sábado, 25 de dezembro de 2021

NÃO EXISTEM "VALORES COMUNS" ENTRE OS EUROPEUS E OS EUA

Thierry Meyssan*

A cimeira virtual para a democracia, organizada a partir de Washington, é um gigantesco qui-pro-quo. Muitos comentadores notaram que ela não visa promover um regime político, mas consolidar ideologicamente a aliança militar por trás dos Estados Unidos ; uma evolução que prepara novas guerras. Thierry Meyssan mostra que, longe de ser hipócrita, Washington é, pelo contrário, muito claro quanto ao seu objectivo. São os seus parceiros quem carrega as culpas fingindo ignorar que as palavras empregues não têm, de forma alguma, o mesmo significado para eles.

O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, organizou uma cimeira virtual para a democracia, em 9 e 10 de Dezembro de 2021 [1]. Não escapou a ninguém que o seu objectivo não era melhorar apenas as democracias, mas também e sobretudo dividir o mundo em dois : de um lado as « democracias » que é preciso apoiar, do outro os « regimes autoritários » que devem ser combatidos. Primeiros visados, a Rússia e a China colocaram imediatamente em causa a hipocrisia de Washington e expuseram a sua filosofia de democracia [2].

Pela nossa parte gostaríamos, não de retomar as críticas russa e chinesa, mas de examinar de um ponto de vista ocidental a credibilidade da pretensão norte-americana de ser o « farol da democracia »; ou, em termos bíblicos, a « luz que brilha sobre a colina ». A concepção russa de democracia é exactamente a mesma que a dos outros Estados da Europa continental. A da China é muito diferente. Não a iremos abordar aqui.

A nossa intenção é a de mostrar que, apesar da propaganda da OTAN, não existem «valores comuns» entre os Estados Unidos e a Europa continental. Trata-se de duas culturas fundamentalmente diferentes, mesmo se as elites da União Europeia já não são culturalmente europeias, mas em grande parte «americanizadas».

REPAROS SOBRE A FORMA

Em primeiríssimo lugar, se o objetivo desta cimeira (cúpula-br) visasse « melhorar as democracias actuais », ela não teria sido presidida a partir da Casa Branca, mas desde as Nações Unidas. Todas as nações teriam podido participar, inclusive aquelas que claramente não são democracias, mas tentam vir a ser.

Em segundo lugar, se os Estados Unidos fossem o « farol da democracia », não presidiriam a esta cimeira distribuindo pontos positivos e negativos, antes participariam nela em estrita igualdade com os outros convidados.

Ao contrário, pelo seu próprio formato, esta cimeira manifesta o « excepcionalismo americano » [3], quer dizer a crença religiosa segundo a qual os Estados Unidos são uma potência à parte, « sem semelhança com qualquer outra », « abençoada por Deus para iluminar o mundo ».

ENORMES EQUÍVOCOS

Desde o início da Cimeira, o Presidente Biden reconheceu que nenhum país era verdadeiramente democrático; que se tratava de um ideal para o qual todos tendem. Ele afirmou que, na prática, todos podiam constatar recuos (como o ataque ao Capitólio, em 6 de Janeiro de 2021) provavelmente imputáveis à chegada de uma nova geração. E que, portanto, era preciso colocar os nossos corações ao alto e reabsorver estes « recuos democráticos ». Ora, este belo discurso permite, antes de mais, dar a impressão de um consenso e evitar clarificar o debate.

Todos concordam em dizer que uma excelente definição de democracia foi dada pelo Presidente Abraham Lincoln: « O governo do povo, pelo povo e para o povo ». No entanto, Lincoln jamais quis reconhecer a « soberania popular ». Este ideal nunca foi na prática alvo da menor tentativa de aplicação nos Estados Unidos. A acção política de Lincoln consistiu, primeiro, em promover o privilégio exclusivo do Presidente federal em fixar as taxas alfandegárias (o que foi a causa da Guerra da Secessão), depois em abolir a escravatura (o que foi o meio para ganhar essa guerra). É por isso que na cultura norte-americana se entende hoje em dia a palavra « democracia » como significando unicamente « igualdade política ». Da mesma forma, a expressão « direitos cívicos » não designa, em absoluto, « os direitos dos cidadãos », mas a ausência de discriminação racial no acesso a esses direitos. Por extensão, aplica-se hoje esta expressão às discriminações contra todas as minorias.

Esse equívoco tem uma longa história. O jornalista Thomas Paine, cujo panfleto O Senso Comum (1776) desencadeou a Guerra da Independência dos Estados Unidos, entusiasmou-se pela Revolução Francesa. Ele escreveu um violento panfleto para explicar a diferença entre as concepções irreconciliáveis dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e da França em matéria de Direitos do Homem (1792). Este foi o livro mais lido em França durante a Revolução. Valeu-lhe tornar-se cidadão de honra francês e ser eleito para a Convenção. Os anglo-saxões querem significar pela expressão «direitos do homem» o direito das pessoas não serem vítimas da Razão de Estado e, por extensão, de qualquer forma de violência de Estado. Pelo contrário, a França adoptou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; um programa que faz de todo o cidadão um actor da vida política nacional e que, consequentemente, o protege dos abusos do Poder.

Não é só quando se fala de « democracia » que não falamos todos da mesma coisa, mas também quando falamos de « Direitos do Homem ».

Os Estados Unidos dispõem, reconheça-mo-lo, de uma superioridade na sua definição de liberdade de expressão. Para eles, esta liberdade deve ser total a fim de que todas as ideias possam se exprimir e que o debate permita escolher a melhor. Pelo contrário, os países latinos não reconhecem esta liberdade às ideias dos vencidos. Assim, criminalizam a expressão do racialismo nazi. Por extensão, desde 1990, eles interditam também a expressão de quaisquer ideias nazis que levaram a condenações durante os julgamentos de Nuremberga. De uma coisa a outra, eles proíbem hoje tudo o que diga respeito à morte de inimigos em massa, utilizando câmaras de gás como os Einsatzgruppen das SS, tal como de contestar que o processo tivesse sido usado em certos campos de concentração.

A liberdade religiosa é também um assunto que incomoda. Os Estados Unidos encaram-no como um direito absoluto, não reconhecendo o direito de recusar qualquer religião. Pelo contrário, os Europeus falam de liberdade de consciência, o que inclui todas as outras formas de espiritualidade, inclusive o ateísmo. Esta diferença tem enormes consequências práticas, com alguns países não europeus continentais concedendo direitos individuais apenas através da pertença a uma comunidade confessional. Os Estados Unidos, fundados por uma seita puritana, tornaram-se o paraíso das seitas. De facto, não é possível para um fiel virar-se contra a sua Igreja se esta abusa dele ou o manipula, enquanto na Europa é legal lutar contra os abusos de autoridade cometidos num contexto religioso.

Notem bem que a diferença de concepção em matéria de direitos do homem tem um corolário. Nos Estados Unidos, dada a experiência da ditadura britânica do Rei George III, e da Constituição dos Estados Unidos que organiza uma monarquia sem rei, nem nobreza, o Povo deve manter uma força armada para se proteger, ele próprio, de possíveis abusos do Poder. É por isso que o comércio de armas de guerra é livre no país, enquanto é sedicioso na Europa continental.

REPAROS SOBRE A ESSÊNCIA

Vamos ao cerne da questão. Embora admitindo serem imperfeitos, os Estados Unidos pretendem ser o « farol da democracia ». Mas são eles realmente uma democracia?

Se considerarmos esta palavra no seu sentido norte-americano de « igualdade política », é forçoso constatar que não é esse o caso, de modo algum. Existem enormes disparidades políticas, nomeadamente entre os Brancos e os Negros, que a imprensa não cessa de reportar. O Presidente Biden entrega-se a uma tarefa colossal. Já explicamos que o seu modo de abordar esta questão, longe de a resolver, mais não faz do que agravá-la [4].

Se se tomar a « democracia » no sentido que ela tem por todo lado de « soberania popular », então é preciso reconhecer que a Constituição dos Estados Unidos não é, em absoluto, democrática; que os Estados Unidos jamais foram uma democracia. A Constituição acorda com efeito a soberania aos Governadores dos Estados federados e a eles apenas. As eleições por sufrágio universal podem existir ao nível dos Estados federados, mas são opcionais ao nível Federal. Todos se lembram da eleição do Presidente George W. Bush em 2000: o Supremo Tribunal (Corte-br) dos Estados Unidos recusou recontar os boletins de voto (cédulas-br) na Florida com o argumento que verificar a vontade dos eleitores na Florida não lhe dizia respeito uma vez que o Governador deste Estado ( o irmão do suposto vencedor) já havia decidido.

Lembremos igualmente que os Partidos políticos não são nos Estados Unidos associações de cidadãos como na Rússia, mas, sim instituições dos Estados federados, tal como era o Partido único na União Soviética. Assim as eleições primárias, que permitem seleccionar o candidato de um Partido, não são organizadas pelos próprios Partidos políticos, mas pelos Estados federados que as financiam.

Chegando à conclusão que os Estados Unidos actuais não são uma « democracia » no sentido comum, mas uma oligarquia, e que defendem unicamente os « direitos cívicos », é natural que no exterior eles combatam a « soberania popular » através de Golpes de Estado, de « revoluções coloridas » e de guerras. Ao fazê-lo, os seus valores são diametralmente opostos aos dos Europeus continentais, Rússia incluída.

O pensamento norte-americano tem, no entanto, uma consequência positiva. Lutar pelos direitos cívicos significa que se luta contra certas formas de corrupção. Washington considera normal pagar secretamente salários a políticos estrangeiros e financiar as suas campanhas eleitorais. O Departamento de Estado estabelece, de consciência tranquila, listas de personalidades a apoiar e não aceita que nos seus respectivos países se considere estes líderes como corruptos. Por contraste, os Estados Unidos combatem a cleptocracia, quer dizer, o roubo de bens públicos por dirigentes estrangeiros (não pelos dirigentes dos EUA que estão isentos de quaisquer crimes em virtude do «excepcionalismo americano»). Ao fazer isso, eles ajudam por vezes a « democracia » no sentido europeu continental.

Thierry Meyssan* | Voltairenet.org | Tradução Alva

*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II.
Manipulación y desinformación en los medios de comunicación
 (Monte Ávila Editores, 2008).

Notas:

[1] «Declaraciones de Joe Biden en la sesión inaugural de la Cumbre por la Democracia», por Joseph R. Biden Jr., Red Voltaire, 9 de diciembre de 2021.

[2] «Declaración del ministerio de Exteriores de Rusia sobre la “cumbre por la democracia” de Estados Unidos», Red Voltaire, 30 de noviembre de 2021. “China: Democracy That Works”, Voltaire Network, 4 December 2021.

[3] “A ONU minada pelo «excepcionalismo» norte-americano”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 2 de Abril de 2019. American Exceptionalism and Human Rights, Michael Ignatieff, Princeton University Press (2005).

[4] “Joe Biden reinventa o racismo”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 12 de Maio de 2021.

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