domingo, 3 de julho de 2022

Portugal | VOO RASTEIRO

Joana Amaral Dias* | Diário de Notícias | opinião

Ora vejam o que escrevi num jornal, em Janeiro de 2019: "Décadas a discutir um novo aeroporto e, de repente, está decidido, é no Montijo. Mais do que tempo para tomar uma opção fundamentada, mas qual quê. Portugal no seu melhor. Empurrou-se com a barriga, deixou-se a Portela rebentar pela costuras e, quando a solução passou de necessária a emergência, decide-se com os pés e em cima do joelho. Montijo e pronto." Credo. Afinal, nessa altura não houve decisão alguma (entretanto veio a covid e os aviões sumiram) mas a história repetiu-se mais de três anos depois, agora com Pedro Nuno Santos. Isto quando se junta a guerra pela sucessão no PS com tantos interesses que tentam abocanhar o lombo de uma obra colossal, é o diabo. Fora isso, eis o melhor retrato lusitano: a coisa custa a descolar, não levanta voo, parece que estamos sempre no mesmo sítio, em constante ladainha, lenga-lenga. Lembra aquele velhinho filme O Feitiço do Tempo com um Bill Murray novinho. Permanentemente discutimos os excessos de burocracia, o serviço nacional de saúde e as urgências, os incêndios, o crescimento anémico, a corrupção e, claro, o aeroporto da capital.

Este impasse remonta a 1969 (ainda é mais velhote), quando começaram a ser equacionadas localizações, de Rio Frio à Ota. Em 2007, comparou-se esta com Alcochete e o então ministro afirmava "Margem Sul jamais" porque seria "faraónico onde não há gente, escolas, hospitais, indústria, comércio". Mesmo? O governo PS mudou e, em 2019, passou a achar o Montijo mais barato e mais eficiente. Mas por comparação a quê?! Para ser séria, essa afirmação obrigaria a uma avaliação estratégica que confrontasse hipóteses distintas em segurança, ambiente, economia. "Assim, como sempre, tratou-se apenas de mais uma genuflexão a um grupo económico estrangeiro, numa decisão opaca tomada à Czar com o respectivo pivot -- o ministro Pedro Marques -- bem recompensado, ascendendo a estrela e podendo ser cabeça de lista nas europeias". Lembram-se?

Ota, Alverca, Sintra, tanta geografia depois, e o certo é que os governantes tão useiros e vezeiros a patrocinar chorudos pareceres, ainda não encontraram uma equipa técnico-científica que sustente uma opção definitiva. Também Beja, infelizmente, não parece ser escolha porque embora tenha parte do investimento realizado, baixo impacto ambiental, promessa de desenvolvimento do interior e do comboio, é muito longe de Lisboa, não serve milhões de portugueses e é estrategicamente errada.

Portanto, das duas uma - ou a Portela é mesmo um aeroporto complexo, sobrelotado, ter este nível de pressão no tráfego aéreo no centro de uma capital é uma roleta russa diária, e logo há que avançar. Ou tudo isso é balela e não necessitamos de mais nenhum aeroporto em Lisboa. Mas em avançando, é necessário satisfazer quer as piranhas de Alcochete quer os abutres do Montijo? Meio século depois, a conclusão a que chegam é ambos? Enfim, confirma-se que entre pontes e pistas, em Portugal não vinga a defesa do bem comum mas apenas a protecção e promoção dos interesses particulares.

Diz a história de Viriato que Roma não paga a traidores. Mas, definitivamente, Portugal paga bem aos seus próprios vendedores.

*Psicóloga clínica.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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