Luís Castro Mendes* | Diário de
Notícias | opinião
A revolução é um drama passional
Mao Tse-tung
I have lost the immortal part of
myself
Shakespeare, Otelo, ato 2, cena 3
Foi Hegel que nos lembrou que
"nada de grande no mundo se fez sem paixão". A revolução é o momento
passional da história, o lugar onde a transparência do mundo inicial, luminoso
e justo se confronta com a face terrível, obscura e demasiadamente humana da justiça.
Nós, que éramos já adultos nos anos de 1974 e 1975, tivemos o privilégio de
viver uma Revolução. E, consequentemente, vivemos também a mecânica
irreversível e previsível da contrarrevolução. Como Termidor e o bonapartismo
na Revolução Francesa. Ou, noutro percurso, como Estaline e a ditadura
soviética na Revolução Russa. O florescer da liberdade e da iniciativa popular
que nos arrebatou (ou nos horrorizou, conforme o ponto de vista) foi uma
mudança robusta e inapagável e traduziu-se na institucionalização posterior da
nossa democracia, tal como Bonaparte acabou por consagrar no Código Civil o
quadro jurídico que veio desfazer o Ancien Régime.
Os que rejeitaram a Revolução, os
horrorizados de Abril, são hoje em tudo semelhantes àqueles Bourbons de quem
Talleyrand dizia "nada terem esquecido e nada terem aprendido". Perto
do cinquentenário de Abril, eles procuram impor a sua narrativa de
ressentimento e de raiva, demasiado tempo contida e contrariada. Esses mantêm a
sua paixão, uma paixão reativa, negativa, o ódio à Revolução.
E nós? Nós que vivemos a paixão
revolucionária com um amor entusiasmado e juvenil que não renegaremos nunca?
Acaso pode a nossa lucidez presente, passada que foi a contrarrevolução, ir ao
encontro do ódio deles?
Quando jovem trotskista,
acreditei na revolução permanente. Como se a paixão pudesse durar sempre, tal
aquele imortal, posto que é chama, que cantou Vinícius. Hoje social-democrata,
deixei de crer na atualidade da revolução. As mudanças de sociedade devem
alcançar-se, penso agora, por via democrática. Mas muito receio que as paixões
furiosas desses que "nada esqueceram e nada aprenderam" e a nossa
própria incapacidade de sermos radicais no nosso reformismo acabem por provocar
graves enfrentamentos e violências numa sociedade cada vez mais desigual,
intolerante e cindida. A atualidade da Revolução pode voltar a colocar-se,
contra os nossos próprios desejos, porque a história se faz do inesperado.
O confronto com a morte de Otelo
foi o confronto de todos nós com a própria imagem da Revolução, o confronto com
as ilusões do nosso passado e os receios do nosso presente. Como Yeats dizia
num grande poema "the best lack all conviction, while the worst/ are
full of passionate intensity". Os erros de Otelo são por demais
evidentes aos nossos olhos e, ao contrário de muitos, Otelo pagou por eles. Mas
através dele são os erros da própria Revolução que nos vêm olhar e pedir
contas. Os erros de Otelo foram os de uma paixão revolucionária sem objeto que
acabou por dissolver-se num apocalipse de violência sem sentido. Mas essa mesma
paixão, que fez e faz sentido, continua a apontar para a nossa liberdade e para
a plena dignidade dos pobres e dos excluídos. Tal como a Revolução que nós
vivemos.
Não podemos perder o nosso rumo
por causa de erros que reconhecemos e superámos. Os outros, os nossos Bourbons
cínicos ou vociferantes, detentores de fundos em paraísos fiscais ou
simplesmente possuídos pela raiva da exclusão, esses parecem guardar
eternamente para si a "intensidade apaixonada" do seu ódio. Se nós,
deste lado, abandonámos os mitos da violência, a verdade é que assistimos ao
movimento inverso da parte dos ressentidos de Abril. É natural, porque o
ressentimento nada constrói. Ao contrário da paixão.
A Revolução é afinal essa
"parte imortal de nós próprios", que sabemos que um dia teremos de
perder
* Diplomata e escritor