terça-feira, 12 de abril de 2022

Portugal | HÁ MUITAS FORMAS DE EMPOBRECER

José Soeiro | Expresso | opinião

Que o governo insista que o melhor é “esperar que passe” corresponde a aceitar inscrever duradouramente um corte de facto no salário. É para isto que serve a maioria absoluta do PS?

O corte de rendimentos tem múltiplas vias. No passado, a narrativa de que “vivíamos acima das nossas possibilidades” foi o pretexto utilizado para um brutal processo de empobrecimento e de acréscimo das desigualdades. Cortes de salários e pensões, aumento de impostos sobre o trabalho, condições de recurso que levaram à redução das prestações sociais, aumento dos dias de trabalho foram algumas das receitas do período da troika. Agora, o momento que vivemos é outro, mas as consequências imediatas são já preocupantes: os preços aumentam (mais de 5% de subida do custo de um cabaz de compra com os alimentos essenciais) mas os salários não, ou muito menos. Desde o início da invasão da Ucrânia, o custo de vida aumentou três vezes mais que os salários. Quem trabalha está, de novo, a empobrecer.

Para travar este processo, não há uma medida mágica nem uma ação que, isoladamente, resolva o problema. Mas há decisões fundamentais. Uma delas é intervir na formação dos preços, até por existirem setores que, à boleia da crise, se estão a aproveitar, têm lucros extraordinários e continuam a anunciar a distribuição de dividendos de milhões, como acontece com as grandes empresas na área da energia (Galp e EDP) ou da grande distribuição (por exemplo, o Continente ou o Pingo Doce). Outra é aumentar os salários, para que não sejam comidos pela inflação.

Só que o Governo rejeita qualquer uma delas. Resultado: uma condenação da maioria das pessoas ao empobrecimento, ao mesmo tempo que se mantêm intocados os lucros e a especulação de quem beneficia com esta situação.

É certo que, nos últimos dias, Costa anunciou 18 medidas que não incluiu no seu programa de Governo para responder à crise. Só que, do que se conhece do seu detalhe, elas são limitadas no universo que abrangem, efémeras no seu efeito e incapazes de evitar o abuso de quem já está a tirar partido da conjuntura.

Termos uma taxa de IVA sobre a energia como se fosse um bem de luxo é incompreensível e estabelecer um teto para o preço do gás, como o Governo anunciou, faz sentido. Eis uma mexida que deve mesmo avançar. Mas por que razão António Costa não quer mexer na formação de preços da energia e permite que a EDP continue a cobrar a energia produzida pelas barragens a um preço absurdamente superior ao seu custo? E por que é tão impensável para o governo intervir a sério nas margens de lucro da grande distribuição? Até o “imposto sobre os lucros caídos do céu”, recomendado pelas instituições europeias e que o Ministro da Economia admitiu, no debate do programa do Governo, que seria uma boa ideia, já foi remetido, rapidamente, para o campo do que “não é prioritário”, forma elegante de se descartar o que não se tem coragem para levar por diante. “Talvez um dia”, diz o ministro. Mas não é agora, justamente, que ele se exige?

No que aos rendimentos diz respeito, a recusa em subir salários pelo menos ao nível da inflação é o anúncio de um corte real de rendimentos, com efeitos brutais e, provavelmente, muito duradouros. O Governo rejeita esta subida com o argumento de que o aumento dos preços deverá ser “passageiro”. Mas além de esta crença ser implausível, funciona como conformação a uma imputação dos custos da crise a quem trabalha. Medidas temporárias destinadas aos beneficiários das prestações mínimas, como o apoio de 60 euros que vale durante um mês, não resolvem este problema, porque nem respondem à maioria, nem anulam para o futuro o rombo que se está a instalar agora.

Que haja uma direita que defende que não se pode controlar preços, que seria inadmissível taxar a especulação ou subir os salários de forma consistente não admira: a revisão em alta da desigualdade sempre foi o seu programa, os cortes como solução para a economia fazem parte do seu património. Que haja até quem tenha sugerido, a este propósito, o quão educativo teria sido no passado haver quem ficasse alguns meses sem qualquer salário, como defendeu uma deputada do PSD, é bastante eloquente e nauseoso. Mas que o governo insista que o melhor é “esperar até que passe” corresponde a aceitar inscrever duradouramente um corte de facto no salário. É para isto que serve a maioria absoluta do PS?

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