terça-feira, 7 de junho de 2022

Portugal | COMO AS TELECOM NOS ROUBAM COM UM CLIK

Está na net, aparece uma janela de pub, tenta livrar-se dela e zás: "contratou" um "serviço" que lhe vai ser cobrado, pela calada, pela sua operadora telefónica. Uma "prática comercial" que não é mais que burla, e que incrivelmente ninguém em Portugal parece ter poder (ou querer) para impedir ou castigar.

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

Já ouviu falar de wap billing, ou "cobrança silenciosa"? WAP é o acrónimo de Wireless Application Protocol, ou seja, Protocolo para Aplicação Sem Fios - uma tecnologia que permite aos telemóveis aceder à internet. Até aqui tudo bem, certo? Sucede que essa tecnologia, através da qual os telefones "comunicam" com os "sítios hóspedes", permite a esses sítios captar e armazenar informação sobre cada aparelho que o distingue de todos os outros - o MSISDN, ou Mobile Station International Subscriber Directory Number.

Esse número é fundamental nesta história. Que tem a ver com aquelas janelas chatas de publicidade que cada vez mais nos aparecem quando estamos na net: ao tentarmos livrar-nos delas podemos, sem dar por tal, clicar no sítio errado - e ser vítimas de click jacking, ou seja, de roubo pelo clique.

Isso mesmo aconteceu à minha mãe, que tem 91 anos e, descobri este domingo, estava desde março a pagar cerca de 8 euros mensais na sua fatura da MEO por algo que vinha descrito como "Conteúdos - Digitais Especiais - Subscrição" - sem qualquer explicação adicional, e sem que ela tivesse dado por isso, já que o pagamento é efetuado por débito direto.

E a pagar sem saber continuaria se não me tivesse pedido para lhe apagar SMS no telefone. Foi assim que dei com uma datada de fevereiro na qual se lia "subscrição do serviço Playvod (SP) concluída. Preço 1,99 euros/semana." Seguia-se um link para se quisesse cancelar. Como expliquei à minha mãe que deve ignorar SMS de origens desconhecidas e nunca clicar em links, por causa das fraudes (phishing), ela ignorou aquilo que lhe pareceu isso mesmo, até porque, naturalmente, não tinha efetuado qualquer subscrição.

Tendo com uma pesquisa no Google percebido que a Playvod é o nome de uma fornecedora de jogos que pertence ao universo Altice, ou seja à empresa dona da MEO, passei a conferir as faturas da minha mãe. Concluindo que os tais 1,99 euros semanais lhe estavam a ser cobrados desde março, liguei para a MEO para exigir o cancelamento imediato e a devolução dos valores cobrados. A pessoa que me atendeu ainda tentou aquela conversa habitual de enrolanço, assegurando-me de que a operadora "não tem responsabilidade nesta cobrança, porque é de outra empresa", mas acabou por fazer o que lhe pedia, sem no entanto deixar de repetir até ao fim que a MEO "se limita a ser intermediária". Pela pura bondade do seu coração, claro; não para receber uma parte do produto do roubo.

Só depois de narrar esta experiência no Twitter li pela primeira vez, nas inúmeras respostas que me deram conta de ocorrências semelhantes, a expressão wap billing.

Decidi então tentar perceber o que é e como pode uma prática tão claramente abusiva, à qual se adequa, como uma luva, a definição do crime de burla - "Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial" - não ter sido ainda alvo da ação das autoridades.

Desde logo, da ANACOM, o regulador das telecomunicações. Este, inteirei-me, efetuou em 2017 uma recomendação às empresas de telecomunicações - as telecoms - no sentido de apenas exigirem aos seus assinantes "o pagamento de conteúdos digitais ou de serviços que não sejam de comunicações eletrónicas disponibilizados quando aqueles tenham prévia, expressa e especificamente autorizado perante as mesmas a realização do pagamento de cada um dos referidos conteúdos ou serviços, através de declaração em qualquer suporte duradouro."

Também a Direção-Geral do Consumidor fez um folheto digital em que recomenda, mas aos consumidores, que "estejam atentos", alertando para a possibilidade de receberem SMS a informar da subscrições de serviços que desconhecem, e que "o cancelamento pode comportar custos acrescidos". Aconselha ainda a pedir "o barramento do serviço ao operador" e, caso este não o faça, "denunciar a situação à ASAE", porque "pode estar em causa o incumprimento de vários diplomas, nomeadamente o regime dos contratos celebrados à distância." Por fim, adverte: deve-se "evitar navegar em sítios desconhecidos".

Sim, isto é verídico: a entidade estatal que tem como função defender os consumidores, além de os informar de que estão por sua conta e risco (e de até dar a entender que andaram por onde não deviam), parece não ter a certeza de que é ilegal cobrar um serviço que a pessoa não contratou.

Às tantas é de se lhe chamar "uma operação de cobrança especial", não?

Ninguém diria que há leis sobre cobranças relativas a contratos inválidos. Desde logo a Lei de Defesa do Consumidor, que estabelece, no número 4 do artigo 9º: "O consumidor não fica obrigado ao pagamento de bens ou serviços que não tenha prévia e expressamente encomendado ou solicitado, ou que não constitua cumprimento de contrato válido (...)." Mais o Decreto-Lei 24/2014 de 14 de fevereiro, que proíbe "a cobrança de qualquer tipo de pagamento relativo a fornecimento não solicitado de bens, água, gás, eletricidade, aquecimento urbano ou conteúdos digitais ou a prestação de serviços não solicitada pelo consumidor (...)."

E ninguém diria que logo em 2013, nos EUA, uma empresa foi obrigada pela ASAE local (a Federal Trade Comission) a restituir a todas as pessoas lesadas os valores cobrados por wap billing e ainda multada em 1,2 milhões de euros, existindo uma norma federal que obriga a que todas as cobranças sejam expressamente autorizadas.

O problema não é só da DGC, porém. A ANACOM diz não ter competência legalmente atribuída para agir porque empresas como a tal da Playvod não são de comunicações eletrónicas, mas de conteúdos. Daí que tenha já recomendado ao governo e ao parlamento que legislem no sentido de obrigar as operadoras a só cobrar com consentimento expresso. A cumprir a lei, portanto.

Esta recomendação da ANACOM é de 2019, depois de em 2018 ser apresentada no parlamento uma petição pública para que se acabe com a desvergonha ilegal que é esta cobrança "silenciosa". Sem qualquer efeito prático, já que, como se constata, nada mudou - mesmo se estiveram em curso, até à recente dissolução da Assembleia da República, os trabalhos (muito atrasados) de transposição de uma nova diretiva europeia sobre comunicações eletrónicas, com audição de diversas entidades.

Estranhamente, não encontrei qualquer posição da Comissão Nacional de Proteção de Dados - uma das entidades ouvidas - sobre uma matéria na qual me parece claramente existir apropriação ou utilização ilegal de dados pessoais. Desde logo, o tal número de identificação de cada telefone - através do qual as empresas que "roubam o click" chegam à telecom específica na qual a pessoa tem contrato, a qual por sua vez, e mediante participação no saque, usa os dados do cliente para lhe impor a cobrança de um serviço que nunca contratou. Se não para impedir isto, para que serve o Regulamento Geral de Proteção de Dados?

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