domingo, 29 de janeiro de 2023

REPÓRTER COM SORTE E OS BONS AMIGOS – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Repórter com sorte sou eu. Um dia fui ao Longonjo reportar exorcismos do senhor padre da vila. O homem era o terror de diabos, diabinhos e diabretes que se instalavam na alma de pessoas simples, humildes, crédulas e com algum poder financeiro porque cada exorcismo custava os olhos da cara. A sua “médium”, uma senhora gorda, com as banhas ondulando sempre que dava um passo, entrou na igreja farejando almas danadas. Parou junto de mim e do repórter fotográfico, estremeceu, apontou para nós e desatou aos gritos: Porco sujo! Porco sujo! Porco sujo!

No templo levantou-se um clamor e centenas de dedos apontavam para nós: Porco sujo, porco sujo! Dei o sinal de alarme e fugimos dali a sete pés. Por sorte, o carro estava mo adro da igreja e conseguimos escapar do linchamento. Repórteres com sorte é isto.

O semanário Sul, do senhor Ginjeira, dono da fábrica de conservas Atlântico, na Baía Farta, descobriu Nossa Senhora nos canaviais de açúcar entre Benguela e Lobito. O repórter, Costa Santos, todas as semanas reportava pormenores das aparições. 

Um dia estava a beber um copinho (coisa leve…) na Restinga e descobri que a Nossa Senhora era uma secretária tradutora do CFB. Um grupo de boémios resolveu fazer essa brincadeira. A senhora, de madrugada, envolta num lençol branco e com uma vela acesa na mão, colocava-se no meio das canas-de-açúcar, na zona de Damba Maria. Quem fora de horas circulava na estrada Benguela-Lobito via o milagre. Essa descoberta confirmou o meu título der repórter com sorte.

Hoje mais do que nunca posso considerar-me um sortudo. Quando era miúdo, no tempo dos aguaceiros diluvianos, a força da água rasgava regos nas encostas onde estavam plantados os paus de café. O meu pai tratava imediatamente de tapar essas fissuras com pedra miúda. Depois com um maço pesado, as pedrinhas eram compactadas. É assim que começam as “ravinas”. E é assim que não progridem. Repórter com sorte.

Em Angola as “ravinas” chegam a abismos porque ninguém ganha dinheiro a colocar pedrinhas nos regos formados pelos aguaceiros. Quando a coisa está mesmo muito profunda e ameaça casas, casebres e tugúrios então resolve-se o problema. Mas aí já custa milhões e chovem as comissões. Estão a perceber? Sorte do repórter saber estas coisas.

No início dos anos 60 eu vi as ruas da parte mais elevada de Luanda esventradas pela força de chuva torrencial. O asfalto desapareceu e cada rua era um abismo fundo. A terra foi levada pelas enxurradas para a Baixa onde as casas ficaram soterradas. Uma tragédia. Como aconteceu tal desgraça na capital? Sorte do repórter.

Um engenheiro da Luz e Água de Luanda (LAL) disse-me que a rede de escoamento das águas pluviais era uma aldrabice. As manilhas não tinham o diâmetro certo e acabavam por rebentar. O caudal de água da chuva começou a comer tudo até várias ruas aluírem. Sorte do repórter.

As “ravinas“ perto das centralidades têm a mesmo origem. Os empreiteiros, peritos em roubar no peso e na medida, pródigos distribuidores de comissões, usam material inadequado na construção da rede de esgotos domésticos e escoamento das águas pluviais. Quando a carga aumenta muito, rebenta tudo e aí vem a ravina. Deixa andar até ficar um abismo, ameaçando os prédios. Aí sim, vamos acabar com a ameaça. Venham daí as comissões de milhões. Sorte do repórter saber estas coisas.

Portugal está em pé de guerra porque o Papa Francisco vem a Portugal e a Câmara de Lisboa vai gastar cinco milhões de euros na construção de um altar e mais quatro milhões em instalações sanitárias. Nunca urinar e defecar foi tão caro. Nem nas terras dos nossos amigos gringos (nossos dele, Presidente João Lourenço). Sorte do repórter que em 1982 descobriu que o altar onde o Papa João Paulo II recitou missa, no Sameiro, em Braga, custou menos de 100 euros (nem 20 contos se falarmos em escudos!)

João Paulo II, no dia 15 de Maio de 1982,um sábado de mau tempo, foi ao Minho. Tão mau que o Papa devia deslocar-se de Coimbra para Braga num helicóptero e a aeronave não pôde efectuar o voo papal devido ao nevoeiro persistente. Sua Santidade viajou num comboio especial que levava à frente uma locomotiva para detectar explosivos na linha. 

No santuário do Sameiro recebemos a notícia de que afinal João Paulo II não estaria no altar às 11 da manhã mas por volta das 14,30. Tragédia! No largo onde foi erguido o altar estavam centenas de padres, quase todos idosos. Alguns deviam ter problemas de incontinência urinária porque de cinco em cinco minutos iam urinar às laterais ou às traseiras do altar. Eu ia recolhendo fragmentos de informação porque a grande notícia era o atraso de horas do senhor Papa e as reacções de quem o esperava.

Muitos abades eram de paróquias do Norte e foram para Braga manhã bem cedo. Não contavam estar tanto tempo à espera. Irmãzinhas da caridade distribuíam umas bolachinhas. Membros da Irmandade da Confraria do Sameiro até distribuíam pão com chouriço. E os abades, rubicundos, mijões, comiam os petiscos avidamente. Bebiam desalmadamente e depois iam mijar no altar! Sorte do repórter.

Eu estava falando com uma irmãzinha da caridade, muito simpática, que me ofereceu umas bolachinhas. Recusei polidamente. Sou homem de pouco comer. Imaginem que bebo uma garrafa de tinto tendo como aperitivo a fotografia de uma azeitona. De repente apareceu o meu colega Neves de Sousa que estava a fazer a cobertura do acontecimento para o Diário de Lisboa: - Artur! Os padres estão a mijar no altar!

A irmãzinha da caridade retirou-se discretamente e eu disse ao Neves que isso não era grave. Só existiam duas casas de banho públicas naquele espaço. Quem estava apertado não podia esperar muito tempo. E o Neves de Sousa: - Não desculpes esses gajos. Eu sou católico apostólico romano e não admito que os padres estejam a mijar no altar. Isto é um lugar sagrado. 

Acalmei o Neves que não se conformou e continuou a rezingar até à chegada do senhor Papa. Enquanto chega e não chega fui saber onde sua excelência ia almoçar. As irmãzinhas da caridade tinham preparado uma almoçarada que constava de vitela assada e vinho da região! Cá para o repórter não há nada? Ainda consegui beber um dedal de vinho branco. Aí lembrei-me do altar. Perguntei a um membro da organização como tinha nascido. Ele contou tudo. Os toros de madeira mais as tábuas, barrotes e toldo da cobertura foram oferecidos por irmãos. As irmãzinhas da caridade taparam as madeiras com panos. A escada de acesso ao altar estava revestida com uma passadeira vermelha. Aas cores papais enfeitavam os barrotes. 

A decoração foi obra das irmãzinhas da caridade. O altar, por junto e atacado, custou menos de 20 contos. Por que razão não alugaram instalações sanitárias? Não há verba! Por isso, os abades rubicundos mijavam nas laterais e nas traseiras do altar. Por mim, foram logo absolvidos desse pecado. 

O arcebispo de Braga era um velho conhecido, D. Eurico Dias Nogueira. Foi o bispo do Lubango que recebeu os invasores sul-africanos com Savimbi às cavalitas, em 1975, antes da Independência Nacional. O senhor era também administrador apostólico da diocese do Cunene (Ondjiva). Quando os karkamanos e os criminosos de guerra do Galo Negro foram corridos, desloquei-me ao Lubango e fui falar com D. Eurico. Como foi? Colaborou com os invasores estrangeiros? Benzeu os canhões G5? Ficou zangadíssimo comigo e pôs-me fora das instalações bispais.

Naquele sábado, 15 de Maio de 1982, quando me viu ficou escarlate, depois azul às riscas e finalmente estendeu-me a mão: - Você por aqui? 

Senhor arcebispo, por que razão não alugaram instalações sanitárias, sabendo que iam estar aqui milhares de pessoas? Olhou para mim, esfregou uma mão na outra, respirou fundo e respondeu: -Homem, vá-se embora! Não estou para aturar jornalistas. Mas se quiser vir almoçar connosco está convidado. O Santo Padre e companhia almoçaram no comboio que os trás. Agradeci polidamente e dei por terminada a reportagem.

Um chefão da OTAN (ou NATO), Robert Bauer, acaba de dizer que a organização militar ofensiva e ultra reaccionária está pronta para entrar directamente na guerra contra a Federação Russa. A ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, afirmou que a Europa está em guerra com a Federação Russa. Josep Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia, disse naquele inglês com pronúncia de vaca espanhola que a Europa tem de derrotar a Rússia na guerra.

Senhor Presidente João Lourenço, de que serve à Federação Russa declarar o cessar-fogo incondicional se os seus amigos do estado terrorista mais perigoso do mundo (EUA) e do “ocidente alargado” querem a guerra custe o que custar a russos e ucranianos? No antigamente dizíamos que os chefes da FNLA e da UNITA eram fantoches e traidores. Não sei o que dizer depois da cimeira EUA alguma África em Washington. 

Hoje comemorar-se o 78º aniversário da libertação dos presos do campo de extermínio de Auschwitz, pelas tropas do Exército Vermelho. O “ocidente alargado” excluiu os libertadores das comemorações! Parabéns, Presidente João Lourenço. Escolheu os parceiros certos.

* Jornalista

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