentais, o qual foi adiado para 31-08-2021.

Em Julho de 2021, apesar de ser seguro que a saída das tropas e civis ocidentais seria feita por via aérea, as forças dos EUA abandonaram a coberto da noite a base aérea de Bagram, condenando as operações de transporte à utilização de uma única “porta de saída” – o aeroporto de Cabul. Começa, então, a ser perceptível que os não-intervenientes nos acordos de Doha vão jogar um papel decisivo no desabamento dos sonhos cor-de-rosa imaginados pelas duas administrações americanas. As Forças Armadas afegãs, equipadas com excelente material de guerra americano, precisavam de técnicos estrangeiros para operar e fazer a manutenção do equipamento mais sofisticado. Estes técnicos, na sua maioria civis americanos contratados, não sentindo segurança para permanecer no país após a saída das tropas ocidentais, começaram a abandonar os seus postos de trabalho. O efeito, psicológico e técnico, desse abandono, não tardou a provocar uma quebra profunda do moral das tropas afegãs, circunstância que um país com 17 agências de intelligence teria a obrigação de antecipar, porque alterava drasticamente o cenário imaginado em Doha pelos representantes da administração Trump e ameaçavam a liquidação da RETAGUARDA TRANQUILA na qual deviam decorrer as operações de extracção das tropas aliadas. Além disso, estabeleciam o pânico entre os afegãos que haviam colaborado com as forças aliadas, criando uma nova necessidade moral: uma operação de evacuação de milhares de civis afegãos, receosos de represálias por parte dos talibans.

Nos primeiros dias de Agosto de 2021, é já notória a alteração do cenário militar no Afeganistão: quase sem combater, as forças taliban vão assenhorando-se velozmente das principais cidades e, a 15 de Agosto, entram em Cabul, sem oposição, apanhando as forças aliadas completamente desprevenidas para responder à nova situação. Com a rendição de facto do exército afegão, terminara a (presente fase da) Guerra do Afeganistão.

Estabelecido o caos em volta do aeroporto de Cabul, com milhares de afegãos angustiadamente em busca da salvação, inicia-se nos EUA e noutros países ocidentais uma violenta crítica à forma como a administração Biden planeara a execução da “retirada”. O ex-presidente Trump logo veio a terreiro para censurar o seu sucessor, assegurando que com ele como presidente não teria ocorrido o tremendo fiasco a que o Mundo assistia, em directo, com incomensurável espanto.

É altamente provável que parte importante da responsabilidade do fracasso tenha de ser atribuído ao comando militar no terreno. Todavia, até ao momento em que escrevo, não se conhecem opiniões que descrevam quais os passos que deveriam ter sido dados para evitar o tremendo fiasco em curso. Hão-de fazer-se, no Congresso dos EUA e nos parlamentos de outros países, inquéritos para apuramento das responsabilidades, pelo que nos encontramos, ainda, no desconhecimento de factos importantes. No entanto, do ponto de vista militar, é possível que a incaracterística “retirada da guerra”, de que não consigo recordar nenhum exemplo [1] , venha a colocar outra questão: do mesmo modo que já se aceita sem reservas a existência de guerras não-vencíveis (non winnable wars, na terminologia anglo-saxónica), talvez se venha a concluir que também, neste caso, estaremos perante uma operação inexequível, caso em que a censura só pode recair sobre a decisão política.

28/Agosto/2021

[1] Em Dunquerque, em 1940, as tropas aliadas fizeram uma retirada por mar, mas para continuarem a combater.

[*] Coronel do Exército, na situação de reforma

O original encontra-se em a-bigorna.webnode.pt/_files/200000992-b421bb421d/Retirada%20da%20Guerra.pdf

Este artigo encontra-se em resistir.info

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