segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Angola | O POETA NA SUCATA* -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Álvaro Novais é um poeta de voo popular. A miudagem luandense dos anos 50, hoje meninas e meninos de quinta idade, lembra-se do programa infantil realizado pelo “Caixa de Fósforos”, na antena do Rádio Clube de Angola, aos domingos à hora do funje e muamba de galinha. O Caixinha era o próprio Álvaro Novais na pele de um negro gentio. Começou como guarda-livros numa pescaria de Porto Alexandre, passou pela Tipografia Minerva, em Luanda, perdeu o emprego por ser comunista, nunca mais lhes deu confiança e andou de vadio até ao fim da vida.

Conheci o Caixinha numa noite em que andávamos à deriva entre a escuridão e as horas translúcidas. Tudo vadios tresmalhados do redil colonial e ébrios de horas mortas pelo silêncio. Entrámos no Marialvas, onde todas as madrugadas, a Helena de Troia se despia com imprecisões ao nível do gesto, provocadas por dezenas de grãos nas suas asas de anjo com sexo.

O Caixinha era uma espécie de animador de grupos boémios que matavam o tempo em vez de destruírem a maquineta que o inventou. Quando o uísque fabricado no Lobito subia à cabeça, ele declamava os seus poemas, sempre na pele de um negro gentio. Falava como um monangambé, mas foi o homem mais livre que conheci. 

Álvaro Novais nunca escreveu um poema. Compunha os seus poemas de memória e nas noites de festa dizia-os, ao voo livre da palavra. Muitas vezes improvisava novos versos nas composições. Com ele, nada era definitivo. No fim da noite, Caixinha estava com os olhos inundados, a língua pesada e passos perigosamente cambaleantes. 

Eu tinha acabado de comprar em quinta mão uma mota BSA, muito teimosa, que só pegava quando lhe apetecia. Dava ao pedal duas vezes, se não pegava com esses dois impulsos, podia estar horas ou dias sem pegar. No grupo havia um mulato bangão que se intitulava mecânico e me informou que a máquina tinha um problema de magnetos. Bom, naquele tempo, mulato era sempre mecânico tal como, segundo o mais velho Luandino, preso político no Tarrafal era sempre do Benfica, mesmo o velho Jonatão Tchingungi, que mais tarde o Savimbi assassinou. Ao ver o Caixinha naquela instabilidade, ofereci-lhe boleia.

A mota pegou à primeira pedalada e ele agarrou-se à minha barriga com unhas e dentes. Partimos em direcção à estrada do Cacuaco, sob uma algazarra medonha dos bêbados da madrugada. Quando Caixinha me berrou é aqui, é aqui, eu olhei e não vi sombra de casa, nem telhado nem chaminé. Parei em frente ao sucateiro mais famoso de Luanda, pus a mota no descanso e ajudei o Caixinha a aterrar. Percebi rapidamente que ele morava naquele cemitério de carros desmantelados.

A sua casa era a cabine de uma velha camioneta Morris, sem para brisas, sem vidros nas portas nem no óculo traseiro. O banco corrido já nem sequer tinha estofo. Disse-me que aquilo era um palácio no tempo da chuva mas no cacimbo virava um inferno porque a humidade lhe soltava os cães da asma. Mesmo ao lado havia a cabine de uma camioneta Volvo, com todas as comodidades, mas o sucateiro não o deixava dormir lá porque tinha esperança de vender os estofos, em excelente estado de conservação.

Quando o sucateiro pegou ao serviço exigi que pusesse à disposição do Caixinha a cabine da camioneta Volvo. Se o tom de voz era ameaçador, a fúria dos olhos nem se fala. O dono do ferro velho, a partir desse dia, deu ao Caixinha a sua melhor cabine e ainda lhe concedeu o direito de lavar a cara numa bacia de água.

O Caixinha morreu pouco tempo depois da independência de Angola. Em Dezembro de 1974, já ele estava doente e desdentado, conseguimos metê-lo num estúdio da Emissora Oficial de Angola, depois de um festim de castelvinho e vinul. Ele declamou os seus poemas. Mano Artur Neves, um artista do som fadado por Nossa Senhora da Muxima, gravou as palavras que se escapavam por entre os buracos deixados pelos dentes. 

O poeta António Cardoso nessa altura realizava o programa cultural “Resistência” e a poesia de Álvaro Novais, dita pelo próprio, foi tema de um programa inteiro. Quando Caixinha morreu fui procurar esse material aos arquivos. A minha ideia era transcrever os poemas para o papel e editá-los em livro. A bobine, tinha desaparecido ou fora desmagnetizada. 

Um dia andava com o Artur Neves no coração do Kassenda. Passámos à porta de um dancing onde eu e o Caixinha namorámos prostitutas gentis. Informei o mago do som que se tinha perdido a gravação com os poemas de Álvaro Novais. E ele desmentiu-me. Qual o quê! Eu tenho uma cópia. E não é que no seu arquivo encontrámos uma fita com a voz, a seco, de Álvaro Novais na pele de um negro gentio dizendo poemas de combate?

Álvaro Novais, numa noite qualquer, após uma chuvada que arrasou o capim e encheu os subúrbios de lagoas, saiu do botequim bêbado da cabeça aos pés. Cambaleante mas orientado chegou ao palácio assobradado que foi doce lar de Ilídio Machado, onde dormia por empréstimo. O espaço passou a albergar a Fundação Sagrada Esperança. Bom sítio para um poeta que nunca teve ninho. 

Alvarito, Caixinha, Álvaro Novais estendeu-se de borco na cama e nunca mais acordou. Desapareceu. Claude Jacques, companheiro da Gaby Antunes, foi procurá-lo no palácio de Ilídio Machado, sede da Fundação Sagrada Esperança. Espreitou para o compartimento do casarão onde ele dormia e teve um mau pressentimento. Avisou a Guinhas e o Pedro Jara, o Joca Luandense e o Lopo de Morais. O poeta não se mexe!

Naquele momento, morreram os seus belos poemas. Mas agora ele vai voltar à vida. Quando as vacas estiverem gordas e arranjarmos uns kumbus, o Artur Neves sonoriza os poemas e editamos um livro com um disco “cd” guardado numa bolsa marsupial, aberta no verso de capa. Sem o som do maior sonoplasta do mundo, a obra fica incompleta. 

Álvaro Novais, o poeta popular, vai sair do túmulo directamente para o fabuloso mundo multimédia. Está salvo o meu poeta da sucata. Isto se eu sobreviver à crise que estamos com ela. Cristo morreu, Marx também e eu próprio não estou a sentir-me nada bem. Eterno é Kropotkine e os seus ensinamentos para a conquista do pão nosso de cada dia.

*Jornalista

*Este texto foi escrito em 2015. Publico de novo porque Agostinho Neto, no ano do seu centenário, também foi atirado para a sucata. Num país onde o Agualusa é premiado e o Rafael Marques condecorado, ainda bem que puseram o Fundador da Nação Angolana fora desse sinédrio de canalhas. O meu mais profundo agradecimento ao Ministério da Cultura e à Presidência da República por terem ignorado Agostinho Neto no ano do primeiro centenário do seu nascimento. Bem-haja quem tal favor nos fez. Eternamente grato.

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