sábado, 24 de setembro de 2022

Angola | UMA BRINCADEIRA DE MAU GOSTO – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O Jornal de Angola fez um excelente trabalho sobre o Centenário do Nascimento de Agostinho Neto. E enviou a Cabo Verde o revisor Rui Ramos, falso jornalista até ao dia em que Luísa Rogério lhe ofereceu uma carteira profissional. É um novato na profissão, por isso se compreende que o “enviado especial” se tenha limitado a escrever umas linhas sobre uma pensão no Mindelo onde a família Neto pernoitou. Entrevistou a um administrador hospitalar porque a unidade que administra se chama Agostinho Neto. E deu um salto ao Tarrafal onde o Fundador da Nação nunca esteve preso.

Aos leitores do Jornal de Angola deixo uma parte do livro JENNY A NOIVA DO VESTIDO AZUL (Memórias de Maria Eugénia Neto). Por mero acaso sou o autor:

“O ministro do Ultramar, Adriano Moreira, recebeu-a várias vezes. Jenny diz que ele foi sempre gentil e até preocupado com a situação. Sempre lhe garantiu que Neto seria libertado brevemente, era uma questão de dias, e depois ia ser colocado na Ilha de Santo Antão como delegado de saúde. Um dia informou que a partida estava para muito breve e deu-lhe cinco mil escudos para a viagem. Maria Eugénia não aceitou:

- Não posso aceitar dinheiro do regime que prendeu o meu marido!

Adriano Moreira olhou-a fixamente, muito sério, e respondeu:

- Aceite, o dinheiro que lhe dou. É meu, não é do regime, quero oferecê-lo ao seu filho!

E ela aceitou. O director da PIDE ficou zangado com Adriano Moreira por ele ter nomeado Neto para o cargo de delegado de saúde em Cabo Verde. Hoje Maria Eugénia recorda:

“Estou muito grata ao Professor Adriano Moreira, que na época era o ministro do Ultramar. Ele foi sempre muito gentil comigo e recebia-me ignorando o protocolo. Nunca marquei nenhuma audiência, eu aparecia e insistia que queria falar com o ministro, ele recebia-me. Acho que teve pena de mim, uma jovem com um bebé nos braços e o marido preso nas mãos da Pide…”

Esse dinheiro teve grande utilidade. Maria Eugénia recorda:

“Foi com ele que paguei o hotel, na Ilha do Sal. Estivemos lá vários dias, até chegar o avião que nos levou para o Mindelo e daí, tomámos o barco, para Santo Antão”.

A partida do casal para Cabo Verde, no aeroporto de Lisboa, foi emocionante. Dezenas de estudantes angolanos foram ao aeroporto despedir-se e só se ouvia o grito Neto! Neto Neto! Entre esses angolanos estava um jovem que mais tarde se distinguiu na direcção da UNITA: Jorge Valentim. Numa entrevista à Televisão Pública de Angola revelou um detalhe interessante: “O Jonas Savimbi foi dos que mais se distinguiu na mobilização dos estudantes angolanos para nos irmos despedir de Neto ao aeroporto, na sua partida para o exílio, em Cabo Verde. Mas depois não apareceu!”

O casal chegou a Santo Antão e Agostinho Neto assumiu logo as suas funções de delegado de Saúde, ao mesmo tempo que dava consultas aos doentes. Maria Eugénia recorda a chegada:

“Encontrámos gente muito simpática que nos manifestou carinho e amizade. Fomos alojados na casa destinada ao médico da ilha. Estava quase em ruínas e parecia uma lixeira. Foi preciso arranjar quase tudo. O meu marido era médico de 30 mil pessoas e tinha de dar assistência à leprosaria. Até fazia o papel de veterinário. Os donos dos animais, agradecidos, faziam-nos ofertas daquilo que produziam. Foi a primeira vez que tivemos alguma paz e pudemos dedicar-nos ao nosso filho, o Mário Jorge, ainda bebé. Consegui pôr a casa confortável, apesar das dificuldades. Na ilha viviam dois casais de funcionários públicos, portugueses, que se tornaram nossos amigos. A vila era apenas uma rua e existia uma loja. Comprei um pano nessa casa comercial e fiz dele uma toalha que bordei à mão. Um dia convidei os nossos amigos para um lanche, foi a minha primeira aventura na cozinha. O meu marido trabalhava de manhã à noite, via 90 doentes, diariamente. Fez um trabalho heroico com aquele povo, visitava os doentes nas aldeias. Fazia partos, apesar de não ser especialista. Um dia, uma mulher com 40 anos, no fim da gravidez, apareceu no posto médico, com complicações. Ele durante alguns dias estudou a melhor forma de fazer o parto. O bebé não queria nascer e a mãe já dava sinais de grande cansaço. Era preciso agir. Estavam em perigo duas vidas. O médico Agostinho Neto conseguiu um grande êxito. Quando veio a casa, perguntei-lhe: Vitória ou derrota? E ele, feliz como uma criança, respondeu calmamente: Vitória! Acabara de nascer um rapagão com mais de quatro quilos! Os pais deram ao menino o nome de Agostinho Neto.

Nesse dia foi uma festa. O povo dizia que ele tinha magia. Aquele tempo que passámos em Santo Antão foi importante para a formação humanística de Agostinho Neto e até para a sua poesia.

Maria Eugénia saiu de Santo Antão, grávida de oito meses. Foi para Portugal e lá nasceu a filha Irene:

“Ela nasceu a 23 de Julho e chegámos à Praia em 17 de Setembro, o dia do aniversário do meu marido. Atravessei o Oceano duas vezes, com duas crianças, sem a ajuda de ninguém. Na minha ausência, depois da despedida, Neto tentou fugir. Mas foi apanhado e enviado de castigo para a Cidade da Praia”.

Foi lá que Agostinho Neto conheceu a sua filha Irene e se deu o reencontro com Jenny: 

“Como era o dia do aniversário do meu marido, fizemos uma pequena festa. Já tinha começado a Grande Insurreição no Norte de Angola, eu levava uma fotografia com uma cabeça de um negro espetada num pau, exibida por militares portugueses. Tinha mostrado esse quadro de horror a algumas pessoas. A polícia soube e veio a meio da festa revistar tudo. A foto estava dentro de um envelope com outras fotos. O polícia fingiu que não viu, mas no dia seguinte vieram prender o meu marido.

Agostinho Neto foi colocado na Ilha da Boavista onde as condições eram bem piores do que em Santo Antão. "Ainda estava em Lisboa com os meus filhos e ele mandou-me uma carta, para que a minha mãe viajasse comigo e com as crianças para Cabo Verde, porque iria precisar de ajuda na nova morada. Cuidei dos meus filhos e do meu marido, ainda que as condições fossem sempre péssimas. Respondi a essa carta dizendo que a minha mãe tinha que ficar em Lisboa. O meu cunhado Loló (José Agostinho Neto) estava preso no Aljube, com Roberto de Almeida, que também é da nossa família. Disse ao meu marido numa carta: A minha mãe tem que ficar em Lisboa, porque os rapazes precisam dela, para não se sentirem tão isolados na prisão e terem alguém que lhes trate da roupa e leve tudo o que precisam à cadeia.”

O enviado especial do Jornal de Angola não foi ao hotel do Sal onde o casal esteve alojado vários dias. Mas foi a uma pensão do Mindelo onde passou uma noite. Faro de repórter! Não foi à Ilha de Santo Antão onde Neto fez medicina de alto nível, muitos meses. Jornalismo de camionista analfabeto de pai e mãe. Não foi à olha da Boavista para onde Neto foi castigado. Grande repórter! O oportunismo levado às últimas consequências e um atentado ao Jornalismo. Não desculpo esta punhalada no excelente suplemento que os esforçados técnicos do Jornal de Angola produziram.

*Jornalista

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