domingo, 3 de abril de 2022

CONTOS POPULARES ANGOLANOS

A Mungomba Vaidosa e o Castigo do Rei Leão

Seke La Bindo*

Era uma vez uma Mungomba muito vaidosa que vivia no monte Mulova, perto do riacho. Percorria o mato mostrando a sua beleza e cacarejando como se fosse a melhor cantora da região. Bem vistas as coisas, era realmente uma bela perua, distinta e elegante. A vaidade tapava-lhe os olhos e não conseguia ver mais nada. Ignorava os outros animais e apenas pensava em si. Um dia fez um ninho muito bem feito e começou a por lá os ovos. Ansiava o dia em que os seus filhinhos iam nascer. Seriam seguramente os mais belos do Kuvango.

Mungomba passava longas horas a chocar os ovos e para matar o tempo cantava esta canção:

- Muange, muange muno! Muange, muange muno!

Era tão vaidosa que estava convencida de que era o único ser vivo do monte Mulova. E continuava a lengalenga:

- Sou a única, sou a única. Sou eu e mais ninguém!

Um dia  Mungomba saiu do ninho e foi até à nascente do riacho procurar comida. Ficou por lá muito tempo, contemplando a sua imagem nas águas cristalinas. Os seus olhos nunca viram nada mais belo. E enquanto se contemplava no espelho da água, cantava com sua voz maviosa:

- Sou a única, sou a única, sou eu e mais ninguém!

Depois de muito se contemplar nas águas do riacho, Mungomba regressou ao ninho. Quando se aproximou sentiu um aperto no coração. Uma enorme Ndakakanda estava enroscada em cima dos ovos. Nunca se viu uma cobra chocar ovos de ave!

Assustada com o que viu, foi a correr ao palácio do rei Leão apresentar queixa contra a cobra que lhe roubou o ninho e os ovos.

Quando chegou ao trono do rei, Mungomba apresentou as suas mágoas:

- Majestade, a cobra Ndakakanda ocupou o meu ninho e está enroscada nos meus ovos. Imploro que a mande retirar do meu tesouro.

O rei Leão perguntou a Mungomba:

- Quando estás a chocar os ovos, o que fazes?

E ela respondeu:

- Enquanto choco os ovos canto uma canção à minha beleza. 

- E o que cantas tu? – Interrogou o rei.

Mungomba cantou:

- Muange, muange muno! Muange, nuange muno!

O rei Leão ficou pensativo e disse Mungomba:

- Estás muito enganada. Tu não és a única. Como vês, a Ndakakanda ocupou o teu ninho e está enroscada nos teus ovos. Além de ti, também existe ela. Mas também existo eu, aquele a quem vieste pedir justiça. E há muitos mais neste belo monte Mulova, que resguarda o riacho de águas límpidas onde todos saciamos a sede.

Mungomba ouviu estas palavras e ficou a pensar. Nunca se tinha dado conta que o monte e o rio, as chanas e as árvores, a noite e o dia, as aves e os animais fazem parte do seu mundo. A vaidade impediu-a de compreender que ninguém sobrevive se estiver só. 

- Como hei-de salvar os meus ovos, rei Leão?

- Vais para o alto do monte Mulova e canta: somos nós, somos nós todos e mais alguém. Depois vais ao teu ninho e repetes essa canção em frente à cobra Ndakakanda. Vais ver que tudo muda nesse instante.

 Mungomba saiu do palácio do rei e correu para o alto do monte Mulova e começou a cantar como o rei Leão lhe ensinou. O seu canto ecoava pelas chanas, penetrava no mato e despertava os outros animais.

Depois desceu até ao ninho e cantou:

Somos nós, somos nós e mais alguém!

Mal acabou a canção, a cobra foi-se desenroscando e abandonou o ninho, serpenteando até se perder no mato. Mungomba pôs-se em cima dos ovos e só os deixou quando nasceram os pintainhos. A primeira canção que lhes ensinou foi esta: somos todos, somos todos amigos e solidários!  

*Conto adaptado do livro O Mundo Cultural dos Nganguelas

CONTOS POPULARES ANGOLANOS

O Dia em que Nasceu a Tristeza

Seke La Bindo

Kufa era um menino sem pai nem mãe e a família fugiu dele como a noite foge do Sol. Nasceu sem nada e nada tem a não ser uma pedrinha de sal e um tugúrio onde se refugia da chuva e do frio. Foi abandonado para sempre quando no jango contou aos mais velhos que viu no grande rio Keve uma lebre amarrar a pata do hipopótamo a uma árvore da margem. Os velhos sentenciaram: quem fala assim é feiticeiro.

Desde então Fuka repete para si o que ouviu à lebre na margem do rio Keve:

- A ngeve, ofuka yove yeyi. Linga hupandeke v’okulu, onale mwele popó! Ó hipopótamo, a tua dívida está aqui. Deixa que te prenda a perna, para puxares com toda a tua força! 

E ele aceitou. 

A lebre é dona de muitas artimanhas e até dizem que convenceu uma leoa a comer os filhos. Quem a conhece sabe que a sua inteligência ofusca até a luz do dia. Os mais velhos erraram quando baniram Kufa. É verdade! A lebre amarrou mesmo o hipopótamo na grande árvore da margem do rio.

O menino passava o dia colhendo frutos silvestres. Colocava armadilhas nas lavras para apanhar coelhos. As lebres nunca se deixam apanhar. Tinha poucos anos de vida mas já conhecia aquelas terras melhor do que os mais velhos. Percorria todos os caminhos mas foi mais além: rasgou caminhos novos, entre o vale e a montanha, das lavras até ao rio, do rio às nuvens. Aquelas nuvens baixas que indicam a chuva. Ou as altas nuvens das trovoadas. 

Kufa aprendeu a vida pelo livro que escrevia dia após dia, hora a hora. Um dia houve grande alarido na aldeia. As mulheres do soba foram à lavra e encontraram apenas as canas do milho. Até parecia que mãos invisíveis tinham apanhado todas as espigas. Aquilo era obra de um feiticeiro com imenso poder, capaz de secar o rio e comer vidas. Todos os dedos foram apontados em direcção ao tugúrio de Kufa. Quando ao entardecer ele chegou à aldeia com um coelho que tinha apanhado na armadilha, ouviu-se um grande clamor:

- É ele, é ele! Foi Kufa que colheu o milho e devorou as espigas!

O menino ficou atordoado e sem ânimo para continuar a andar. Estava estarrecido, paralisado. Olhava temeroso para aquela gente que o desprezava e agora lhe fazia uma terrível acusação: És o ladrão da aldeia!

Kufa nunca até então tinha posto a mão num fruto alheio, nunca tirou uma espiga madura, jamais tocou nos úberes das vacas ou das cabras para beber um pingo de leite. O menino só queria o que era da natureza. E até àquele dia, ela tinha-lhe dado frutos silvestres em abundância, muita água, pequenos animais que comia, cozinhando-os alta madrugada, nos restos de fogo do jango. Nunca sequer tinha pedido nada aos vizinhos. Porque sentia a hostilidade e o desprezo que lhe dedicavam. Kufa nunca se abeirou de um mais velho para lhe pedir um ensinamento ou uma informação. Fazia tudo pelo tino, reminiscências do que vira fazer a seus pais, ainda mal andava.

- Eu não sou um ladrão! – Disse Kufa com a voz sumida, quase imperceptível.

E novo clamor se levantou:

- Este é o ladrão, o feiticeiro. É ele que come vidas!

O menino começou a chorar silenciosamente e deixou cair o coelho ao chão. Estava sem forças e só lhe apetecia morrer. 

O soba então falou. Todos o ouviram respeitosamente em silêncio. Só Kufa continuava a chorar. 

- Se não foi ele que roubou as espigas então foi o feiticeiro que vive nele! Mas não podemos castigá-lo porque pode lançar todas as desgraças sobre a nossa terra. A partir de agora ele fica proibido de se aproximar das nossas lavras. Só pode andar pelos caminhos de pedras e espinhos.

Aos poucos as pessoas foram-se afastando, temendo que Kufa fizesse lançar logo ali uma grande desgraça sobre a aldeia. O soba ficou sozinho, frente ao menino:

- Se voltares a roubar serás amarrado por uma perna na grande árvore do rio e ali ficarás para sempre.

E assim Kufa foi escravizado. Quem não pode percorrer livremente os caminhos perde a dimensão da humanidade.

Agora todos os aldeãos lhe chamam ladrão. Os meninos da aldeia desprezam-no. Ele nasceu enjeitado e assim vai morrer.

Vosi vakuêmbo volukisa otjimunu, omala l’akwavo vokupula, kuvapapala vali l’ae.

Assim nasceu a tristeza.

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