José Goulão | AbrilAbril | opinião
Exigia-se um mínimo de dignidade das autoridades portuguesas para enfrentar e denunciar o enxovalho ao 25 de Abril, aos que o executaram e tornaram possível, aos que lutaram e abdicaram da vida para instaurar em Portugal uma sociedade livre das sombras do passado.
O gueto, a civilização, a desumanização
Lamentavelmente, quando se celebra mais um ano sobre a queda do nazi-fascismo na Europa (que não em Portugal e Espanha, regimes muito bem vistos pela NATO) verifica-se que a União Europeia, remetida ao gueto em que o compungido Azeredo a detectou, aposta as suas principais fichas em termos de futuro no apoio a um regime comprovadamente filonazi. Virou-se a História de pernas para o ar em termos de democracia. E, repete-se, por causa dos equívocos que são cultivados através de uma campanha vergonhosa e pidesca para controlo das opiniões, que a denúncia da implantação e do desenvolvimento do regime nazi na Ucrânia a partir de 2014 não significa um apoio à ilegal, criminosa e cruel invasão militar russa e ao regime oligárquico, reaccionário e neoczarista de Moscovo. Trata-se somente de sublinhar que a democracia não tem dois pesos e duas medidas e nela não cabe, por definição, qualquer comportamento nazi-fascista. Como a Constituição da República Portuguesa estabelece sabiamente, mas visivelmente sem êxito por causa daqueles que dominam hoje o país e vêem no 25 de Abril uma coisa incómoda que se faz o frete de evocar burocraticamente ano após ano.
Uma provocação sem resposta mas com aplausos
Só por insensibilidade e desprezo pela data o governo, os deputados e o chefe de Estado puderam deixar passar em claro, sem qualquer obrigatório reparo institucional e diplomático, a provocação que o sr. Zelensky fez a Portugal e ao povo português ao comparar a revolução de 25 de Abril ao golpe nazi da Praça Maidan em Kiev.
O 25 de Abril provocou a queda de um regime terrorista, implantou a liberdade política, estabeleceu a paz no país e tornou possível a independência das ex-colónias, liberalizou o exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos, permitiu a libertação dos presos políticos, liquidou a censura, proporcionou a criação dos partidos políticos, desmontou a polícia política, garantiu a realização de eleições livres, do exercício da liberdade de consciência e de opinião.
No pólo oposto, o golpe com epicentro na Praça Maidan em Kiev, organizado com a participação do actual presidente dos Estados Unidos, foi culminado por atiradores furtivos fascistas matando tanto polícias como manifestantes numa operação de bandeira falsa e celebrou-se com a exibição em fachadas de edifícios públicos de grandes retratos de carniceiros nazis, como o agora herói nacional Stepan Bandera; derrubou um governo eleito democraticamente; substituiu-o por uma junta incluindo dez dirigentes fascistas; prende, assassina e persegue opositores políticos; reforçou uma polícia política terrorista; proibiu todos os partidos da oposição; montou a caça aos «inimigos do Estado»; lançou uma guerra e uma limpeza étnica em grande parte do país; instaurou uma mentalidade racista e xenófoba tanto no seu próprio funcionamento como na educação da sociedade, cultivando o apartheid, além de promover a militarização das gerações mais jovens incentivando o ódio contra o «inimigo russo». Repare-se que os inimigos não são apenas Putin e os dirigentes de Moscovo mas sim todas e cada uma das pessoas que tenham nacionalidade ou origem étnica russa, tratadas em linguagem quotidiana como «os pretos da neve».
Perante isto exigia-se um mínimo de dignidade das autoridades portuguesas para enfrentar e denunciar o enxovalho ao 25 de Abril, aos que o executaram e tornaram possível, aos que lutaram e abdicaram da vida para instaurar em Portugal uma sociedade livre das sombras do passado, diametralmente oposta da situação imposta aos ucranianos pelo regime de Kiev e os seus financiadores, municiadores, conselheiros e companheiros de armas – os Estados Unidos, a NATO e a União Europeia, as «democracias liberais».
Não, não houve qualquer reacção institucional à provocação, mas sim aplausos. Portugal negou-se a si próprio através da sua casta política venal e estrangeirada: foi um golpe violento contra o 25 de Abril.
Em vez disso, e enquanto circula a lista ucraniana de delação em Portugal, o primeiro-ministro decide ir a Kiev encontrar-se com o governo e o próprio Zelensky, além de lhes levar dinheiro que tanta falta faz à sociedade portuguesa, por exemplo para contratar médicos, dignificar enfermeiros, criar melhores condições para o ensino público, estabelecer salários, reformas e subsídios de apoio que não sejam esmolas. Principalmente no momento em que o país começa a sofrer os efeitos das sanções suicidas que a União Europeia impõe à Rússia.
O primeiro-ministro em exercício fez cair um governo em nome do «rigor» orçamental e agora retirou dinheiro dos bolsos dos portugueses para subsidiar um regime autocrático. Atropelou a coerência democrática talvez em troca de mais alguns créditos para a ambicionada carreira na burocracia europeia.
E a Assembleia da República, em vez de se sentir insultada, reagiu à provocação do presidente da Ucrânia Ocidental programando um tele-encontro de confraternização com o Parlamento de Kiev, precisamente aquele que foi nomeado através de eleições fraudulentas e que ilegalizou todos os partidos da oposição, uma espécie de «União Nacional». Nada pode ser mais coerente com os valores democráticos e a Constituição da República.
Assim sendo, não surpreende que a
embaixadora da Ucrânia Ocidental em Lisboa sinta condições para solicitar a
ilegalização do Partido Comunista Português. É natural: foi o que mais lutou no
país para liquidar um regime semelhante ao que existe
Contrariando o seu presidente mas repondo a ordem natural das coisas, a mesma embaixadora de Kiev desfilou em Lisboa integrada na contra-manifestação de repúdio do 25 de Abril organizada pelos herdeiros de Pinochet/Chicago Boys e se designam Iniciativa Liberal. A diligente senhora esteve no lugar certo e entre a sua gente, aqueles que, no meio de falinhas mansas e polidas encenações escondem as garras do fascismo como regime de berço do neoliberalismo. Foi assim no Chile de Pinochet; é assim na Ucrânia de Zelensky, onde o turbo neoliberalismo criou o país mais pobre da Europa, incentivado pelo presidente e embalado pela coligação entre os partidos nazis e os irmãos da Iniciativa Liberal lá do sítio, entre os quais florescem confessadamente os admiradores de Pinochet. Como se regozijou uma das dirigentes dessa «direita liberal» em Kiev quando foram proibidos os partidos da oposição: «agora podemos governar à vontade, livres desses russos e pró-russos». Uma lição para os mais distraídos ou influenciáveis pelos espectáculos do circo político.
Os dirigentes norte-americanos e europeus, porém, não se atrevem a ser tão claros. Insistem na mentira e na robotização dos cidadãos, conseguindo até que muitos deles soltem os até agora recalcados impulsos inquisitoriais. É mais um dos efeitos nefastos da guerra e da sua propaganda.
Como é próprio do Ministério da Verdade orwelliano agora tornado instituição de utilidade pública, a verdade não é para aqui chamada. Para todos os servidores das oligarquias dominantes, sejam dirigentes políticos ou avençados da comunicação-propaganda, continuam a prevalecer as palavras proféticas pronunciadas há exactamente 50 anos pelo lendário estratego geopolítico norte-americano Zbigniew Brzezinski: «Em breve as pessoas serão incapazes de raciocinar por elas próprias. Apenas repetirão as informações que receberam nos noticiários da noite anterior».
Um conceito que foi actualizado e completado em 2017 pelo filho, Mika Brzezinski, agora embaixador norte-americano na terra natal do pai, a Polónia: «As mensagens podem ser minadas de tal maneira que são realmente capazes de controlar o que as pessoas pensam. É esse o nosso trabalho».
Goebbels teria inveja, mas esta é a realidade de hoje apurada através da maneira como o Ocidente aposta tudo, e em desespero, na guerra na Ucrânia e na manutenção do regime nazi de Kiev como garantia para a sua própria sobrevivência como dono unipolar do mundo.
Só a busca incessante de uma solução de paz e a retoma decidida da iniciativa pelos antifascistas, envolvidos de forma unida, afirmativa, activa, determinada e sem concessões no combate às provocações desenvolvidas à sombra da «ucrainização» inquisitorial dos espíritos, poderá reverter o caminho da desumanização e do autoritarismo de que o 25 de Abril, no caso português, foi a vítima mais recente.
José Goulão, AbrilAbril
Imagem: O presidente ucraniano Volodymir Zelensky dirige-se à assembleia da República, por videoconferência. Lisboa, 21 de Abril de 2022CréditosMiguel A. Lopes / Lusa
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