Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião
Um académico, o doutor Carlos Martins, defendeu esta semana, aqui no DN, que não se pode apelidar de fascistas os regimes de Salazar e Franco sem, na sua opinião, falhar ao rigor da definição de fascismo. Ele secunda, assim, uma opinião de outros académicos que têm vindo a insistir com essa redefinição.
Não é fácil discutir este tema porque, em primeiro lugar, ele não é exclusivamente histórico, não é académico, ele é, antes de mais nada, político e a conclusão, para um lado ou para o outro, da definição académica do fascismo ou do não-fascismo de Salazar tem um efeito político muito concreto no Portugal do presente.
Se a sociedade atual aceitar que o regime do Estado Novo era fascista, está apenas a confirmar a definição que lhe deram inúmeras pessoas que viveram esses tempos, nomeadamente as vítimas da ditadura salazarista: os mais de 30 mil presos políticos, os cerca de 200 assassinados por motivação política, os presos e mortos do campo de concentração do Tarrafal, os milhares de torturados em interrogatório, os vários políticos de vários quadrantes que tentaram a oposição à ditadura, os que nas colónias lutaram pela independência dos seus países, os soldados que foram fazer a guerra colonial e inúmeros cidadãos anónimos, ainda vivos, que se lembram bem do que aquilo era.
Como é que se pode, a quem sofreu as consequências da violência política de Salazar, a quem se mobilizou e mobilizou outros para combater o fascismo português (ou a quem, mesmo sem nada ter feito por isso, acabou também por ser vítima da arbitrariedade do regime), explicar agora que, afinal, não foi contra o fascismo que lutaram, não foi o fascismo que os oprimiu, foi apenas um "um regime católico-conservador autoritário", como esta corrente académica lhe pretende chamar?
E aos filhos dessas pessoas (muitos deles privados, durante anos, de contacto com os progenitores), aos netos, aos familiares dessas vítimas? Quem tem coragem para lhes dizer que não, o fascismo português que vitimou os seus ascendentes e que marcou indelevelmente as suas histórias familiares e pessoais, afinal não existiu...?
O efeito político da negação do fascismo português terá, para estas pessoas, a consequência da descredibilização e denegação da própria democracia portuguesa, cujo nascimento partiu de um assumido golpe contra o fascismo - como logo no dia 25 de Abril de 1974 foi gritado entusiasmadamente por uma multidão nas ruas de Lisboa.
Em contrapartida, a negação do fascismo português encherá de alegria quem atualmente procura modificar ou, mesmo, liquidar a democracia nascida em 1974 e encontrará aí um instrumento precioso, com um embrulho académico, para, do lado populista de direita, pôr em causa o atual funcionamento das instituições democráticas e, do lado da direita liberal, para diminuir o, ainda, pendor esquerdista da Constituição e, em alguns casos, enevoar cumplicidades pessoais ou familiares com a ditadura que ainda podem ensombrar o presente democrático.
Mesmo do ponto de vista estritamente académico, o raciocínio dos que defendem a tese de que não houve fascismo nas ditaduras de Portugal e Espanha parte de uma comparação direta, em espelho, com o fascismo de Mussolini e o nazismo de Hitler. É uma base de raciocínio que me parece profundamente errada.
Se formos, por exemplo, comparar as várias democracias existentes no mundo, dos Estados Unidos à Suécia, da Inglaterra à Índia, do Brasil a Portugal, da França à Alemanha, encontramos inúmeras diferenças na forma como elas foram erguidas, na forma como as suas instituições funcionam, na forma como o Estado lida com a oposição política, na forma como os partidos funcionam, na forma como a autoridade é exercida... Se pode haver tantas diferenças entre tantos regimes democráticos - e o mundo académico aceita isso sem discussão - porque é que os fascismos todos que existiram, para o serem, têm de replicar exatamente os modelos de Mussolini e Hitler?
Vou ter de voltar ao tema, que o espaço me está a faltar, mas deixo esta pergunta: A eugenia social dos nazis não diferencia mais Hitler de Mussolini do que a alegada falta de radicalidade de Salazar, se comparada com a de Mussolini, o fundador do fascismo? E então? Hitler, tal como dizem sobre Salazar, afinal não era fascista? O nazismo não é uma forma diferente do fascismo italiano?
*Jornalista
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