Washington volta a mirar a América Latina. Com diplomacia arrogante, visa conter o avanço chinês – mas nada oferece para a soberania e dilemas sociais da região. Encontro é canto de cisne de um império cego às mudanças geopolíticas
Juan Gabriel Tokatlian* | no Nuso |
A IX Cúpula das Américas (que
acontece
A primeira Cúpula das Américas, de 1994, realizada em Miami durante o governo de Bill Clinton, teve um contexto singular. Os Estados Unidos em particular e o Ocidente em geral eram os vencedores da Guerra Fria. Washington foi primus inter pares e teve uma oportunidade notável de moldar o que era então – e por falta de um nome melhor – chamado de Pós-Guerra Fria. A União Soviética havia sofrido uma implosão e a Rússia era uma potência minguante que dispunha de um enorme arsenal nuclear, mas tinha uma base material destruída e uma projeção de poder muito reduzida. A China era, naqueles anos, um país em ascensão, mas ainda não havia se tornado uma grande potência regional tampouco uma superpotência com alcance global. E a Europa optava por alargar a União Europeia em vez de aprofundar a sua experiência unificadora.
A América Latina estava deixando para trás os golpes e a transição democrática se consolidava de forma gradual, mas promissora. O mundo exigia os “dividendos da paz” uma vez que o confronto entre os Estados Unidos e a União Soviética terminou, Washington parecia dar alguma atenção à América Latina e a região compartilhava uma certa homogeneidade com governos mais inclinados a buscar relações mais estreitas com a Casa Branca. Pode-se dizer – claro que com algum exagero – que havia uma relativa comunidade de interesses e valores no sistema interamericano.
Essa primeira data continental deve ser situada também na grand strategy de Washington nesse contexto histórico. A grande estratégia, chamada de “Compromisso mais Ampliação” (Engagement plus Enlargement), consistia em que os Estados Unidos não retrocedessem como haviam feito após a Primeira Guerra Mundial e que tivessem a vontade, a capacidade e a oportunidade de reconfigurar decisivamente o sistema internacional (o componente de engagement ), enquanto buscaria propagar a economia de mercado e o pluralismo político (o componente enlargement ). Em relação a este último componente, a política norte-americana utilizou o Consenso de Washington de 1989 para dar impulso às políticas de liberalização e desregulamentação econômica, por um lado, e de redução do Estado, por outro. Nesse quadro, um eixo central foi o comércio, tema que se tornou o foco principal da Primeira Cúpula das Américas com a aspiração de alcançar uma Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) até 2005.
A caminho do conclave de Miami, os Estados Unidos realizaram uma série de consultas prévias, além de reuniões preparatórias. A América Latina, então por meio do chamado Grupo do Rio (composto pela soma do Grupo Contadora, Grupo de Apoio a Contadora, Comunidade do Caribe [Caricom] e Sistema de Integração Centro-Americana [SICA]), realizou reuniões às vésperas da Cúpula com o objetivo de levar contribuições que refletissem as necessidades da região. Do ponto de vista burocrático, o papel do Subsecretário de Assuntos Hemisféricos do Departamento de Estado, Alexander Watson, foi relevante. Conhecia a região – tivera missões diplomáticas na Bolívia, Brasil, Chile e Peru – e falava espanhol e português.
Dada a notável assimetria de poder e em virtude do consentimento de grande parte da América Latina e do Caribe, Washington chegou a um acordo sobre a centralidade da ALCA como objetivo-chave na próxima década. Além disso, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) passariam a desempenhar um papel fundamental na implementação dos diversos compromissos temáticos alcançados. À época, uma figura de prestígio como Enrique Iglesias presidia o BID e o ex-presidente da Colômbia, César Gaviria, chegou à Secretaria da OEA com uma agenda de modernização institucional.
Mas esse estado de sugestivo consenso entre os Estados Unidos e a América Latina não duraria muito. Diferentes realidades internacionais (como os atentados de 11 de setembro de 2001 e o início da “guerra ao terrorismo”, a ascensão progressiva da China, o início de uma estagnação secular das economias do Ocidente e o aumento do protecionismo estadunidense) e regionais (como os crescentes custos sociais e econômicos das reformas dos anos 1990 e a chegada ao poder de diferentes tipos de governos progressistas) foram gerando condições que inviabilizaram a ALCA em 2005.
Em 2022, 28 anos após a primeira
reunião continental, os Estados Unidos realizam a IX Cúpula das Américas
Para começar, havia o problema da pandemia que obrigou uma alteração da data. O pano de fundo foi fornecido pelos 18 meses de política latino-americana do governo democrata. Em suma, até agora a gestão da região teve mais continuidade do que mudança, uma espécie de “trumpismo soft”. Quase nenhuma de suas promessas, por exemplo, sobre migração e recursos significativos para a América Central, foi cumprida. As sanções a países como Venezuela e Cuba não foram reconsideradas. Como vem ocorrendo há décadas, o lugar do Comando Sul nas relações interamericanas parece predominar sobre o do Departamento de Estado. A estratégia internacional de Washington sobre drogas ilícitas também mudou pouco.
Agora, em essência, esta Cúpula se realiza em um contexto muito diferente do de 1994. O enfraquecimento internacional de Washington é notório, enquanto os Estados Unidos têm sua própria “casa em desordem”; a consolidação da ascensão da China já é um fato; o ressurgimento agressivo da geopolítica é evidente após a invasão russa da Ucrânia; o Sul global defende transformações mais urgentes com uma voz mais audível do que no início do século XXI; a situação ambiental é muito delicada; e a agenda global exige um grau de governança que nenhum país pode impor ou administrar de forma individual.
Em relação à América Latina, duas questões-chave ficaram claras. Por um lado, o alto nível de fragmentação, a ponto de se tornar improvável a convergência em questões vitais para a região. Isso torna a região um ator cada vez menos importante no cenário mundial. Por outro lado, e além dos governos no poder em um ou outro país – e muito especialmente na América do Sul –, não há administrações que busquem reduzir ou reverter os laços, particularmente econômicos, com a China, o que implica que não há atores domésticos dispostos a vetar a relação com Pequim que tanto inquieta Washington.
Por sua vez, a IX Cúpula de Los Angeles faz parte da grande estratégia dos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro de 2001, que busca a primazia (primacy): Washington não aceita nem tolera a existência de um poder de igual tamanho. Com George W. Bush essa primazia foi agressiva, sob Barack Obama foi recalibrada e, com Donald Trump, ofuscada; com Joe Biden, estamos testemunhando uma primazia deteriorada, tanto por razões internas quanto externas. A IX Cúpula reflete essa nova condição da grand strategy de Washington. Os Estados Unidos vivem atualmente um escancarado dissenso bipartidário na política externa, têm menos recursos em termos de investimento privado e assistência oficial ao desenvolvimento para garantir sua influência na América Latina e enfrentam uma China que até agora não promoveu uma ideologia alternativa, mas tem recursos materiais (investimentos, comércio, ajuda) para apoiar e aumentar sua projeção na região.
Nesse quadro de referência, é
importante notar os contrastes entre as cúpulas de 1994 e 2022. Em relação à
presente reunião
Certamente, no primeiro semestre de 2022 ficou claro que os Estados Unidos e a América Latina vinham operando com duas “lógicas” distintas em relação à IX Cúpula. Uma série de questões de natureza e alcance globais, como a crescente competição entre os Estados Unidos e a China, a guerra na Ucrânia, a ampliação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o futuro da energia, a gravitação de recursos estratégicos e a multiplicação de hotspots no mundo, entre outros, reforçou nos Estados Unidos, entre civis e militares, democratas e republicanos, acadêmicos e think-tanks, uma visão dos assuntos mundiais marcada pela lógica geopolítica: sobretudo a luta global, a política de poder e a expansão das esferas de influência.
Enquanto isso, a complexa e crítica situação econômica e política, a exacerbação de fontes de instabilidade e volatilidade, a ausência de um modelo de desenvolvimento sustentável e a profunda polarização em toda a América Latina levaram à prioridade na região de uma lógica social: enfrentar as desigualdades, recuperar o crescimento econômico e evitar revoltas cidadãs. Isso antecipou, além de formas e palavras, um choque de interesses entre Washington e vários países latino-americanos, enquanto aspectos avaliativos – como a democracia – foram aprofundando olhares diferentes sobre como enfrentar e processar, nos Estados Unidos e na América Latina, o desafio de seu enfraquecimento e eventual regressão.
A cúpula de Los Angeles parece caminhar para um impasse nas relações interamericanas, o que poderia reavivar a “síndrome da superpotência frustrada” dos Estados Unidos. A síndrome se expressa em um certo padrão: uma região – neste caso, a América Latina – é considerada pouco relevante por diferentes razões. Isso significa que é percebido de forma simplificada, que recebe atenção intermitente dos tomadores de decisão e que atrai o interesse de poucos atores domésticos nos Estados Unidos. Assim, as políticas burocráticas são caracterizadas pela recorrência e invariabilidade. Ocasionalmente, surge a expectativa de uma “transformação” madura e responsável na região, maturidade e responsabilidade que são entendidas como consonantes com os objetivos primordiais de Washington na área. Mas a decepção ressurge: países turbulentos, líderes rebeldes, políticas inconsistentes e desafios inesperados levam primeiro à surpresa e depois à decepção. No entanto, nada disso leva a alterar a estratégia. Na realidade, a superpotência não tem vontade e disposição para repensar e reorientar as relações com a região. Assim, de fato, inicia-se um novo ciclo que anuncia outra frustração futura.
*Sociólogo, com um Ph.D. em Relações Internacionais pela Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins em Washington, DC (Estados Unidos). Vice-reitor e professor plenário do Departamento de Ciência Política e Estudos Internacionais da Universidad Di Tella (Argentina) e ex-diretor do mesmo departamento (2012-2016). Foi professor associado da Universidade Nacional da Colômbia (Bogotá) e cofundador e diretor do Centro de Estudos Internacionais (CEI) da Universidad de los Andes (Bogotá, Colômbia, 1982-1998). É especialista em política externa, tráfico de drogas, terrorismo e crime organizado.
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