Fernanda Câncio* | Diário de Notícias | opinião
"É salutar as instituições anteciparem-se no apuramento da verdade e na transparência", diz Marcelo sobre a Igreja Católica. Muito bem dito. Mas que fizeram as instituições judiciais e políticas, que têm a obrigação de zelar pela justiça e pela paz social, para antecipar esse apuramento? Que fez o Presidente?
“É um erro não perceber que para a sociedade como um todo, para as instituições, o que é salutar, o que é bom, é anteciparem-se no apuramento da verdade, na transparência. Isso é o que dá vida às instituições. Se o não fizerem vão apodrecendo e morrendo pensando que estão vivas. A vida supõe antecipar o que é inevitável."
Estas palavras do Presidente da República, esta sexta-feira, em direto nas TV, estão todas certas.
Sucede que se seguem às declarações todas erradas do dia anterior. Nestas, Marcelo, a propósito da revelação de que quer o já desaparecido José Policarpo quer o seu sucessor, o atual cardeal patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, tinham tido conhecimento de uma denúncia de abuso sexual e não a tinham comunicado às autoridades judiciais, resolveu fazer uma espécie de testemunho abonatório dos dois bispos: "Não vejo em nenhum deles uma razão para considerar que pudessem ter querido ocultar da justiça a prática de um crime. É a opinião que eu tenho, pessoal. Do conhecimento de muitos anos."
Já foi suficientemente frisado por muita gente o quão inaceitável é que o Presidente da República decida, a pretexto de "uma opinião pessoal", e falando necessariamente na sua qualidade de católico, fazer protestos de inocência num assunto destes, e quando se sabe que o modus operandi comprovado da hierarquia eclesiástica nesta matéria é o silenciamento e o encobrimento, pelo qual aliás já houve cardeais condenados nos países em que esse tipo de processo é possível.
Aliás, como Marcelo está farto de saber, o conhecimento sobre o caráter endémico do abuso sexual de crianças e jovens por membros do clero católico, e sobre a forma como a hierarquia mundial da Igreja Católica protegeu e encobriu os perpetradores, propiciando a continuação dos crimes e revitimizando as vítimas, não lhes dando crédito nem o consolo de um pedido de perdão, tem pelo menos duas décadas.