Não tens ideias de jeito? As eleições estão à porta e queres apelar aos piores sentimentos dos eleitores e piscar o olho à extrema-direita, mais à sua retórica de exclusão e ódio? Mandas-te ao RSI, pois então. Mas como não queres parecer uma grande besta dizes que estás só a pedir "mais fiscalização".
Fernanda Câncio* | Diário de Notícias | opinião
“Sentia-me sempre inferior aos outros. Às vezes, parecia-me um dinheiro amaldiçoado. Era como se não fosse realmente meu, tinha que estar sempre a prestar contas de tudo - e faz sentido que assim seja, mas, ao mesmo tempo, sentia-me um bocado envergonhada."
Esta fala é de Ana Ameijides, em entrevista ao Público nos 25 anos do Rendimento Mínimo Garantido/Rendimento Social de Inserção, feitos em 2021. Ana foi, em criança, com os quatro irmãos, uma das primeiras beneficiárias desta prestação criada em 1996 pelo governo de António Guterres. Aos 29 anos, já não é - e diz que apesar de sentir gratidão pelo programa, pelo que a ajudou e à sua família, não é um sítio onde queira voltar.
Claro que Ana não é todas as pessoas que alguma vez beneficiaram do RSI. É só uma pessoa, como muitas outras, para quem fez a diferença entre a miséria e uma pobreza menos miserável. Mas aquilo que diz sobre esta prestação social - o facto de aos que a recebem se fazer sentir que estão sempre sob vigilância - é corroborado pelos estudiosos. "A fraude no RSI é menor do que noutras prestações sociais, porque nunca houve nenhuma medida tão escrutinada quanto esta", diz por exemplo Carlos Farinha Rodrigues, especialista em políticas públicas e uma das autoridades nacionais sobre pobreza e exclusão.
Nada disto, como o facto de a prestação média mensal por beneficiário ser de pouco mais de 100 euros (119,41), e de o número de beneficiários ter vindo a diminuir muitíssimo na última década - depois de um máximo de mais de meio milhão em 2010 (526 382), em plena crise económico-financeira, em 2020 eram menos de metade (257 844) e em novembro tinham descido para 206 879 -, interessa a quem quer usar o RSI como instrumento de propaganda anti-Estado Social e políticas de esquerda.
Foi sempre assim com a direita, que logo em 2003 fez questão de mudar o nome ao programa e tem vindo sempre a bater na tecla da "fiscalização". Chegámos até à desvergonha de ver em 2012 o então ministro da Segurança Social, o centrista Pedro Mota Soares, a defender o corte de 20% efetuado no montante previsto para este apoio com base na "moralização". Isto porque, anunciou, o RSI ia passar a ser "um contrato entre o beneficiário e o Estado, com direitos e deveres". Estes passariam a incluir a obrigatoriedade de as crianças do agregado irem à escola e de inscrição no centro de emprego para quem recebe a prestação - cancelada para presos condenados. Novidades incríveis - não fosse dar-se o caso de o Rendimento Mínimo Garantido ter sido criado em 1996 como, precisamente, um contrato entre o Estado e o beneficiário, de desde esse início existir a obrigatoriedade de inscrição no centro de emprego e de matrícula e assiduidade das crianças na escola, e o cancelamento da prestação em caso de prisão efetiva (o que aliás deve ser feito com o cuidado de não prejudicar terceiros; as famílias dos condenados não podem ser penalizadas por esse facto).
Esta suposta "moralização" anunciada pelo governo Passos Coelho era pois uma trapaça populista e odienta, para esconder a verdade: o corte de 70 milhões que haviam previsto para a prestação era obtido modificando o cálculo da mesma, passando as crianças a valer 30% do rendimento de referência, em vez dos 50% que até aí eram aplicados.
Tendo em vista este triste histórico e o facto de o acordo entre o PSD e o Chega nos Açores ter como principal bandeira a diminuição dos apoios sociais naquela região autónoma, onde existe a maior percentagem de beneficiários do RSI de todo o país, não pode pois surpreender ver Rui Rio, no encerramento do congresso do PSD, a apelar a "mais fiscalização nos apoios sociais". Sem apresentar uma única ideia concreta para essa fiscalização ou dados concretos sobre as fraudes que insinua existirem, o candidato a primeiro-ministro acusou os beneficiários desses apoios sociais de "se furtarem ao trabalho" e "dessa forma condicionarem a própria expansão empresarial que, cada vez mais, se lamenta da falta de mão de obra disponível", enquanto, evidentemente, uma "classe média sufocada em impostos" paga o bodo.
André Ventura, claro, veio logo aplaudir o eco do seu discurso (o Chega falou precisamente de "reforço da fiscalização pra evitar fraudes e abusos" quando no parlamento se falou, este ano, e a propósito do quarto de século do programa, de rever o RSI); já Rio foi para o Twitter queixar-se de que o seu intuito foi "deturpado" num artigo do bloquista José Soeiro, que o acusa no Expresso de querer cortar apoios sociais. Não, Rio não quer cortar apoios sociais, lá agora; só quer, como o anterior governo PSD/CDS e o governo dos Açores, "moralizar" - mesmo se fala do sufoco dos que pagam impostos, sinalizando que com a "fiscalização" ficariam mais folgados.
Não, Rui Rio não precisa de saber do que está a falar, nem de queimar os olhos a ler relatórios ou a conhecer percursos de vida de gente que necessitou de um rendimento mínimo garantido. Não precisa de saber que o RSI corresponde a menos de 400 milhões de euros anuais - uma bagatela orçamental - nem de reparar que há prestações sociais a pesar muitíssimo mais no Estado, como as chamadas "pensões mínimas" (mais de mil milhões de euros/ano), e sem qualquer condição de recursos - e em relação às quais, por motivos de propaganda, a direita nunca fez qualquer exigência de "fiscalização" e "moralização"; pelo contrário.
Não, não esperemos de Rui Rio, que se tem esmerado no ziguezague ideológico, ou, melhor dizendo, sem ideias, mais do que uma única lógica: safar-se, passar à oral. Se para isso acha que o melhor é copiar as respostas ao colega do Chega, copia. É pena, mas é o que se vê.
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