"... se formos olhar de uma maneira verdadeiramente independente e objetiva para a aplicação de direito internacional penal, então George W. Bush também estaria a ser levado à justiça do Tribunal, Gordon Brown e Tony Blair, devido à invasão do Iraque. E mesmo Portugal (Durão Barroso), que colaborou com a invasão do Iraque. Aqueles que deram a permissão ao uso da Base das Lajes."
Trabalha em Nuremberga, ao
lado da sala 600, onde em 1946 se sentaram os nazis em julgamento. Mestre
em Direito Penal Internacional pela Universidade de Londres, Anabela Alves participou
no julgamento de Slobodan
Milosevic, conhece em detalhe os meandros da investigação e da prova e
assegura que ninguém é intocável no direito internacional penal. Acredita que
em breve haverá detenções pelos crimes cometidos na Ucrânia e
lamenta o facto de ser por culpa dos países ocidentais que não se vai mais
longe na aplicação do crime de agressão.
ENTREVISTA
Perante as imagens de horror que
chegam de localidades como Bucha, continua a haver
vozes que duvidam e falam em
encenação. São dúvidas legítimas?
Claramente não são dúvidas
nenhumas nem há legitimidade. Não é só Bucha, mas também Borodyanka e Sebastopol e
tantas outras cidades que estão a ser sujeitas a esta guerra de agressão, de
crimes contra a humanidade. Temos de esperar pela investigação do procurador Karim Khan, que
decorre desde março, para percebermos se vai ter matéria suficiente para provar
que há um plano para eliminar o povo ucraniano, o que levaria ao crime de
genocídio.
No seu caso, já disse não ter
dúvidas de que Vladimir Putin é
responsável por crimes contra a humanidade. Será fácil, ainda assim, fazer
prova do seu envolvimento e da sua responsabilidade?
Sim, claro que sim. Aliás, o
procurador Karim Khan tem uma página no Tribunal
Penal Internacional (TPI)
dedicada à situação e a própria Ucrânia já tinha pedido em 2014 ao tribunal
para investigar. Foi quando a Ucrânia reconheceu a jurisdição do
tribunal devido à invasão em Donetsk, Lugansk e à
ocupação e anexação da Crimeia. O procurador
fez uma declaração de que tinha matéria suficiente, indícios de prova para
continuar a investigação por estarem a ocorrer crimes hediondos.
Tem contactos com o procurador ou
autoridades no terreno, relatos diretos do que se passa na Ucrânia?
Não tenho qualquer contacto com o
meu colega. O que sei é o que passa pelas notícias, relatórios da ONU e atualizações do
procurador. Estou em contacto com pessoas que são testemunhas no terreno. Não
só estão sempre a disparar e executar civis, a fazer tiro ao alvo de tal forma
que até se divertem com civis, a violar crianças, quem lhes apetece, a pôr explosivos
nos corredores humanitários para causarem o máximo de danos. Além disso nos
"Russian Forces Checkpoints" estão a tirar pessoas dos autocarros e
enviá-las para Rostov,
na Rússia. Vão
desaparecer, ser violadas e executadas. Há provas mas não podemos estar
emotivos, nem entrar em histeria, mas também não podemos cair na negação. Como
advogada de direito internacional, o meu trabalho sempre foi focar nos factos,
provas e leis.
As mulheres e as crianças estão
particularmente vulneráveis neste conflito? Ou essa é uma marca comum a todas
as guerras?
Infelizmente, sim. As mulheres,
homens e crianças, mas mais as mulheres e meninas, são vítimas de violência
sexual e violação. É um "déjà vu" do que se passou na Bósnia, o facto de
carbonizarem os corpos com o objetivo de tentar eliminar provas e identidades
dos civis para depois tentarem fazer discursos vazios de que tudo é fabricação.
Não é! Temos o Tribunal
Internacional de Justiça que já confirmou que não é fabricação. Não
podemos negar aquilo que está à nossa frente. O pior de uma guerra não é o que
os nazis estavam a fazer, mas que outros países virassem a cara, ignorassem os
crimes que estavam a ser cometidos, o que levou ao Holocausto.
Aconteceu o mesmo na Bósnia, no Ruanda...
Quando há um conflito ainda em
curso, como se processa a investigação? Que mecanismos estão a ser canalizados
para a recolha de prova?
O procurador Karim
Khan enviou logo equipas para o terreno. Neste momento, são 41. Houve um
pedido de vários países para dar autorização ao procurador e avançar com a
investigação. Estes países estão agora a colaborar todos em conjunto, com
diferentes forças especiais, desde forças de serviços secretos a forças
militares especiais. Há também a Joint
Investigation Team, que foi criada com o apoio do Eurojust e está
no terreno com o apoio de 31 países, que no dia 2 se reuniram em Haia. Portanto, temos
apoios de perícia forense, jurídica, militar, polícia, investigadores,
intérpretes. Há várias equipas no terreno a tentar aceder àqueles que estão a
cometer os crimes, a aceder às vítimas. Há uma importância que tem de ser dada
às vítimas e às testemunhas para as proteger. Assegurar que os corpos que foram
executados, que estão em valas comuns, têm um processo imediato de recolha
forense, para fazer vários registos, desde identidade ao modo como foram
torturados e como foram executados. E depois há aquela parte de inteligência,
de interceção de comunicação entre aqueles que estão a planear este aparente
genocídio, que estão a dar as ordens e que estão a executar. Há um trabalho
muito sério e muito pesado pela frente, que está a ser levado a cabo desde o
princípio de março.
São recursos suficientes para
evitar que haja riscos das armadilhas criadas pela circulação de tanta
informação e contrainformação? Como avalia os riscos de as armas de propaganda
poderem levar a precipitação nos juízos?
O importante neste tipo de
situação é manter a independência, a objetividade e a imparcialidade. A
investigação está a ser levada a cabo independentemente de posições políticas.
O procurador Karim Khan e as suas equipas investigam os crimes
cometidos por qualquer parte neste conflito. Ainda não vi ninguém que apanhasse
este detalhe: estão a ser investigados os crimes desde 21 de novembro de 2013.
Antes da anexação da Crimeia?
Ocupação e anexação da Crimeia.
Porque é que recua a esse tempo?
A Ucrânia e
a Rússia não são partes do Estatuto de Roma, por isso as pessoas não
estão a apanhar e estão a repetir que a Ucrânia não está dentro de
jurisdição. Está, porque a Ucrânia fez um pedido ao abrigo do artigo 12 a reconhecer de maneira ad
hoc, temporária, a jurisdição. E o que é que isto significa? Significa que para
todos os efeitos, jurídicos e práticos, a Ucrânia está dentro da alçada
do Tribunal Penal Internacional. E qualquer crime, qualquer indivíduo,
qualquer nacionalidade, está a ser investigado. O presidente ucraniano também
está a submeter as suas tropas e os seus cidadãos à jurisdição, a ser
investigado.
É possível ter uma expectativa
sobre quanto tempo poderá demorar um processo destes até conseguir formalizar
acusações?
Pela análise que já fiz dos
updates que o Karim
Khan está a fazer publicamente (é uma pessoa extremamente objetiva,
extremamente profissional e independente no seu trabalho), já têm muita prova
para avançar. Claramente, no momento em que têm provas, testemunhas e que
identificam os indivíduos, que já há lista com os nomes do batalhão que esteve
em Bucha, é só emitir um mandado de captura.
Isso quer dizer que vamos ter,
muito em breve, acusações contra pessoas em concreto?
Sim, penso que sim.
O que as pessoas dizem é que a
alçada do tribunal nunca chegará a uma personagem como Vladimir Putin.
Como é que se processa nesses casos? Há mandados internacionais?
Sim. A qualquer momento detêm
qualquer indivíduo que esteja nas listas que já estão nas mãos do Karim
Khan. Já ouvi em algumas televisões portuguesas comentadores
a dizer que ele é presidente da Rússia, é intocável, é imune. Quando ouço este
tipo de comentários, digo: "Esta pessoa, que está a comentar para a nação
inteira em Portugal,
que é uma responsabilidade muito grande fazer comentários assim, nunca leu o Estatuto de
Roma". O artigo 27 é muito claro até no título: "Irrelevance of
official capacity". É irrelevante a capacidade oficial do indivíduo.
Portanto, para o Tribunal Penal Internacional, é para julgar a
criminalidade individual de indivíduos que são os mais altos responsáveis. E,
aliás, não há imunidade para este tipo de crimes, porque senão também não
tínhamos tido figuras de Hitler no banco
aqui ao lado, na sala 600, em 1946. Os princípios de Nuremberga que nós
avocamos aqui na Academia são isso mesmo: responsabilidade individual do
indivíduo e não há imunidade para chefes de Estado. Portanto, haverá um mandado
de captura para Putin.
E não é só ele. São outros a muito alto nível que pensam que, por estarem
associados ao Putin, são intocáveis. Ninguém é intocável no direito
internacional penal.
Mesmo que, como disse,
a Rússia não tenha ratificado o Tratado de Roma?
Não. Não tem nada a ver.
A Rússia não assinou nem ratificou o Tratado de Roma, mas
a Ucrânia fez, por duas vezes, em 2014, um reconhecimento da
jurisdição do Tribunal Penal Internacional, o que significa que qualquer
ato de agressão ou qualquer crime que é cometido no solo da Ucrânia é
considerado como parte da jurisdição. O tribunal poderá investigar e fazer o
julgamento. Porque é cometido no solo da Ucrânia, contra cidadãos da
Ucrânia, que estão protegidos por este tratado.
Como justifica a não participação
dos Estados
Unidos no Tribunal Penal Internacional, juntamente com países
como a China, o Iémen, o Iraque ou a Líbia?
As intervenções que os Estados
Unidos levaram a cabo no Iraque, na Síria, no Afeganistão, a
que eles chamavam "intervenções humanitárias", no fundo foram
agressões. Invadiram a soberania de um Estado e cometeram crimes também gravíssimos.
Logicamente, não queriam estar dentro da alçada [do tribunal] para serem
responsáveis perante os crimes que foram cometidos pelas tropas americanas.
Cada país tem a obrigação de julgar este tipo de crimes, que são crimes
universais, contra a humanidade. Portanto, não há limitação no tempo e não há
limitação jurídica, porque são crimes universais que todos os estados são
responsáveis por julgar a nível nacional.
Que crimes estão em causa
na Ucrânia, de acordo com o que está previsto na lei?
Aquilo que está estipulado na lei
é o crime 6, que é o crime de genocídio, o crime contra a humanidade, que é o
artigo 7, e o artigo 8, crimes de guerra. Mas há muita discussão agora de que
a Rússia também devia ser julgada pelo crime de agressão.
E isso não está incluído nesta
altura?
Não está incluído porquê? Porque
os Estados Unidos, o Canadá, a França, o Reino Unido, o Japão, nas negociações em Kampala, em 2010,
quando o Tratado de Roma foi aberto para revisão, limitaram a definição de
agressão e limitaram a aplicação do crime de agressão. Limitaram ao ponto de
dizerem que só é aceite o crime de agressão se for cometido dentro do
território de um Estado parte daquele tratado, por nacionais de um Estado parte
ou se o Conselho de
Segurança assim o decidir através de uma resolução. É claro que, com
estas três restrições, nunca se vai apanhar a Rússia, porque
a Rússia tem um lugar permanente no Conselho de Segurança,
portanto vai votar. E foram os países do Este que limitaram a definição do
crime de agressão e que agora estão a evocar nos seus discursos que isto é um
crime de agressão. É pena terem criado estas restrições a si próprios e à justiça
internacional penal, porque agora a Rússia vai escapar por este
crime. Pode é ser julgada a nível nacional, porque qualquer país tem a
obrigação de investigar o crime de agressão. Pode ser julgado a nível nacional
pela Ucrânia, por exemplo. Mas não pelo Tribunal Penal.
Esta pode ser uma oportunidade
para se rever esse ponto concreto do Tratado? Acredita que este caso nos está a
demonstrar as limitações que ainda temos do ponto de vista jurídico?
As limitações no tratado foram
impostas pelo bloco de países ocidentais. É uma ironia... Agora tem de se
esperar para uma próxima oportunidade para fazer a revisão do Tratado de
Roma, mas os humores dos estados variam dependendo da situação política e
socioeconómica.
Um país que seja membro
permanente de segurança das Nações Unidas pode
invadir um país, cometer os maiores crimes e continuar a vedar qualquer tipo de
ação das Nações Unidas. Na prática, ser membro permanente do Conselho
de Segurança dá carta branca para tudo?
Sim, na prática é isso, porque se
formos olhar de uma maneira verdadeiramente independente e objetiva para a
aplicação de direito internacional penal, então George W. Bush também
estaria a ser levado à justiça do Tribunal, Gordon Brown e Tony Blair,
devido à invasão do Iraque. E mesmo Portugal, que colaborou com a invasão do
Iraque. Aqueles que deram a permissão ao uso da Base das Lajes.
Está a falar de Durão Barroso,
por exemplo?
Sim, por exemplo, por isso há
críticas de que a justiça não é igual para todos, que a reação a invasões não é
igual, dependendo do Estado que está a cometer a agressão e do Estado que está
a cometer os crimes. Mas o que choca neste momento é que tem havido uma
tentativa de estabelecer a paz, acabar com essa hostilidade que não é
justificada. E a Rússia simplesmente recusa-se e não tem justificação
nenhuma para esta chacina dos civis na Ucrânia.
Esta semana, assistimos à
suspensão da Rússia do Conselho
de Direito Humanos da ONU. Considera que esta suspensão tem algum
valor para além do meramente simbólico?
Penso que era importante
suspender a Rússia, suspender mas não retirar, porque quanto mais
a Rússia for colocada em isolamento menos poder e influência terá,
porque não se podem fazer discursos como fez a Síria, que colaborou
completamente com a Rússia. O que a Rússia fez em Aleppo fez agora
em Mariupol.
Só não sabemos tanto do que se
passou, porque não é tão próximo...
Se a Síria estivesse aqui ao
lado, teríamos uma Europa em crise porque não haveria tanta energia e tanta
possibilidade financeira de dar apoio a tantas guerras que estão a ocorrer em simultâneo. A Síria
ainda não acabou. Agora, ouviu-se a Síria dizer que os estados têm que
respeitar a política independente levada a cabo pela Rússia. Isto não é
uma política independente, isto é uma guerra e é uma chacina de civis. Estão a
cometer crimes gravíssimos contra pessoas inocentes. Tínhamos também a Coreia a falar dos
direitos humanos, que é um bocadinho cínico demais. Fiquei surpreendida com o
Irão, que pediu a cessação das hostilidades contra o povo e os corredores
humanitários, mas de qualquer modo votou contra. O Senegal absteve-se,
outros países abstiveram-se, foi um número enormíssimo.
Apesar de a importância
do Tribunal Penal Internacional ser amplamente reconhecida, há a
perceção de que tem dificuldade em mostrar eficácia. Compreende esta perceção?
Sim, sim. Mas por isso mesmo é
que as pessoas têm que compreender que o Tribunal Penal
Internacional não tem prioridade na investigação. A primeira
responsabilidade cabe aos 123 estados. O TPI tem o princípio da
complementaridade, é suposto complementar os sistemas nacionais. Eles é que
devem investigar esse tipo de crimes e assegurar que indivíduos que cometeram
crimes gravíssimos são detidos no seu território e são levados à justiça, são
julgados e que recebem uma sentença sobre esses crimes.
Alguns países podem ir mais longe
na responsabilização? Falo no exemplo de França. Esta semana, a Procuradoria
Nacional Antiterrorista anunciou a abertura de mais três inquéritos,
envolvendo alegados crimes de guerra cometidos sobre cidadãos franceses. São estes
processos Estado a Estado que podem contribuir para maior eficácia na
responsabilização de criminosos de guerra?
Sim, temos a França, a Suíça,
temos a Suécia, temos a Alemanha que está extremamente ativa. Estou a organizar
um treino em agosto, um dos tópicos é como ajudar juízes, magistrados e
procuradores em processos sobre crimes internacionais. Tentei identificar, a
nível nacional, quais são os países que estão mais ativos nesta área. Aliás,
assinar e ratificar o Tratado de Roma o que é que significa?
Significa que cada país tem obrigação de criar uma Unidade Especial para Crimes
de Guerra, dentro do seu sistema nacional de justiça. O Tribunal Penal
Internacional ainda não conseguiu provar que está com grande sucesso
porquê? São processos longos, complicados, dependendo do acesso às testemunhas.
Se as vítimas são identificadas e não são imediatamente protegidas e assegurada
a segurança delas e das suas famílias, não há caso. É por isso que o Karim
Khan foi imediatamente para o terreno no dia 2 de março, com as suas
equipas, porque eles sabem da importância de salvaguardar a prova.
E essa salvaguarda está a ser
feita, mesmo com riscos para as pessoas?
As pessoas que estão a gravar e a
manter os registos dos crimes pelos quais são testemunhas estão em perigo. Por isso mesmo
é que também o International
Bar Association criou uma aplicação, que é a "eyeWitness to
atrocities", que guarda e não vai permitir que a fotografia, o vídeo ou o
áudio seja alterado. Regista a geolocalização e hora, tudo o que é preciso para
que a prova seja legítima em
tribunal. Vai salvaguardar a informação toda no caso de a
vítima ser apanhada com o telemóvel, ou de o telemóvel ser destruído. Esta
informação é imediatamente registada e entra no gabinete do procurador. É
extremamente importante para guardar a prova e proteger as testemunhas.
Domingos de Andrade (TSF) e Inês Cardoso (JN) - 10 Abril, 2022 - 09:00