Carla Jimenez | The Intercept -Brasil
O governo do presidente Jair
Bolsonaro foi pródigo em publicar decretos, portarias e normas administrativas
que driblaram o Congresso e fizeram valer seus projetos radicais sem grandes
contestações. Foi assim com a portaria 62, de 2020, que revogou normas que
garantiam maior controle de rastreamento de armas e munições, ou, ainda, os
decretos de sigilos de 100 anos sobre informações pessoais do presidente. Foi
dessa forma, também, que Bolsonaro facilitou passar “a boiada” — como nomeou
Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente — na Amazônia, com a publicação de
mais de mil atos que facilitaram o desmatamento. Muitas bolas quadradas foram
rebatidas pelo Supremo Tribunal Federal. Mas foram centenas e centenas de atos,
muitos que passaram por baixo do radar do tribunal.
Em todas as áreas, contam-se amarras jurídicas ou burocráticas que o governo
multiplicou para facilitar seu projeto de poder. Do Itamaraty ao Ministério da
Saúde e ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, não
faltaram manobras para legislar em causa própria, tirando o Brasil do
alinhamento internacional de compromissos com direitos humanos e femininos.
Faltando duas semanas para o primeiro turno das eleições e, diante da possível
vitória de Lula, cresce a expectativa sobre como esse cipoal de normas deve ser
debelado caso Bolsonaro seja derrotado. No Congresso, por exemplo, já há um
debate sobre um potencial "revogaço" das portarias e atos de
Bolsonaro, como explicou à coluna a deputada Sâmia Bomfim, do PSOL de São
Paulo, caso haja uma bancada forte para limpar os escombros deste governo.
“Debatemos muito internamente no PSOL, e é parte da discussão na coligação [de
partidos de esquerda]”, disse a deputada, candidata à reeleição neste ano.
O ex-presidente Lula já garantiu também um revogaço dos sigilos de 100 anos de
Bolsonaro. Espera-se, ainda, um revés nas instituições que foram intimidadas
pelo bolsonarismo nas estruturas de poder. Isso vai da Funai e da Fundação
Palmares até a Procuradoria-Geral da República, além de todas as instituições e
ministérios que se pautaram pelo viés radical do bolsonarismo, fragilizando
direitos constitucionais de grupos mais vulneráveis.
A mudança dos ventos começa a aparecer em algumas nuances. A ministra Rosa Weber, que assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal na última segunda-feira, convidou três lideranças indígenas para a sua posse, uma atitude rara desde a redemocratização em 1988, segundo o Conselho Indigenista Missionário. Antes disso, só em 2018, quando o ministro Dias Toffoli convidou a Articulação dos Povos Indígenas ao assumir a presidência do STF.
Três dias depois da cerimônia de
posse de Weber, as mesmas lideranças se reuniram com a ministra para
falar sobre o julgamento do marco temporal, que pretende estabelecer a posse de
terras para indígenas que já viviam nelas da promulgação da Constituição de
1988 (5 de outubro daquele ano)
Tudo indica que servidores de ministérios só estão esperando a virada da
eleição para retomar o fio da meada abandonado em anos de combustão
bolsonarista. No ano passado, por exemplo, o servidor Luis Ricardo Miranda
procurou o irmão Luís Miranda, deputado federal do DEM, para expor uma situação
de assédio de seus superiores para a compra de uma vacina indiana, a Covaxin,
durante a pandemia de covid-
As pesquisas desta semana mostraram um quadro estável entre os dois candidatos
que lideram a corrida, com vantagem de 12 pontos porcentuais para Lula sobre o
presidente Jair Bolsonaro, segundo revelou o Datafolha na última quinta-feira.
À medida que os dias avançam, fica mais difícil apostar numa reviravolta desses
números.
Há, ainda, outros nós do governo Bolsonaro a serem desfeitos pela próxima
presidência. Um deles é a retomada do ato que previa a criação de conselhos com
a participação de representantes da sociedade civil para ajudar a tomar
decisões sobre políticas públicas. Esse ato foi revogado por Bolsonaro. Voltar
a fortalecer as estruturas do estado é um desafio que o país encara a partir de
outubro, caso a derrota do presidente se confirme. Não vai ser uma mudança do
dia para a noite, uma vez que o bolsonarismo trabalha para reforçar bancadas
conservadoras com o intuito de seguir com seus planos, ainda que longe dos
holofotes.
Assim como o direito viveu uma queda de braço entre a corrente garantista e a
punitivista — esta última tendo aparecido com a operação Lava Jato —, o Brasil
está prestes a assistir a outra disputa, entre os bolsonaristas e os
democratas, na acepção literal da palavra. Os anos de Bolsonaro no poder
produziram um estrago tão grande na gestão pública que o consenso entre quem
fica é a necessidade de reconstruir essas bases, para que a democracia pare de
sangrar. Se vitorioso, Lula precisará andar numa corda bamba para equilibrar as
expectativas de quem está dentro das instituições e para tourear o grupo que
deixará o poder e migrará para a trincheira da oposição.
Para o filósofo Marcos Nobre, que esteve no programa Contragolpe da última
quarta-feira, o Brasil tende a passar por uma ressaca que pode ser a guinada
definitiva para mudar a régua a que fomos submetidos pelo atual governo. “Assim
como o Brasil viveu o 'ditadura nunca mais', o Brasil pode viver o 'bolsonarismo nunca mais'”, disse Nobre. Ficou
célebre, durante a promulgação da Constituição, a frase de Ulysses Guimarães,
então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, sobre os anos de chumbo:
“Temos ódio e nojo da ditadura”.
Vamos ver o quanto o Brasil está pronto para dizer, em breve, que “temos ódio e
nojo dos anos Bolsonaro”.
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