Uma onda de greves, protestos e
lutas no Reino Unido veio pôr a nu o que separa os trabalhadores de um partido
tomado pelo neoliberalismo como o Labour.
Raquel Ribeiro | AbrilAbril |
opinião
muito que o Labour não é o
partido dos trabalhadores britânicos. É verdade que a direita (lá como cá)
continua a idolatrar saudosamente as máximas de Margaret Thatcher de que «não
há alternativa» ao sistema capitalista. Para a discussão que nos importa, e que
não comece necessariamente com as sucessivas traições do Labour aos
trabalhadores desde tempos remotos, podemos afirmar com segurança que, desde o
governo de Tony Blair, é no mínimo irónico chamar Trabalhista a um partido que,
chegado ao poder em 1997 nos escombros do Thatcherismo, que levou à
fragilização da esquerda britânica e à fragmentação do movimento sindical, já
não tinha nada a perder em adoptar o neoliberalismo «com rosto humano».
Com a criação do New Labour,
Blair montou ardilosamente uma Terceira Via (cruxis) para os trabalhadores: com
a paulatina privatização de serviços públicos1 e
desmantelamento do Estado Social, a acumulação de riqueza dos mais poderosos, o
embrião das parcerias público-privadas, o mercado «evangelizado» dos
empreendedores, a demonização da classe trabalhadora (os «chavs»), a
diabolização dos funcionários públicos tornados precários e subcontratados. Uma
(terceira) via enfim aberta, aproveitada a toda a velocidade pelos governos
conservadores que lhe seguiram, desde 2010. Como dizia Peter Mandelson,
político, barão e Lord (estas coisas no Reino Unido nunca se excluem),
braço direito e «spin doctor» de Blair (e de Gordon Brown) nos seus governos
trabalhistas: «Estamos imensamente relaxados se as pessoas se tornarem
absurdamente ricas, desde que paguem os seus impostos.»
Os ricos tornaram-se absurdamente
ricos. A classe média, entrincheirada no elevador social e nas suas ilusões de
classe (aquelas férias anuais, ou até uma segunda casa, no Algarve ou na Costa
del Sol, com as recém-criadas companhias aéreas low-cost), deixou para
trás a classe trabalhadora nas cinturas urbanas das cidades pós-industriais e
no rescaldo do desmantelamento de grande parte do sector produtivo do Reino
Unido. Mas eram os anos 90: a «história» tinha finalmente «acabado», e o
crescimento económico, a integração europeia «plena» e prosperidade eram uma
larga autoestrada rumo à aparente «conciliação» das classes.
Para os portugueses, este retrato
não é muito diferente do que aconteceu no nosso País com os governos do PS,
pelo menos desde António Guterres (que era, aliás, fã de Anthony Giddens, pai
da «terceira via»), com a gradual «direitização» do Partido Socialista até à
intervenção da troika, e as subsequentes opções de classe – dominante – que o
PS continua a ter, mais e mais próximo do capital, cada vez mais distante dos
trabalhadores, de que aliás esta maioria absoluta está a ser a todos os títulos
exemplar.
Não foi por acaso que, já no
século XIX, Marx e Engels usaram o Reino Unido como laboratório da sua análise
do capital. Ontem (século XIX), como no final dos anos 90 e, novamente, hoje,
as Ilhas Britânicas continuam a ser, pelo menos na Europa, palco privilegiado
das tensões entre trabalhadores e capital: entre acumulação da riqueza e a sua
desigual distribuição, caldinho de oligarquias no poder económico, financeiro e
político, mas também mobilizadora dos movimentos sindicais, comunistas ou
trabalhistas, de resistência da classe trabalhadora, e na luta por muitas
conquistas que (ainda) hoje são nossas – do direito à greve, à jornada de
trabalho.
No rescaldo da derrota do Labour
em 2010 e da sua completa desorganização (apenas interrompida pelo curto
mandato de Jeremy Corbyn, aniquilado pela campanha mediática dos «moderados de
esquerda» levada a cabo pelo The Guardian2, por ser demasiado
«militante» e «radical»); de uma série alterações à lei eleitoral (que
favoreceram e continuarão a favorecer o partido Conservador); após três PM
dos Tories (David Cameron, Theresa May, Boris Johnson), a caminho do
quarto (só em Setembro saberemos quem); após a caótica posta em prática do
Brexit – o Reino Unido continua a ser o espaço por excelência das mais modernas
«experimentações» do capital.
Trabalho escravo de apanhadores
de fruta e simultânea criminalização da imigração, importação de mão-de-obra
para o SNS (enfermeiros e médicos) sem reforço de investimento na formação
nacional e progressão nas carreiras, sub-orçamentação e investimento em PPP,
progressiva privatização do SNS (recentemente, com a entrada de seguradoras e
farmacêuticas norte-americanas no negócio da Saúde); neoliberalização do Ensino
Superior e subida exponencial de propinas; privatização dos Correios (Royal
Mail) e das empresas ainda públicas de energia (água, gás, electricidade);
privatizações ou concessões de PPP nos transportes públicos (o que restava da
aviação pública, mais linhas de comboio, companhias ferroviárias, transportes
urbanos), subfinanciamento e subcontratações a privados em todos os serviços
públicos (do SEF à recolha do lixo à cobrança de impostos).
Colhendo os frutos dos alicerces
lançados pelo neoliberalismo de Margaret Thatcher, que o Labour de Tony Blair
tão bem aproveitou para alimentar a sua rede de poder, privilégios e amigos, os
Tories da última década só tiveram de assinar de cruz o processo de destruição
em curso do que resta do Estado Social britânico.
A pandemia, acelerando a
concentração de capital e a destruição de milhares de postos de trabalho, a par
do Brexit, da guerra na Ucrânia e da hiper-inflação, pôs a nu mais do que nunca
a necessidade de organização dos trabalhadores. Este «Verão quente do descontentamento»
no Reino Unido com greves, lutas e paralisações em sectores estratégicos como a
ferrovia, transportes urbanos, correios, bombeiros, tribunais e, a preparar-se
no Outono, professores e o SNS, está a mostrar que, ao contrário do que nos disseram,
o movimento sindical britânico não está, de facto, morto e até parece ter uma
força que não se via em
anos. Mas está sozinho, porque o Labour o abandonou.