domingo, 20 de novembro de 2022

A MISÉRIA DA INFORMAÇÃO

Manuel Augusto Araújo | AbrilAbril | opinião

Um dos temas ultimamente em destaque são as eleições intercalares nos EUA, como se todo o mundo e ninguém estivesse dependente do seu resultado e como se fosse substancialmente decisivo os democratas suplantarem os republicanos ou vice-versa.

A comunicação social, a tradicional e a veiculada pelas redes sociais, é uma cloaca a céu aberto onde os poderes dominantes escoam a propaganda para condicionar a opinião pública. Quotidianamente alinham-se exemplos, tanto dos sucessos nacionais como internacionais, para não haver fissuras nem incertezas. Um dos temas ultimamente em destaque são as eleições intercalares nos EUA, como se todo o mundo e ninguém estivesse dependente do seu resultado e como se fosse substancialmente decisivo os democratas suplantarem os republicanos ou vice-versa, nunca se referindo que tanto uns como outros obedecem aos interesses conjunturais dos poderosos poderes económicos do complexo militar, financeiro e tecnológico que são quem de facto determina os vencedores.

Teresa de Sousa, uma das mais assanhadas jornalistas porta-voz em Portugal da «democracia» coca-cola do «mercado livre», anda a escrevinhar uns Diários de Houston no Público em que relata alguns episódios das lutas eleitorais em curso nos EUA, como se fossem cruciais para alterar o que é essencial e imutável nas políticas económicas neoliberais do «mercado livre», o tal em que as empresas podem cobrar o quiserem porque o governo se exonera de regular o que quer que seja.

Claro que não tem uma palavra sobre o «mercado livre» daquela «democracia» que põe em prática uma política económica de que os trabalhadores são excluídos, em que os seus direitos conquistados em anos de duras lutas se degradam cada vez mais. «Mercado livre» em que o governo se demite de intervir na economia, que desmantelou a regulamentação anti-monopólios e em que quem domina e traça os planos económicos é Wall Street, favorecendo os financeirizados grandes monopólios. Utilize-se como exemplo um desses textos em que escreve uma diatribe em louvor de Obama, que, segundo ela, entrou na campanha eleitoral em curso nos EUA para «exercer a sua magia» usando «as suas qualidades de oratória intactas». Qual a «magia» de Obama? A mesma com que obteve um prémio Nobel da Paz, para depois bombardear quatro vezes mais países que Bush Filho, o que invadiu o Iraque, e lançar seis vezes mais bombas.

A «magia» de Obama, que, com as suas «qualidades de retórica intactas», prometeu antes de ser eleito aumentar o salário mínimo e apoiar a sindicalização. Assim que se sentou na cadeira do poder, rapidamente anunciou que a única coisa que não podia fazer era aumentar o salário mínimo e que estimular a sindicalização era um mal para o «mercado livre» porque sindicalizar o trabalho iria incentivar os trabalhadores a reivindicarem melhores condições de trabalho e melhores salários. A «magia» da retórica de Obama focou-se em agradecer e apoiar os seus doadores, amplamente maioritários em Wall Street, quando a economia dos EUA já era sobretudo de capital fictício. Não perdeu tempo a reunir-se com os banqueiros de Wall Street para lhes garantir que não se deviam preocupar com os eleitores das classes desfavorecidas que nele tinham votado. Ele, Obama, estava ali para os meter na ordem. Ele, Obama, estava de caneta em punho na Sala Oval da Casa Branca para que a Reserva Federal germinasse a maior quantidade de crédito da história da humanidade, tudo a correr para os bolsos de uma minoria muito minoritária da população. Nada para a economia, nada para os salários, tudo para manter bem altos os valores dos títulos-lixo, tão altos que não pudessem cair e para que se gerasse o maior boom obrigacionista da história. Ele, o democrata Obama igual aos republicanos Bush, pai e filho, continuava a obra do democrata Clinton, que desarmou a lei anti-trusts de Sherman, 1890, e Clayton, 1914, que foram assertivamente postas em prática por Roosevelt para combater a Grande Depressão.

São esses dignos representantes da política sempre a favorecer o grande capital que esta escrevente aplaude a quatro mãos. É uma recruta da tropa peralvilha que subverteu o jornalismo da chamada comunidade internacional, onde se acoitam os antigos impérios coloniais, o actual império dos EUA e mais uns quantos colonizados que ainda não se libertaram dessas tutelas, para o transformarem numa farsa de propaganda ao serviço do imperialismo neoliberal.

Agora estão do lado dos democratas, de Biden e restante trupe onde também têm lugar destacados neocons republicanos, que continuam essas políticas económicas e financeiras que, até mais que as políticas pró-empresariais e pró-financeiras dos republicanos – ainda que polvilhadas com os perigosos arroubos proto-fascistas de Trump e seguidores –, estão a desmantelar todo um legado de protecção da economia, legado anti-monopolista e de contenção dos impactos da financeirização, posto em prática nos anos de New Deal. Não espanta, nem causa alguma admiração que nesta «democracia» de combates wrestling entre dois partidos, nos tempos actuais o Partido Democrata esteja, em políticas económicas e financeiras, à direita do Partido Republicano. Lá chegará o dia em que o Partido Republicano volte a estar à direita do Partido Democrata, tudo depende dos interesses económicos que lhes dão apoio variável. A cartilha das guerras, golpes de Estado, revoltas coloridas e outras técnicas de destabilizar é igualmente lida pelos dois partidos, são parte integrante de um arsenal explanado em 1992 no Defense Planning Guidance do neocon Paul Wolfowitz, documento em que se estabelece uma nova estratégia dos EUA após a desagregação da União Soviética, que tem sido aplicado, retocado e melhorado pelos seus seguidores republicanos e democratas, durante todos estes anos, e que é a raiz da doutrina de uma «nova ordem mundial sustentada e comandada pelos EUA» enquanto única superpotência que se predispõe a fazer alianças conjunturais conforme os conflitos, para que a sua hegemonia não seja posta em causa, pelo que deve contrariar e bloquear qualquer eventual competidor, nomeadamente «as nações industriais desenvolvidas». A União Europeia, particularmente a Alemanha, o seu motor, e o Japão que se cuidem! Aliás, a UE é singularmente referida: «ainda que os Estados Unidos apoiem o projecto de integração europeia, devemos estar atentos e prevenir a emergência de um sistema de segurança puramente europeu que mine a NATO e a sua estrutura de comando militar».

Para lá dos sucessos de muitas batalhas, a guerra em curso em que a Ucrânia é palco é bem ilustrativa desse desígnio. É o palco de uma guerra entre os EUA/NATO e a Rússia, em que os EUA defendem a ordem unipolar que impuseram depois da queda do Muro de Berlim e que aproveitam para enfraquecer mais rapidamente a Europa e a sua «nação industrial mais desenvolvida», pondo-a bem atrelada a reboque dos seus interesses. Os autocratas da EU, destaque para Ursula von der Leyen, Josep Borrell e Charles Michel, governantes de muitos países, realce para a fiel aliada Grã-Bretanha, Polónia e estados bálticos, são as suas destacadas marionetas. É  notável o autismo que conduz a UE, por arrasto toda a Europa, para a irrelevância económica, já que a política balança entre a subserviência indisfarçável e fracos arremedos logo metidos na ordem, para tudo desaguar na obediência servil aos ditames dos que estão dispostos a tudo para impedir qualquer alteração ao ordenamento neoliberal, sempre defendido com a faca nos dentes de uma política de guerra, como se tem estado a assistir desde há dezenas de anos e que agora subiu um patamar na guerra dos EUA/NATO por procuração na Ucrânia.

Um dos pilares deste estado de sítio é uma poderosa máquina de desinformação e propaganda que se apoderou praticamente da totalidade dos meios de informação na chamada comunidade internacional, rebuçada de independente, que, tal como as redes sociais, é propriedade de plutocratas internacionais e nacionais onde ecoam, com maior ou menor relevância, as notícias que, directa ou indirectamente, antecipam, justificam e sustentam as manobras do império, das mais brutais às mais brandas, das mais agressivas às mais diplomáticas. Esses exércitos de mercenários mascarados de jornalistas são os alcoviteiros de um universo dominado e controlado pelo 1% da humanidade que detém poder económico e financeiro igual aos outros 75%. Com esta desigualdade, a democracia é uma impossibilidade, por maiores que sejam os contorcionismos com que lantejoulam a liberdade, as liberdades. Nada é mais desigual que a igualdade entre desiguais e essa dura realidade é escamoteada pelo terrorismo informativo de que somos alvo. É uma campanha tóxica sistemática e diária promovida pelas oligarquias que controlam o universo através dos seus serventuários.

O desnudar desse estado de sítio tem sido feito por vários intelectuais e académicos, sendo justo destacar Noam Chomsky1, que colocam em causa as razões políticas e culturais dessa espiral crescente de desinformação e manipulação que corrói mesmo a esquerda, como ele denuncia: «Não me interessa escrever sobre a Fox News. É muito fácil. Prefiro falar dos intelectuais progressistas que se autodenominam corajosos que pretendem (ou acreditam) criticar o poder, defender a verdade e a justiça. São os guardiões da fé. Fixam os seus limites. Determinam até onde podem ir. Repetem "vejam como sou corajoso!" mas ninguém pode ultrapassar por um milímetro que seja o que dizem. Os mais instruídos entre eles são os mais implacáveis defensores do sistema.»

Um dos grandes trunfos dos oligarcas e dos plutocratas ao seu serviço é terem conseguido que mesmo as elites progressistas tenham entrado para os círculos do poder, deixando à porta quaisquer imperativos morais, como Edward Said denunciou2: «A meus olhos nada é mais repreensível que esta disposição de fugir, esta deserção tão característica de uma posição de difícil princípio que se pensa pertinentemente justa. Este medo de parecer muito político e reivindicativo, esta necessidade de se ser aprovado por quem detém o poder; este desejo de manter uma reputação de objectividade e de moderação com a esperança de ser solicitado, consultado e de se sentar num qualquer prestigioso comité, com o objectivo de se manter no meio das correntes dominantes e de receber em troca uns favores, um diploma, uma espórtula, uma embaixada.» Este é por excelência o modo corruptor dominante que neutraliza, desarma, mata qualquer vida intelectual, torna-se uma prática normalizada que é veiculada diariamente pela comunicação social estipendiada, seus funcionários e comentadores contratados. As excepções, sempre à beira do abismo, são cada vez mais raras.

Para as classes dominantes, para a economia neoliberal, para as multinacionais e fundos abutres a democracia é um eufemismo e a difusão intensiva das suas regras uma urgência que têm com bastante sucesso posto em prática.

Notas:

1. Leia-se Noam Chomsky, Propaganda e Opinião Pública, Campo da Comunicação, 2002; A Manipulação dos Media, Inquérito, 2003; Mídia, Propaganda Política e Manipulação, Martins Fontes, 2021.

2.  Edward Said, Des Intellectuels et du Pouvoir, Seuil, 1996, p. 116-117.

Imagem: Reprodução da colagem de John Heartfield, «How to make dollars» Créditos/ autor do artigo

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