segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Há algo a mudar na China enquanto a bola rola no Catar? (o adeus ao Bibota) - no Curto

João Pedro Barros, editor Online | Expresso (curto)

Bom dia,

Durante vários anos circularam teorias de que, com a crescente prosperidade, o povo chinês acabaria por exigir mais liberdade ao todo poderoso Partido Comunista. Em especial após a chegada de Xi Jinping ao poder, essas análises quase desapareceram. É muito provável que voltem a tornar-se mais populares após este fim de semana, em que protestos contra o Governo se espalharam por várias cidades da China e pelas redes sociais, apesar da máquina orwelliana montada pelo aparelho de Estado.

O combustível foi a morte de dez pessoas após um incêndio numbloco de apartamentos em Urumqi, na província chinesa de Xinjiang, alegadamente porque o socorro foi atrasado pela draconiana política “covid zero”, que Pequim continua a impor, quase três anos após o aparecimento do vírus.

Por enquanto, os “estragos” na aparente unidade chinesa ainda parecem reversíveis, provavelmente à força, mas é certo que se trata de um desafio completamente novo para o Presidente chinês, pouco mais de um mês depois de ter recebido carta branca para um inédito terceiro mandato, esmagando qualquer hipótese de dissidência com episódios como o da aparente saída à força do antecessor Hu Jintao do congresso realizado em Pequim.

Patrick Wintour, editor de diplomacia do “ Guardian”, apelida os protestos de “choque sísmico”. Esta madrugada, em Pequim, dois grupos de manifestantes, com cerca de 1000 pessoas, recusavam abandonar as ruas. Em Xangai, a polícia deteve duas pessoas. Se a política de “covid zero” parece ser o gatilho deste descontentamento, o grande receio para as autoridades chinesas é que ele alastre para outras temáticas. Palavras pouco comuns no léxico local, como “liberdade”, ou o pedido da saída de Xi Jinping e a queda do partido Comunista da China já se ouviram nas ruas da capital. Um jornalista da BBC foi "espancado e pontapeado pela polícia", antes de ser detido, em Xangai, ontem, enquanto cobria os protestos.

As restrições covid na China criaram uma espécie de chão comum para várias classes sociais se sentirem validadas a sair para a rua, analisa o “New York Times”: os trabalhadores migrantes enfrentam o desemprego e a fome, os estudantes universitários ficam retidos nos campus, os trabalhadores liberais e qualificados são impedidos de fazer viagens de negócios. O mundo está muito diferente, mas também foi isto que aconteceu em 1989 e terminou com o massacre de Tiananmen.

À hora de envio desta newsletter, nem o Governo nem os seus órgãos oficiais reagiram de forma clara, mas não é de esperar que Xi Jinping assista sentado a esta agitação interna, que pode enfraquecer a China no xadrez geopolítico. Curiosamente, uma das causas que deve estar a contribuir para este descontentamento é o evento que por estes dias faz parar o planeta: o Mundial de futebol. Como é que se explica que pessoas de todo o mundo, sem máscara, encham estádios no Médio Oriente, enquanto na China mal se pode transpor a soleira da porta?

Façamos então uma breve passagem pelo Catar, porque hoje Portugal até pode garantir um lugar nos oitavos de final, caso vença o Uruguai – o jogo é às 19h e passa na RTP 1 e na SportTV. Fernando Santos já garantiu que Pepe vai assumir o lugar do lesionado Danilo. No mesmo grupo H jogam Coreia do Sul e Gana (13h, Sport TV), enquanto no grupo G há um Camarões-Sérvia (10h, Sport TV) e um Brasil-Suíça (16h, TVI).

Nos jogos de ontem houve os seguintes resultados: Espanha-Alemanha (1-1) e Japão-Costa Rica (0-1), no grupo E, e Croácia-Canadá (4-1) e Bélgica-Marrocos (0-2), no grupo F. Após este último jogo, adeptos belgas e marroquinos confrontaram-se com a polícia nas ruas de Bruxelas.

OUTRAS NOTÍCIAS

Preços baixam – Combustíveis voltam hoje a ficar abaixo dos valores praticados antes da invasão da Ucrânia.

Marcelo – Presidente da República diz que sociedade portuguesa tem que de estar preparada para um futuro em "contigência" e alerta sobre pobreza: “Estávamos em 2021, na sequência da pandemia, pior do que em 2009”

ADSE – Eleições arrancam em clima de descontentamento dos beneficiários.

Regionalização – Referendo em 2024 perde força no PS, escreve o “Público”.

Espanha – Extrema-direita levou milhares à rua contra acordos com independentistas.

Guerra na Ucrânia – O Presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, aliado de longo data e incondicional de Vladimir Putin, disse em entrevista à CNN que a Ucrânia não deve apresentar precondições em negociações com a Rússia, pois isso não permite sequer o início das conversações. Zelensky avisa que as tropas russas estão a preparar novos ataques: "Enquanto tiverem mísseis, infelizmente não vão parar". Entretanto, a guerra tem sido um verdadeiro “laboratório” de testagem de novas armas, como pode ler neste artigo da Sofia Correia Baptista.

Adesão à NATO – Primeira-ministra da Finlândia lamenta atrasos na ratificação da entrada do seu país e da Suécia.

O triunfo de Rosalía – A cantora catalã atuou ontem à noite na Altice Arena e “conquistou os lisboetas”, escreve o Mário Rui Vieira.

O regresso de Morrissey – O primeiro single em três anos é “Rebels Without Applause”, que pode ouvir aqui. Novo álbum ainda não tem data de saída.

FRASES

Dizem que agora a luta voltou, como se alguma vez tivesse parado. Em que mundo andaram e vivem estes escribas? A luta parou? Que o digam os trabalhadores nas empresas e locais de trabalho
Paulo Raimundo, novo secretário-geral do PCP, que criticou ontem o Governo por “não permitir a fixação de preços do cabaz alimentar" e a imposição de limites nas rendas e nos despejos.

Em tudo o que enfrentámos nas últimas décadas, seja a gripe das aves ou o SARS original em 2002, mesmo quando não há nada a esconder, eles atuam de forma suspeita e não transparente
Anthony Fauci, epidemiologista chefe dos EUA, a abordar a estratégia do Governo chinês de combate à pandemia de covid-19

PODCASTS A NÃO PERDER

As sugestões da equipa multimédia do Expresso:

No Programa Cujo Nome Estamos Ilegalmente Impedidos de dizer, um pratinho cheio: Portugal está representado ao mais alto nível institucional no Campeonato do Mundo de futebol. Somos cada vez menos em Portugal e, para compensar, vamos ter de continuar a importar (e, ao que tudo indica, a explorar) mão de obra. Houve ainda espaço para o elogio da liberdade de expressão e uma referência a mais um aniversário do 25 de Novembro.

No Expresso da Manhã, Paulo Baldaia entrevista o general Arnaut Moreira e deixa uma questão: no inverno, com falta de armas, como se faz a guerra? A Rússia insiste em destruir as infraestruturas críticas da Ucrânia, mas já não tem muitos mísseis cruzeiro disponíveis.

No Leste Oeste, Nuno Rogeiro tenta responder à mesma questão e diz que a Rússia está a tentar bombardear os ucranianos “até à idade da pedra”. O comentador explica que "já não se fazem ataques contra alvos militares, industriais ou empresas, fazem-se, admitidamente pelo próprio Governo russo, contra as redes de energia. O que se aproxima de um crime de guerra, porque está em causa a sobrevivência da própria população".

O QUE EU ANDO A VER E A LER

– Oh pá, tenho uma coisa muito grave para te contar, António, até tenho medo…
– Então? Desembucha lá…
– Eh pá, vi a tua mulher na praia enrolada com o Manuel, o teu melhor amigo!
– Ai, que alívio! Pensei que me ias dizer que o Gomes não jogava no domingo!

Não sei exatamente qual a dose de mito e deverdade, mas contam-me que uma anedota mais ou menos parecida com esta circulava no Porto algures nos anos 80, quando Fernando Gomes arrasava as balizas adversárias e o FC Porto pós-Pedroto se erguia como potência nacional, a caminho da glória internacional de 1987, em Viena.

Marcar 420 golos em 611 jogos (contas do jornal “O Jogo”) é um absurdo. Fernando Mendes Soares Gomes, que morreu no sábado, aos 66 anos – e cuja carreira o Valdemar Cruz aqui tão bem sintetiza –, é o segundo melhor marcador de sempre do Campeonato Nacional, apenas atrás de Peyroteo, e foi por duas vezes melhor marcador da Europa (a tal Bota de Ouro). Passei os últimos dois dias a ver golos de Gomes no YouTube e redes sociais, sejam eles nos clubes ou na seleção: muitos foram obtidos em relvados lamacentos, em estádios cheios mas sem grandes condições, e tantas vezes registados por apenas uma câmara. Ainda assim, a elegância está quase sempre lá.

Há golos verdadeiramente espetaculares, como este, num jogo de título nacional. Ou decisivos, como este frente ao Dínamo de Kiev, no caminho para a lendária final de Viena, ou o primeiro golo da vitória na Taça Intercontinental, frente ao Peñarol (2-1), em dezembro de 1987. Muitos destes remates certeiros pareciam fáceis, fruto de um oportunismo que tem qualquer coisa de sobrenatural: como escreveu o ex-companheiro de equipa e treinador António Oliveira, Gomes “nasceu para descobrir zonas dentro da grande área”.

Também passei o fim da semana a ler entrevistas de e sobre Fernando Gomes, com uma conclusão óbvia: o Bibota tinha um nível cultural muito acima da média. Numa entrevista à Dragões, revista oficial do FC Porto, algures nos anos 80, confessava que Fernando Pessoa tinha passado a fazer parte da sua vida. A frase “marcar um golo é como ter um orgasmo”, que lhe é atribuída, é citada quase todos os dias. A entrevista que dá à RTP em fevereiro de 1989, assumindo o desentendimento com o então treinador-adjunto Octávio Machado (apelidado de “bufo”), é brutal na frontalidade com que assume o episódio que levaria à rutura com o seu clube de sempre, para depois rumar ao Sporting (infelizmente, já não encontrei o registo disponível na Internet). Está no entanto disponível esta participação no “Domingo Desportivo”, anunciando o fim da carreira com uma clareza que também já não se usava.

Entrevistei e falei muitas vezes com Fernando Gomes, porque partilhámos o mesmo tecto, o do Estádio do Dragão, como local de trabalho. Leio nestes dias de luto que não era vaidoso: vaidade talvez seja um adjetivo demasiado forte, mas era pelo menos intransigente em relação ao seu grande legado, o dos golos. Chateava-se quando havia algum engano no número que tinha feito ao longo da carreira, mas, caro Fernando, foram tantos… Como não nos poderíamos enganar? “A minha missão era marcar golos e eu marquei-os. Cumpri a minha missão”, declarou numa ocasião, e o que parecia aborrecê-lo era mesmo isto: como falhar na contagem quando cada um desses remates certeiros exigira tanto esforço, capacidade e aptidão natural?

Lembro-me de ter acompanhado uma equipa de reportagem de um canal alemão, salvo erro, que ficou muito admirada de saber que estava perante o melhor marcador de todos os tempos do FC Porto: com 1,75 metros de altura, não era propriamente o ponta de lança típico, aquilo era mesmo um dom. No trato era imaculado e ao longo da carreira não há registo de ter visto um único cartão vermelho. Sou demasiado novo para ter visto Gomes em campo, mas a anedota que contei no início parece-me bem exemplificativa de como povoou o imaginário de tanta gente que gosta de futebol durante anos a fio. Gomes merece estar no panteão do futebol português e não deve ter sido por acaso que do céu também caíram ontem lágrimas abundantes, durante o funeral do ex-jogador.

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