sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Portugal | E SE VIVÊSSEMOS NUMA DEMOCRACIA?

Guilherme Trindade - no Setenta e Quatro

Por que é que aceitamos que um tiranete não eleito tenha poder sobre como passamos mais de um terço do nosso dia? Os nossos horários, as nossas tarefas, com quanto ficamos daquilo que produzimos, porque não temos voto nestas matérias? E já que são os trabalhadores a construir uma empresa, porque não têm voto na sua direcção, investimentos, estratégia?

Dificilmente se encontra alguém na rua, em Portugal, que seja abertamente contra a democracia. Talvez na Assembleia da República, ironicamente, se encontre uma dúzia ou assim.

Esta ideia da democracia, com todas as suas falhas e chatices, até porque isto de decidir implica estar informado, e isso dá trabalho, brilha especialmente comparada com sistemas anteriores de ditaduras e feudalismo.

Ai este senhor de coroa manda? Quem é que morreu e fez dele rei? Ai, o pai, está certo. Mas manda porquê? Porque Deus assim quis. E foi Deus ou foi ter canhões com mais pontaria que o outro tipo? 

No fundo, quanto mais atrás vamos, mais vemos que os títulos nobiliárquicos e honras não são mais do que o verniz que legitima a conquista e saque de uns bárbaros de cruz ao peito. E se temos ilusões contemporâneas de meritocracia, basta ir ver quanta da nossa elite moderna consegue seguir a sua árvore genealógica ao tempo dos Afonsinhos. Ou quantos dos nossos Salgados, Mellos e Amorins descendem dos mais afortunados do tempo da ditadura de Salazar. Basta isto para percebermos que para se ser milionário ou dono de grandes empresas não é preciso mérito nenhum. Basta herdar.

Graças ao 25 de Abril, decidimos que isto era um mau sistema para gerir… tudo. No entanto, parece haver um tabu: se somos contra as ditaduras, por que é que as aceitamos no local de trabalho?

Por que é que aceitamos que um tiranete não eleito tenha poder sobre como passamos mais de um terço do nosso dia? Os nossos horários, as nossas tarefas, com quanto ficamos daquilo que produzimos, porque não temos voto nestas matérias? E já que são os trabalhadores a construir uma empresa, porque não têm voto na sua direcção, investimentos, estratégia? O que torna alguém que herdou a empresa ou que comprou ações com dinheiro emprestado como um fundo abutre um governante legítimo?

Ah, mas arriscaram o seu capital, escolheram investir! E quantas ideias ficaram pelo caminho porque quem as teve não tinha capital para "arriscar''? Quanto arrisca alguém que herda uma empresa?

Talvez tenha sido essa a justificação em tempos: eu arrisquei muito para conquistar este reino, portanto é meu. Estranhamente não aceitamos que o primeiro-ministro diga “ora, eu matei o anterior primeiro-ministro, por isso agora vou decidir quanto é o IVA das fraldas”. Nem “O meu pai deu-me este cargo de primeiro-ministro.” ou “Eu ganhei o leilão, por isso agora sou primeiro-ministro”. Então por que é que aceitamos para quem manda nas empresas?

Que separação mágica é essa que diz que nesta área muito específica, afinal, as ditaduras são boas? 

Porque a verdade é que votamos para decidir o salário mínimo, horários, leis laborais e responsabilidades da empresa. Claramente não existe um limite mágico qualquer que vede o alcance da democracia ao local de trabalho.

Nem todas as formas de organização de trabalho são autocráticas. Uma sociedade anónima é, essencialmente, uma plutocracia, onde o dinheiro compra poder e privilégios como dividendos. E uma cooperativa de trabalhadores é, de facto, uma democracia. Numa cooperativa de trabalhadores, todos os trabalhadores têm um voto sobre a empresa que ajudaram a construir.

Há ainda, além do Estado e das cooperativas, uma terceira forma de democratizar o trabalho e é através do fortalecimento de sindicatos. Os sindicatos são também organizações democráticas que representam os interesses dos seus membros e usam o seu poder coletivo para conseguir influenciar as condições no seu trabalho.

A diferença é que uma empresa pode fugir para sítios onde sindicatos tenham menos poder (como Portugal). Uma cooperativa não pode fugir dos seus trabalhadores tanto quanto um país pode fugir dos seus cidadãos. A fuga da Corte para o Brasil não conta.

Posso falar-vos das vantagens das várias cooperativas em termos de igualdade salarial ou resistência a crises (podem seguir os links para isso), mas não preferimos necessariamente democracias porque têm resultados melhores, preferimos porque são mais justas que ditaduras.

Não havendo amanhã uma revolução como então é que no nosso mundo se poderia estimular essa alternativa democrática?

Permitam-me umas sugestões modestas. 

A primeira é cultural. Do mesmo modo que a propaganda do empreendedorismo existe nas aulas de Cidadania, porque não promover o cooperativismo desde cedo na escola?

A segunda é o enquadramento legal: como facilitar a formação de cooperativas a nível de simplificação burocrática?

Porque não uma Lei Marcora, como em Itália, que dá aos trabalhadores de uma empresa falida a escolha de comprá-la e transformá-la numa cooperativa? Não é preferível a ser desmantelada para credores?

Ou fazer como os alemães com a codeterminação e incluir trabalhadores nos quadros de administração?

Ou ainda, sendo mais ambicioso, olhar para o que os social-democratas suecos queriam fazer com o plano de Meidner em que o Estado usa o dinheiro do IRC para comprar parte da empresa para os seus trabalhadores, via um fundo de assalariados. O Bernie Sanders propôs algo similar, que pelos vistos, teria sido popular. Talvez consigamos apelar ao ego do nosso ministro das finanças se lhe chamarmos “o plano Mediner”?

A terceira é financeira: se decidirmos, enquanto sociedade, que preferimos a democracia no trabalho à ditadura, então temos de nivelar o campo de batalha. As cooperativas precisam de acesso igual, senão privilegiado, a capital. Para se formarem, para crescerem. Mas como não podem nem devem vender ações, isso dificulta o acesso a investidores. Por que não criar um Banco de Fomento público para cooperativas? Era dinheiro mais bem gasto que esbanjar o PRR em quem não precisa.

A ideia de que porque se pode mudar de emprego ou se pode criar uma cooperativa iliba as empresas da acusação de serem ditaduras faz tanto sentido quanto dizer que um país deixa de ser uma ditadura porque se pode emigrar ou dizer que se eu fundar uma democracia ao lado, a Arábia Saudita deixa de ser uma ditadura. Não deixa.

É importante pensar na diferença que isto faria nas nossas vidas. Sou demasiado novo para saber como se sentiram as pessoas a votar livremente pela primeira vez depois do 25 de Abril. Como nos sentiríamos quando entrássemos no escritório, na loja, na fábrica, no campo, pela primeira vez, sabendo que tínhamos deixado de vir trabalhar para uma ditadura e passámos a vir trabalhar numa democracia?

P.S.: Queria ter comentado o ataque concertado às pessoas trans que houve em semanas recentes por comentadores da esquerda à direita e esta ideia absurda que incluir a afectividade é excluir a sexualidade. Recomendo só os textos do André Tecedeiro António Guerreiro. Valem bem mais que ir ler um gato menor a embaratecer uma discussão séria.

*Guilherme Trindade - Ligeiramente Paradoxal – no Setenta e Quatro

O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990, porque o pai, e cito, “não quer que ele escreva como o Salazar”.

Sem comentários:

Mais lidas da semana