Bruno de Lencastre* | Diário de Notícias | opinião
No próximo ano, Timor-Leste celebra 20 anos sobre a sua independência. Como todos sabemos, a sua autonomia resultou de um longo processo que mostrou ao mundo que vale a pena resistir e que há batalhas que não podem deixar de ser travadas, sobretudo face a situações de gritante injustiça. Mesmo quando não se vislumbravam soluções a curto prazo, os timorenses acreditaram e mostraram-nos que é sempre possível a prevalência dos valores e dos princípios universais, os mesmos que estão na base da acção global das Nações Unidas.
Recordamos que Timor-Leste foi, durante muito tempo, considerado uma causa perdida, mas que, mesmo assim, foi fazendo o seu caminho. O sucesso deste processo deve-se, em larga medida, à confluência de vários factores, desde o empenho de países irmãos - sobretudo do universo dos países da CPLP -, de personalidades e facções políticas de importantes países da região, à solidariedade internacional, que sempre se recusou a calar a tirania e, fundamentalmente, à vontade, firmeza e coragem constantes do povo timorense, que nunca baixou os braços face ao quotidiano de adversidade.
Não nos podemos igualmente esquecer de que, na época, ocorreu uma importante mudança política na Indonésia, resultando daí a aceleração do processo de libertação de Timor-Leste. Com a queda do regime de Suharto e a ascensão ao poder de um regime que se apresentava como democrático, foi possível criar um enquadramento jurídico que afirmasse os valores e princípios sobre uma situação política que, há muito, violava o direito internacional. E, para mim, é esta a grande lição a reter de Timor-Leste - a audácia no momento certo e a vontade política enquadrada pelo direito internacional como factores determinantes para este sucesso colossal na história das Nações Unidas, que, pela primeira vez na sua história, governaram um Estado em processo de transição para a independência.
Com a almejada liberdade garantida, a vontade da liderança política timorense e com o extraordinário apoio da comunidade internacional foi possível criar condições para, naquele pequeno território, desenvolver um Estado assente em princípios e valores democráticos e de respeito pelos direitos humanos, conceitos pouco comuns na região. Tanto assim é que os avanços democráticos de Timor-Leste são dignos de registo anual nos vários índices globais de qualidade da liberdade democrática, colocando o pequeno e jovem país sistematicamente à frente dos restantes países do sudeste asiático.
No entanto, os avanços de Timor-Leste das últimas duas décadas parecem estar em contra-ciclo com o ambiente global relativo à democracia, preocupando os Estados Unidos da América e a União Europeia, que este mês, organizaram uma cimeira global sobre a democracia (The Summit for Democracy) e se comprometeram a apoiar o desenvolvimento da democracia no mundo com vários milhares de milhões de dólares.
De acordo com Biden, a democracia e os direitos humanos estão ameaçados em todo o mundo e enfrentam sérios desafios. A desconfiança pública e o fracasso dos governos em proporcionar um progresso político e económico equitativo e sustentável tem vindo a alimentar a polarização política, conduzindo à ascensão de líderes que têm minado as instituições democráticas. Por outro lado, a fraca capacidade dos Estados em pôr termo às grandes desigualdades globais, aliadas ao aumento da corrupção, continuam a corroer a democracia. Torna-se, por isso, fundamental fazer prova de que a democracia ainda funciona e pode melhorar a vida das pessoas de forma tangível. Há, assim, que unir esforços em torno dos grandes valores universais para rejuvenescer a esperança e tornar as sociedades mais abertas e participativas, sendo necessário, para tal, encontrar formas criativas de envolver os cidadãos nas decisões políticas, não deixando esmorecer o fervor democrático.
Contudo, para que isso aconteça, os regimes democráticos têm de ser capazes de resolver os problemas mais urgentes dos cidadãos e proporcionar uma boa qualidade de vida, crescimento económico, emprego, segurança e bem-estar, sob pena de entrar em declínio e abrir caminho a alternativas mais autoritárias.
No sudeste asiático, a referência democrática ainda é Timor-Leste. Um país de cerca de um milhão e meio de habitantes numa região com centenas de milhões de pessoas a viverem em regimes diferentes. Até quando Timor-Leste resistirá à força centrípeta dos países da região? É, ou não, uma obrigação dos parceiros internacionais continuarem a apoiar o desenvolvimento democrático de Timor-Leste, para que se continue a afirmar como um farol da liberdade democrática naquele canto do mundo e, eventualmente, exportar a semente democrática para os países vizinhos?
Parece impensável que se possa iniciar este processo de "contaminação" democrática do sudeste asiático a partir de Timor-Leste, mas se alguém perguntasse, nos anos 80 do século passado, se Timor-Leste viria a ser independente da Indonésia, muitos diriam que não, que era impossível, que era um sonho inimaginável.
*Coordenador de projectos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
Imagem: Farol de Díli
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